Pode já parecer velha a discussão sobre extinção do papel diante dos meios eletrônicos, mas para mim está longe de algo conclusivo. Quando entro numa livraria percebo que nunca se publicou tanto, e mais, nunca se republicou tanto. Digo isso por que pode parecer perfeitamente natural que em vias de meios infinitamente mais rápidos e eficazes que a impressão um autor prefira o meio digital para tornar concreta e viável a sua obra. Isso parece ainda mais evidente quando falamos de poesia. Um poema é uma forma artística rápida e aérea por natureza. Acontece na leitura, sedimenta na memória, além da voz do leitor, exige pouco para ser uma obra de arte válida e durável. Quase sempre podemos levar nosso poema predileto na memória, salvo os longos épicos, claro. Por extensão, o livro parece aos olhos de todos, condenado a não vingar outro século. As mídias digitais somam técnicas e possibilidades que intimidam o papel impresso. Elas abriram definitivamente uma nova ramificação em termo de linguagem e possibilidade artística de expressão.
Eu me aventurei no Cerco, de Tazio Zambi, e descobri um artista multimídia que criou uma obra em perfeita harmonia com as possibilidades de expressão contemporâneas. Cerco, livro e instalação-web in progress, acontece em três diferentes linguagens. O maior mérito sendo sem dúvida, jamais deixar que a dimensão do poema e sua leitura sejam colocadas de lado. Uma harmonização rara e certeira nos desdobramentos de Cerco.
Podemos nos aproximar da obra sob três formatos, sua realização em livro, físico, de papel; através da cópia empdf, disponível no site do autor; e finalmente pela instalação-web inprogress, também no site do autor. A cidade de Vitória é sempre o mapa de fundo. Os poemas ressoam nessa geografia e na instalação deslizamos sobre o mapa e a cada ponto temos um poema apresentado aos nossos olhos. A leitura, então, se segue. A ordem é determinada pelo trânsito do leitor no mapa, como o curso da memória, não escolhemos a ordem das experiências. A possibilidade de interagir diretamente com os poemas de Cercoé uma experiência efetiva na mídia eletrônica. Por outro lado, seu mérito absoluto para mim consiste em não retirar a experiência de leitura do espectador. Cada ponto abre-se em um texto e cabe ao leitor percorrer a experiência estético-temporal do poema. Não há subterfúgios visuais ou hiper-dimensões e desdobramentos que poderiam ser alcançados pela construção na web. Sobressai o texto. O que acontece no nosso monitor é o mesmo livro que temos nas mãos. Tazio Zambi fez um precioso trabalho quando concebeu a instalação-web in progress de Cerco. O que sobressai é o texto, e isso traduz um profundo respeito pela forma do livro e do poema. São três linguagens distintas, mas em nenhuma delas temos experiências que permitam ver além do conceito livro, composto por poemas que apenas pode acontecer mediante a leitura. Não me recordo de ter visto algo semelhante e tão perfeitamente situado em relação ao objeto físico e o objeto virtual. Isso faz de Tazio o primeiro web-poeta de que tenho ciência. Entendamos o nome com ênfase no atributo “poeta”, ele cria para que seja lido, como um poema deve ser, palavra após palavra, em qualquer mídia que se realize.
Sobre o mapa memorial de Vitória os poemas de Cerco, o autor não se descuida em construir imagens que demonstram sua atenção ao fenômeno simples que transforma a linguagem em poema. Exemplo notável é o poema “Da janela”, que surge com um ritmo tranquilo de leitura e posiciona o leitor em um ponto de vista contemplativo único, em paralelo com a visão do autor: “tarde para que um lápis / a desenhe / tarde”. Seu momento contemplativo também pode ser observado em “Domingo” e “Depois”, poemas que também nos colocam em um ponto de análise e inércia tecidos liricamente com versos livres. Tempo de observação que sobressai por todos os poemas, mas vêm claramente à tona nos exemplos que citei e novamente em “Elegia”: “a tarde cansa / a aceno perto demais para constar na lembrança / a janela se insurge contra as evidências”.
Tazio não deixa de lembrar com reverência suas boas influências no périplo de Cerco, os poemas “Dança”, que remete a Walt Whitman e “Bolero para Oswald”, entremeiam suas páginas que sempre parecem voltar ao relógio das horas. A tarde e a noite se alternam em poemas diversos o que nos permite observar Cerco com uma unidade interna que se mantém por todas as páginas. Como o lirismo, parece se sobrepor a memória e à geografia da cidade de Vitória, creio que eu seja tão certeiro quanto o autor em afirmar que sua criação sustenta-se nela própria, firme, múltipla na linguagem e na mira, como no poema “Aqui”: !Onde se escava a /escalavrada /palavra-nada”. Exatamente ali, acontece a criação, estamos todos no cerco.
Imagem: arte com mapas de Stefana McClure
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Tazio Zambi (1985) nasceu em Vitória - ES, e vive atualmente em Maceió - AL. Publicou RETRÁTEIS (Edufal, 2009) e CERCO (Randomia, 2013) e poemas e narrativas em jornais, antologias e revistas de poesia. É doutorando no Programa de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Autor da instalação web MAQUINAMENOS e da série conceitual ESPÓLIO. Os poemas ora selecionados pertencem ao livro CERCO, que está disponível integralmente aqui [PDF] e aqui [web]. Tumblr do autor.
Roberto Dutra Jr. é um neurótico social como todo brasileiro de cidade grande. Adora literatura, mas as palavras não fazem mais sentido. Mestre em Letras, tem um livro publicado e diversos artigos de caráter acadêmico e crítico publicados. Foi editor de revista acadêmica, contribuiu para jornais e revistas literárias no Rio de Janeiro e tem um seríssimo flerte com a música. Adora gatos e poemas, que movem-se na penumbra e nunca revelam-se inteiramente. Leia mais textos do autor aqui.