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3 Contos de Rinaldo Fernandes

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 Ilustração: Poppy heaven, valzart



O PINTOR E A DANÇA

para Sylvia Cyntrão

Preso no escritório, entre árvores de arquivos, eu nunca entendi o fato de o meu vizinho, que é pintor, viver também atirado em danças. Quando, à noite, curvo de cansaço,  venho do trabalho, vejo-o com a esposa plantando ritmos no alpendre. Às vezes, a dança dos dois derrama-se até a praça em frente, agita-se entre as mangueiras. A grama, nos canteiros, magoada pela valsa dos seus pés.
Visitando-o certa vez,  disse-me que, poeta, os passos da dança eram recolhidos na agenda, em forma de versos. E fez-me entrar no ateliê. Ele conseguira pintar o perfume da dança na papoula que se abria no seu mais recente quadro.



A SENHORA DO EDIFÍCIO


Amanhecer de sábado, o sol já intenso nas pedras do calçamento. A rua retirada, o longo muro arruinado, o pardal acordando poeira do reboco. Um coqueiro ao pé do muro. O mendigo deitado, metade do corpo à sombra suave do coqueiro, as pernas expostas na calçada. Os raios lambem-lhe os sapatos. O mar, adiante, rosna como um cão que, de repente, assustado, se descobriu verde.
A senhora do edifício, que vive sozinha no sétimo andar, de sua varanda vê o mendigo, o mar, as areias alvas de sol. E deseja a sombra do coqueiro. Deseja as (quebradas) palavras no muro. Deseja – de onde veio isso? – a barba do mendigo.
O mendigo ressona, recitando no sonho o primeiro pão da padaria próxima. E toma o pão do padeiro, mastiga-o com um sabor sofrido, morno. Mastiga a mão da senhora do edifício, que ontem lhe atirou três moedas. Mastiga os tijolos podres do muro.
O mendigo, no sonho, principalmente funga debaixo da saia da senhora, aperta os dentes no pão entre suas coxas. A senhora sente cócegas, sorri. E solta manteiga para o pão.
A senhora, na varanda, esquece as areias, o mar. Vai tomar seu café. Agora, na mesa, sem esquecer o mendigo, aperta o pão com as duas mãos. Morde-o com firmeza, faminta. Os dedos bem úmidos de manteiga.



CARPINTEIRA

para Bete

Transborda o berço, o sono do meu filho no quarto. Os pingos no metal da pia – marteladas no meu crânio. Vou à cozinha, aperto bem a torneira. Antigamente, tudo limpo, polido. Agora, o pó cobrindo a geladeira. Na sala, despenco o corpo na poltrona.
A TV fora do ar, meus dedos tamborilam no nada. Minha vida, a esse tempo, embrulhada em quatro paredes. Olho-me no grande espelho. Em carne viva, a mordida que os dias me arrancaram.
Olho a cinza de cigarro que, antes de sair, meu marido quebrou no tapete. Alta madrugada, bêbado, ele chega atropelando o sono do menino e o meu. Em nossas discussões, borrifa-me o rosto com o rum do ódio.
Mas, encanteirar, construo um barco com as tranças nuas de cebola. É nele que, próximo temporal, ganharei as águas que, eu sei, sempre estouram da biqueira.





Rinaldo de Fernandesé contista, romancista e crítico literário. Autor dos livros de contos O perfume de Roberta (Rio de Janeiro: Garamond, 2005), O professor de piano (Rio de Janeiro: 7Letras, 2010) e do romance Rita no pomar (Rio de Janeiro: 7Letras, 2008). Os contos acima foram extraídos de Confidências de um amante quase idiota, seu livro mais recente (7Letras, 2012).

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