Ilustração: Toque Noturno, Chico Lopes
Aproximar-se do retângulo verde-escuro com descascados sobre um azul-claro fenecido, tomar posse da visão esquiva, não era para qualquer um. Fora a vida inteira assim, janela difícil para os candidatos a espiões, emoldurada por paredes apagadas, sempre fechada.
As camadas atestavam que o tempo passava - eu estava indo para os vinte e três anos e a mulher envelhecia, mas menos que outras. “A gente dizia que era feito a Jeanne Crain...”- lembrava uma dona de restaurante. “Que Jeanne Crain?”. “A irmã boa de Gene Tierney no filme “Amar foi minha ruína”. Não, não adianta, você não vai saber...”, ela balançava a cabeça, suspirando.
“Jeanne”, fosse quem fosse, sabia ocultar as rugas, e nada de se parecer com minha mãe. Era ainda bonita. A rua parecia mais larga e mais leve.
Rua que insistia em não ser como as outras: ainda não se apagara de um muro um anúncio de Adhemar de Barros para governador. Eu passava, pegava algum fio de Chopin que saía daquela casa, participava de um sonho imobilizado cujo encanto poderia ser quebrado por um som de atualidade – qualquer ruído brotado de mim representaria uma falta de escrúpulo. Meus passos ficavam menos pronunciados. Soletrei “Jeanne” à turma solenemente, como se cada letra obedecesse a uma caligrafia artística. Nicanor me ouviu com incredulidade e risinho. Conhecia o nome verdadeiro dela, muito comum, comparado àquele. Olhou para mim, todo indulgente, todo superior aos meus ardores de iniciante.
- História muito velha. – Ele cuspiu partículas de fumo de um cigarro amassado na boca. Passava dos cinquenta e reinava sobre nós como um oráculo avacalhado, desfibrado por cachaça. – Não casou, mas teve dois – o primeiro caiu no mundo e o segundo, todo mundo garante, era louco. Parece ter dado pra monge, ouvi dizer que se meteu nalgum mato por aí e ela levava comida pra ele. Nada comprovado. Também, se teve outros, escondeu bem. Não olha pra ninguém, mas não é louca mansa. Só muito orgulhosa...- Parecia colocá-la numa pilha mental de refugos, de lembranças locais que o deixavam mais tolhido, condenado, precisado de um novo copo. E o pedia. Alguém completava, aludindo a um fuxico antigo: haveria noites em que ela dava um sinal – um papel de bala que deixava cair no banco de praça onde estava; era o escolhido recolher e segui-la, rumo à rua da Biquinha. Eu saía, insatisfeito. Teria que voltar mais vezes para o quarteirão.
Gente espremida, coisas que a nova cidade encurralava com bares, lanchonetes, carros estacionados com toca-fitas estrugindo música sertaneja, lojas de 1,99, de conveniências, e difícil chamar de “footing” o que havia na rua 15 de Janeiro, mas uns remanescentes, de idade indefinível, ainda subiam e desciam. Sem esperar mais nada, cumpriam a rotina por nunca terem tido outra coisa ou imaginação para sequer cogitar dela. Milagre que ainda andassem para cima e para baixo, sem rumo, que não fossem nomes nos anúncios da funerária colocados nos principais pontos da rua.
Ela também deslizava entre estranhos, trabalhadores novos do comércio e das fábricas, putas adolescentes, tipinhos tatuados, de camisetas e bonés virados, se indignando com o que entreouvia, baixando a cabeça para a maior parte do que a cercava, escolhendo um ou outro banco para sentar-se, ainda abanando-se com leque. Vez em quando, o rosto muito branco, os olhos grandes, desapareciam sob um tufo de algodão-doce cor-de-rosa.. Ou parava num carrinho de sorvete de palito. Contava moedas, lerda. Resistia bem ao equilíbrio nos saltos altos. O perfil para trás – olhasse o quê? - por sobre o ombro lisinho e virava, subitamente, figura de camafeu. Multidões que a ignoravam, que a esmagavam, de que ela se desviava, estóica, ancorando-se numa bolsa. Por vezes, um pulo à igreja, mas olhava por sobre as cabeças e retornava, desanimada. Muda. Nunca respondia a um boa-noite que fosse.
Eu me vestia com a melhor calça e camisa. Noites, noites, meses saindo com a camisa aberta – meio quisesse atenção para meu tórax, para a exaltação que agigantava meu corpo – descia facilmente, levitando, mais impelido que aturdido pelo calor, para o canto de quarteirão de onde olharia para a janela. Num dado momento, da pouca luz vazada pela veneziana, o quarto daria sinal de estar aceso. Antes, com um recuo maior para trás de uma sibipiruna, era vê-la chegar da rua e entrar, fazendo ranger o portão. Vez em quando, parando, dava um jeito no cabelo, colhia duas, três asinhas brancas ou roxas de manacá. Nada em seus gestos e olhares se parecia remotamente com um sinal.
Uma noite, escondida da chuva sob o toldo de uma farmácia, como eu, incomodada com os que se encostavam em seu vestido, se amontoavam sobre ela, molhando-se no aperto com o oblíquo das rajadas, cravou-me os olhos. Únicos. E eu não podia – nem queria – deixar de ser examinado.
Duas idas a uma zona, nada mais. Nada no espelho que indicasse desses que atraem, fazem muito e podem alardear números com convicção: Nicanor, afundado sob cinzeiros e copos, fora casado duas vezes e se separara, mas ainda tinha camas a visitar regularmente, de corpos jovens – sabia irradiar uma competência viril tranqüila; Jaime me incomodava, insondavelmente bem-sucedido, os dentes ordenados e alvos como de propaganda, cavanhaque para cofiar com pose, velado, inteiro, senhor de si; Rubão nada dizia, mas vivia pronto para escarnecer de quem falhasse, feito existisse para saber de podres que o deixassem à vontade em sua pequenez. Ninguém a quem eu pudesse confessar fraquezas, ninguém de quem eu pudesse escondê-las completamente.
Diante da janela, imitando um certo jeito de amassar cigarro nos lábios, esperei. As finas riscas de luz lá estavam, desafiando-me a imaginar o que ela fazia lá dentro, como se movia, o que preparava. Olhei para o alto, vi o círculo branco dos curiangos, a lua, a vastidão negra e funda do céu, zero voraz, nada que se movesse, o calor, as árvores não acusando uma brisa de alívio. Fiquei até meia-noite, e nada aconteceu.
- Cretino.
Era a voz de Rubão. Talvez fosse a de Jaime. Talvez a de alguém dentro de mim que, ciente de que não se devia fiar em olhar feminino algum, por fixo que fosse, tivesse todo direito a algo que soava como um pontapé.
Passos diurnos em direção à porta da frente? Não tinha um pretexto para uma visita, só ficar nas cercanias do muro, não saltá-lo e não ir até à porta, ladeada por duas paisagens a óleo pintadas diretamente nas paredes. A casa só tinha como vizinhos dois terrenos baldios e uma residência desabitada. Que eu passasse, que eu olhasse, e nunca coincidia de ser um momento em que ela estivesse pelo lado de fora. Voltando da rua, num meio-dia, passou sem me ver. Vi que o sol não a desfigurava, embora uns senões ficassem visíveis; meio que amaldiçoei a luz e fechei os olhos para recuperá-la noturna, incerta – a lua com seus filtros, as voltas pela praça, sob néon e mercúrio, e as ruas escuras, lhe eram mais favoráveis.
Decidido: nessa noite, pular o muro. Circundar a casa, ficar ciente do que via apenas da rua, apossar-me do âmbito, o luar escasso e as muitas árvores acentuando meu furtivo. Dei com um quintal de grama alta, descuidada, de onde emergiu – e se escafedeu – um gato amarelo. Dentro da casa, ruídos mínimos. Mas, alguém se movia. Uns arranhões em acordes aleatórios, o piano, uma valsa muito lenta. Fui executando a volta em torno da casa obedecendo aos dedos dela - como seriam? - nas teclas, pernas tremendo e coração engolfado; apossei-me dessa topografia, desses desenhos, paredes, portas de fundos, pisos, tijolos quebrados, e, longe, alguma ave noturna, empoleirada no alto, alertando. Encostei-me àquelas paredes, excitado, esgueirando-me para frente, para finalmente ficar junto à janela, passar os dedos sobre sua madeira, afagá-la, descascá-la mais um pouco. Era preciso urinar, urinar livremente, para tornar tudo isso mais completo. Era meu, era eu.
Acenderam-se as riscas fininhas, às quais meus dedos imediatamente se agarraram, ávidos e frustrados por tão pouco. Passos. Pedaços os mais parciais, os mais incertos, de uma figura que se movia, e depois parava. Não era implausível que girasse, falando sozinha – uns resmungos muito distantes, um balbucio, uma pergunta a ninguém e uma resposta a nada. Sentava-se na cama. Levantava-se. Onde inexistiam dados, a imaginação erguia possíveis. À falta de ver, escutar. Um fiapo de choro. Era agora só aquilo, aquilo, um ponto obscuro capaz de reter, resumir toda a noite, concentrar toda a minha atenção: a mulher que chorava, chorava para si, ignorante do que a cercava, de qualquer possibilidade de testemunha. Chorava enormemente, e eu olhava para fora, para toda a noite, sentia toda a cidade, todos os Nicanores, todas as ameaças, todo o peso de um mundo que não podia senão acuar uma criatura tão sozinha. Quando, depois de tudo, apagou a luz, as riscas se extinguindo, eu senti alívio pelo escuro que a protegia de mim.
Fechei o zíper, recuei, recuei. Vergonha de ser notado pelo olho da lua.
Saltei, ganhei a rua da Biquinha, seus paralelepípedos, suas árvores, sua escuridão, seu deserto de gente, como se carregasse o mais impuro dos estorvos – eu, eu, quem mais?. Pediria um copo, outro, engoliria tudo depressa, para me aturdir, para chamar depressa o sono. Se Nicanor me perguntasse alguma coisa, nada diria. Resoluto, me calaria, calaria qualquer alusão a ela ou a mim – não, nunca deixá-lo saber, protegê-la: proteger-nos. Tinha compreendido o que era uma janela. Uma janela fechada.
(de “Hóspedes do vento”, dedicado a Ignácio de Loyola Brandão)
Chico Lopes