Eu vi uma poeta nua
Numa nudez de palavras
Atravessando a cidade como um rato
Procurando esconderijos
Eu a vi nua e fresca num entardecer sem nuvens
Eu a vi desesperadamente solitária
A poeta nua despencou do vigésimo andar de um condomínio
Criando asas num instante
A poeta atravessou o céu entrecortando helicópteros de metal fosco
A poeta brilhava magnífica e abria as pernas
Para que todos pudessem admirar suas entranhas
A poeta não tinha entranhas
Mas os seios da poeta eram fartos
Os seios da poeta eram de matriz
E deles chovia um líquido impressionantemente mágico
De repente o trânsito parou para deixar as sirenes passarem
Mas a poeta nua
A poeta
Nua
Pousou sobre o mais alto edifício
E riu de achar graça!
No dia seguinte ao vôo da poeta nua
Procurei na imprensa uma notícia
Não havia nada além de assassinatos, assaltos, corrupção e notícias políticas
A poeta nua não saiu no jornal
Seu vôo inesperado
A chuva psicodélica
As entranhas que não existiam
Não foram notícia
Pensei que enlouquecia
Marquei consulta urgente
Terapia cognitivo comportamental
O médico mandou que eu verificasse o último andar do edifício
depois de me olhar com suspeita por mais de meia hora
Eu vi a poeta nua!!!- eu jurava.
No topo do edifício encontrei um band-aid
Um bloco de notas em branco
Coco de rato
Recolhi as evidências
A poeta estava lá!
Da minha vagina não sai sangue
Porque prenho poemas
Tenho sangue de gato nas veias
Viro morcego
A poeta nua trepava em mim com tanto vigor que eu ia explodir
A poeta não gozava nunca
Era mulher
Mas meu gozo fácil era capaz de quebrar qualquer tabu
E fazer a poeta criar asas de tanto prazer
E as asas dela seriam verdes e feitas de fios de palmeira
E seu cheiro seria de um país que não vi
O mar teria medo dos mistérios de seu sexo
E ela repetiria versos em línguas indecifráveis cada vez que a minha língua penetrasse na sua boca e desenhasse os seus dentes
Me apaixonei pela poeta nua
Eu quero a poeta nua
A poeta
Desviando assunto um pouco
Não pago minhas contas há três meses
Água luz telefone
A poeta me enfraqueceu
Ela não tem contas
faz poesia
A harmonia do universo paga as contas da poeta nua
A poesia é um bem valioso
Só tenho meu trabalho e meio quilo de feijão que sobrou da cesta básica
A poeta nua não entende isso
Sinto que me abandona porque eu sou um coitado que não lê poesia
A poeta nua é mulher e quer resguardo
Quer velas no jantar
Música romântica
A poeta nua é mulher.
A poeta nunca deveria ter se entregado a mim
É difícil demais cuidar de poeta
Ora com asas
Ora sem
Mulher já dá trabalho demais!
Devia ter deixado a poeta solta
Pra ver só de vez em quando
Mas paixão pega a gente no laço
Achei que a vida com a poeta seria brilho
Carruagem
Vôo noturno
Alegria a não dar mais
Não era
A poeta tinha dias mulher
Dias anjo
Dias de olhar tudo com indiferença
Enlouquecida dizia que era só mulher
Não era poeta
Que queria olhar vitrine e fazer as unhas
Fazia boca de puta e pulava sobre mim como um gato
A poeta metia medo!
Preferia mesmo nunca ter visto a poeta
Preferia estar só
Abraçar os lençóis pensando numa trepada
Ontem
Mandei a poeta embora
Ela saiu como mulher
Carregando seu bloco de notas em branco
Ela não ameaçou se matar
Ela não disse que era louca por mim
Ela calou um poema inteiro
Depois de duas horas ela chegou meio bêbada
Jogou o caderno de notas sobre a cama
E disse que só voaria amanhã
Já é meio dia e não fui trabalhar
A poeta não acorda
Dormiu coberta esta noite
Não está mais nua
Não quero chegar ao ponto de deixar de te querer
ao ponto em que o sol já não aqueça
a areia sob meus pés
e todas as marés estejam recuadas
Porque meu amor por você transpassa e funda
sol
mar
ondas
E todas as gaivotas em revoada
Mar
Sílaba única
De todo o sentimento
Do mundo
As contas com o tempo
acerto depois
Somo minha vida à sua
e divido por
dois
Minha mão no seu peito
E a vida fica mais longa
300 anos
3000 milhas
Infinitas noites entrelaçadas
Nas mãos que toco
encontro gestos que me encontram
e tiram tantas sereias dos meus cantos
tantas nuvens
e estrelas
e luas
e movimentos repentinos
E novos gestos em mãos aladas
e novas asas que se abrem e chegam tão perto de todos os sóis
todo o calor que se acumula e dissipa
todo o calor
Ícaro
o canto ecoa em mim e te embala
o canto ecoa em ti e me assusta
o canto o toque a brisa quente e úmida do seu hálito
e o tempo se desfaz em promessas de eternidade
Posso sentir seu hálito
Posso sentir o roçar breve do seu corpo
Seu cheiro
Como?
Se ainda não tenho memória dos seus olhos sobre os meus
da sua voz
e do calor das suas mãos?
I
Criou-se um tempo novo
um tempo de espera madura
o desejo do hálito
o desejo do cheiro
o calor guardado no abrigo das almas
e não posso mais fazer nada
Aquecer-me ao sol
olhando nuvens desconfiadas de tudo
o desejo
sem fúria
II
Hoje se resume a isto
24 horas de aguardo
Deito-me de lado e sinto sem querer
Cada palavra sussurrada
Cada canto que ainda não ouvi
Mas nada me convence do não-falado
Como se o silêncio dissesse tudo
III
Se sou alegria também sou vento
Se sou poesia sou afago
E posso construir um mar em fúria
Com peças de cerâmica e com palavras
IV
Ainda minhas mãos estão frias e suplicam delicadas
Seus tons de vida
Nada tocam senão folhagens
Nada tocam senão o ar
do que são feitas as palavras...
Poemas extraídos de A Poeta Nua, ainda inédito.
Fotos de Silvio Ferreira Leite.
Fotos de Silvio Ferreira Leite.

Cathia de Almeida já foi de tudo na vida até escolher ser só mulher, poeta mãe e professora de mosaico. Nada está em ordem porque a vida não tem ordem e tem dias que a gente não é nada mesmo. De resto ouvir passarinhos, cuidar de cães, olhar o mar.... com a certeza de que tudo acaba!