No País da Luz Eterna
As ralas mechas dos cabelos cor de cobre agitam-se em conhecida coreografia a roçar seu rosto num instante de serenidade explícita. À cantoria monótona e desafinada, ela prefere seguir o som que vem dos mistérios líquidos do cristalino caminho das águas. Seu corpo jaz no vão entre duas pedras, na parte rasa do riacho, onde juntam-se as lavadeiras, nas manhãs de segunda-feira. Seu espírito não manda notícias. Vaga ao longe, nas ruínas do País da Luz Eterna.
A longa maratona, sob o lilás do céu tão perto, ocorre lenta. Seus pés, ora esquivam-se, ora atiram-se na superfície imprecisa dos cacos de reboco das paredes destruídas. Caminha solitária, refazendo a trajetória dos que ali viveram num tempo de dia contínuo. Sonolenta, sua mente se recosta num floco de brisa.
Sem a trégua de horas noturnas, a luz, exausta em seus matizes pálidos, rasga nuvens, projeta sombras, desvela formas sem definir contornos. É missão para os mitos percorrer as entranhas de veias mortas da viela que conduzem aos destroços da pequena capela, de onde ecoam cânticos entoados por um coro de vozes infantis, numa língua desconhecida. No entanto, a sonoridade docemente melancólica ecoa em alguma memória antiga. A música, a cada passo mais penetrante, a embala.
Ela flutua sobre as flores baldias que brotam nas rachaduras dos restos marmóreos do que outrora fora um convento. Narcisos cor de ouro, belos e indiferentes, erguem-se fálicos por entre a vegetação rasteira.
- Vai ficar aqui sozinha. Nossos cestos estão vazios. Terminamos a nossa tarefa. Reverbera a voz de gralha que vem do nada, perfurando a o ar morno, assustando o vento.
E as crianças que cantavam? - indaga, recém-chegada. Seus olhos abrem-se aos poucos. O adeus da manhã ensolarada agrega sua massa orgânica à sua alma. O cesto de roupas sujas posta-se à sua frente, nos braços de sua porção abóbora. Ela rejunta a sua existência para a lida. Entre as dobras do seu colorido vestido de chita, enrosca-se, majestosa e luxuriante, a estrangeira flor amarela.
Foto: Alice Pleasance Liddell, tirada por Lewis Carroll (Charles Dodgson)
em 1858 - National Portrait Gallery, Londres.
* * *
Maria Balé é pós-graduada em Comunicação Corporativa pela PUC - SP, produtora de textos publicitários e fotógrafa. É cronista do caderno Cotidiano do jornal eletrônico Algo a Dizer, edição mensal. Integra o elenco dos oito autores do livro Damas de Ouro & Valetes Espada, da MG Editora. Mora em São Paulo, Capital.