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Máriam - Homero Gomes

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Ilustração: Corão

Surata de Maria

"E se tendes dúvidas a respeito do que revelamos ao Nosso servo, componde uma surata semelhante à dele, e apresentai as vossas testemunhas, independentemente de Deus, se estiverdes certos."

( Alcorão, 2.ª Surata – Al Bácara: 23)


1. Não serei ninguém que eu não queira. Então, sou Maria, sou Marta, sou Salomé, sou Joana. Eu sou a Madalena dos sete demônios.
2. Não terei o passado que me impuseram, pois escolhi ser a filha de Abraão, a mulher de Isaac, a amante de Ismael.
3.Sou todas as mulheres que eu quiser ser. Sou todas as mulheres que eu quiser ter em mim.


4. Benditas as mulheres que suspenderam a fé e suspeitaram dela. Elas são as que se entregaram de corpo e espírito ao Mestre, mas que sempre se questionaram.
5. Do meu corpo foram retirados sete espíritos malignos. Agora, posso ser possuída por todas elas, de todas as épocas e gerações. Sou Máriam, Maria de todas as mães e filhas, de todas as prostitutas e de todas as virgens.


6. Não há pureza nem santidade. Pois elas são aparências da mesma essência, e não há essência.
7. Portanto, não me persigam, não atirem pedras e ofensas, não me humilhem. A perseguição é pior que o homicídio, já dizia o profeta de Ismael.
8. O Mestre foi perseguido e morto, e somos todos com ele. Mas permitam que eu tenha o tempo necessário para odiar a fé. Para colocá-la em dúvida, por mais que eu tenha visto milagres e prodígios.
9. Tenho esse direito, pois sou de pó, minha matéria não é divina e santa.
10. Não abro mão do direito de dizer: talvez não seja assim; de duvidar de mim mesma, se for preciso, com todas as fibras do meu corpo.


11. Vi  mulheres com feridas pelo corpo ficarem sãs. Vi loucas recobrarem a razão. Vi a fé à beira da montanha. Vi prodígios. Vi milagres.
12. Mas será que meus olhos são capazes de tamanho engano?
13. Sou de pó. Minha matéria não é divina e santa. Portanto, devo duvidar do que sinto e do que vejo, do que creio e do que desacredito.


14. A matéria deste mundo é sustentada pela sua própria contradição.
15. E não há nada de errado na autocontradição. Contradizer-se é vida, é sangue, é a própria matéria da morte.
16. Se há vida, ou algo que se possa chamar de vida, após a morte. Então, a morte não é morte. A morte é contradição.


17. Mas posso e quero duvidar dessa possibilidade.
18. Se coloco todo o meu ser e minha esperança nisso, posso me perder eternamente.
19. O que vejo, sem crer que vejo, é apenas matéria.
20. O que não vejo, podendo aceitar que vejo, é o espírito, lado obscuro da matéria.
21. Mas tanto a matéria quanto o espírito podem ser apenas ilusão. Ilusão da visão dos olhos; da visão da fé.
22. Então, não há nada além de ilusões.


23. Por isso creio, meu Mestre.
24. Creio Rabôni, em suas ilusões.
25. Creio Cristo, no engano dos meus olhos.
26. Creio Jesus, que você apareceu para mim, e primeiro para mim.
27. Creio filho do Deus vivo, que duvido de ti com todo o meu espírito.
28. Pois se todos os discípulos puderam duvidar e não se perderam, então abraço o meu direito à dúvida.
29. Portanto, não pensarei mais nisso. Não perderei meu sono em decifrar esse jogo de ilusões.


30. E para aquele que duvidar de minhas palavras, digo: faça o mesmo que eu.

Maria em árabe




Homero Gomes, autor do livro  Solidão de Caronte, -Editora Patuá,2013, nasceu em 1978 na cidade de Curitiba, onde trabalha, estuda e escreve. Entretanto, dentre os papéis que interpreta o que desempenha com mais satisfação é o de compartilhar a existência com Ana e Amanda, pois sem elas não estaria vivo, seu existir não seria vida. Porque é no olhar delas que vê a si mesmo e encontra amparo na solidão para trabalhar como professor de literatura e língua portuguesa e como editor de materiais didáticos, estudar os romances publicados durante os governos militares no Brasil para o mestrado em Estudos Literários da UFPR, e escrever, que é sua atividade principal, sua maneira de agir sobre o mundo, pretendendo imbricar-se nele seja como poeta, cronista, ensaista ou ficcionista. Por isso, nos últimos anos, colaborou com Rascunho, Cronópios, Cult, Germina Literatura, Ficções, Zunái, Nego Dito, TriploV, Relevo, entre outros. Além de manter, atualmente, coluna em veículos de cultura e literatura, como Musa Rara, Página Cultural, Mundo Mundano, Mantovani e Samizdat. Lançara, em breve, Sísifo Desatento por Terracota editora.


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