0,2
fumei
sentei:
metade do corpo
na sombra
metade do corpo
no sol
meu coração
metade meu
metade teu
metade nunca vista
batia forte
olho para a minha camisa,
para a minha barriga:
o pano treme
com o meu coração
que bate forte
então é assim
- o sangue
confessando nos intestinos
o quanto peca
e
erra
no coração
coração
no coração
do coração
para o coração
depois do coração
atrás
atrás do coração
0,4
lembro agora
quando
(pequeno)
ouvi falar de
caim e
abel,
caim que matou abel
e eram irmãos
um irmão que matou o outro
eu sentia o cheiro do sangue
e o cheiro de um homem de cabelo preto (suado) colado na testa
e eu sentia o gosto do sangue dele
e eu sentia o gosto e o cheiro do sangue melado nas mãos dele
(é assim que funciona a nossa cabeça)
ou quando vi a primeira figura (num livro) do inferno:
peitos, barrigas, demônios, chifres, fogo, uma serpente
este é o demônio, minha mãe disse
e, no canto da figura,
um homem de chifres e patas (muito baixo) sorria para o pescoço de uma mulher nua
nua no meio do fogo
nua do lado de um homem
nua do lado de um homem com chifres e patas
e que sorria para o pescoço dela
se estava com medo, não podia ser má
os que têm medo nunca são maus
este é o demônio,
e ele tinha um rosto
para mim, ele só podia ter nome
para mim, o demônio não podia ter rosto, só podia ter nome
1,1
queridinha do papai,
teus olhos têm a cor
perdida da luz azul,
do tetracloreto de carbono
e do navio afundando
na linha do horizonte
capitão!
ele põe a mão no peito,
fecha os olhos, olhos afundados no
assoalho úmido da embarcação
a embarcação afunda?
ou a linha do horizonte sobe?
a embarcação afunda?
ou os olhos é que caem da cara?
queridinha do papai,
teus olhos têm a cor
perdida da tua mãe morta,
do teu pai perdido no mundo com uma faca enfiada no peito,
sempre ali
2,1
eu estava na minha cabeça
me imaginando
falando numa entrevista
me imaginando
falando numa entrevista
(como me imagino sempre)
de quando proust
desmaiou
vendo o quadro (um quadro de alguém)
"ele era doente", eu diria,
"ele era fisicamente doente,
desmaiou porque teve talvez
uma emoção forte
de quando proust
desmaiou
vendo o quadro (um quadro de alguém)
"ele era doente", eu diria,
"ele era fisicamente doente,
desmaiou porque teve talvez
uma emoção forte
e como era frágil...
mas não desmaiou por causa do quadro
a arte ainda não tem
mas não desmaiou por causa do quadro
a arte ainda não tem
ou não tem mais
o poder de
fazer as pessoas desmaiarem"
e aí
em seguida
imediatamente
pensei numa
máquina
que era uma luva de boxe com um braço mecânico retraído que se expandia e dava um soco
no espectador
quando ele chegava perto
e o espectador desmaiava
ou
se fosse inteligente
pelo menos
fazer as pessoas desmaiarem"
e aí
em seguida
imediatamente
pensei numa
máquina
que era uma luva de boxe com um braço mecânico retraído que se expandia e dava um soco
no espectador
quando ele chegava perto
e o espectador desmaiava
ou
se fosse inteligente
pelo menos
fingia
desmaiar
desmaiar
2,2
sou isso
sou precisamente isto
como quem se despede
ou derruba café quente
na calça
ou ganha o nobel
e não tem ninguém
para contar
(às vezes olho
para o céu
esse céu -
o mesmo céu daí
este coração -
o mesmo coração daí
mas
a alma
sou precisamente isto
como quem se despede
ou derruba café quente
na calça
ou ganha o nobel
e não tem ninguém
para contar
(às vezes olho
para o céu
esse céu -
o mesmo céu daí
este coração -
o mesmo coração daí
mas
a alma
a alma
- aí os abismos)
há um abismo no meio
dos abraços
3,3
me expulsaram
da minha
cidade
incendiaram minha
cabana
encheram minha
caverna
de argila
disseram:
queremos a cabeça dele
não procuraram
nas gavetas
não faria diferença
4,6
não é mais a ajuda oblíqua,
o grito da criança estreito
como
estrada para teu coração aceso
é só uma ponta de cólera,
aguda e absurda,
afiando facas,
cegando águas,
incendiando bagagens
me lembro do fio da saudade,
incandescente,
acendendo o abajur do quarto,
avermelhando os trilhos do metrô,
incendiando a estrada de
regresso
Imagem: poema visual ("poema de amor") de Manuel Calvarro (Espanha).
* * *
Thiago Mattos nasceu em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Graduado em Letras pela Universidade Federal Fluminense, atualmente é mestrando em tradução literária na Universidade de São Paulo. Em 2012 lançou seu primeiro livro de poemas, Teu pai com uma pistola, (de onde foram selecionados os poemas ora publicados) com o qual participou, em 2013, do Festival International de la Poésie de Trois-Rivières (Canadá). Sobre o livro, José Castello escreveu (O Globo, 12/01/2013) : « O livro de Thiago, de fato, me envolve. Oferece-me pistas em um caminho, na maior parte do tempo, desprovido de pegadas. [...] É todo belo – delicado e sutil, mas indiscutivelmente belo – o livro de Thiago Mattos. Transpassa-o, sempre, a mesma pergunta: será a arte ‘só isso’, isto é, ‘emoção estética’? Ou ela será ‘mais que isso’, quer dizer, será a arte (a poesia) algo que ainda hoje pode afetar, desarticular e deslocar? » Thiago Mattos é colunista do blog da Confraria do Vento, além de manter o blog Je Vous Défenestre, em que publica traduções de poesia contemporânea de língua francesa. Ainda em 2014 deve ser lançado seu segundo livro, Casa devastada – prosa em poesia.