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A ROSA RE-OBTIDA: um ensaio crítico de Wladimir Saldanha para Maria da Conceição Paranhos

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            A escrita de Maria da Conceição Paranhos pode ser compreendida em um contexto maior de sobrevivência da lírica na poesia brasileira, não exatamente por rejeição às vanguardas, mas por assimilação daquilo que nelas lhe interessava, sem perder o caráter discursivo. Seu caso, aliás, é dos mais emblemáticos, pois o segundo livro da autora,ABC re-obtido, de 1974, dialoga francamente com o Concretismo e com a forma popular do ABC, espécie de cordel em que cada letra do alfabeto inicia um poema. Se pensarmos, por exemplo, que um poeta como Ferreira Gullar, depois do Neoconcretismo, entregara-se ao panfleto no final da década anterior, com seus Romances de cordel, o ABC Re-obtido cresce em importância, pois sinaliza uma tendência.
            Tarda muito uma poesia reunida de Conceição Paranhos, para que se possa ter a exata dimensão de sua trajetória, que os textos de apresentação do recém-lançado Poemas da rosa evocam – infelizmente, com certa exorbitância e generalidades indemonstráveis. A recepção fica ainda mais problemática tendo em vista que a única antologia individual da autora, Delírio do ver, de 2002, não é clara nos critérios de seleção, dispensa a ordem cronológica das obras e exclui, sem maiores explicações, o ABC Re-obtido.
            Contudo, é pensando na poesia anterior de Conceição Paranhos, e sobretudo nesse livro banido,que as oscilações de linguagem de Poemas da rosa ressoam deliberadas. De fato, em Lição da rosa, vai dito como exposição de motivos: “Aprendo com as abelhas a escolher a flor/ das flores, a mais densa/ em seu possível mel” (p. 39). É significativo que essa busca do “possível mel” acione simbologias e dicções diversas, colocando a linguagem ao dispor do sujeito lírico que, em meio a citações eruditas, também epigrafa com Dorival Caymmi: “Eu que tenho rosas como tema/ canto no compasso que quiser”.
            Trata-se de poetisa disposta a baralhar os registros – o lírico-discursivo, com imagens da convenção literária, e o elíptico, com sobreposição de imagens(por vezes antilíricas). O longo e impressionante poema final, Rosa completa, é o exemplo maior dessa amálgama, que outro poema, o pequeno e irônico Rosa serotonina, pode exemplificar:
           
Esta é a menina
a malina
menina
da rosa serotonina
discernida sua colheita
é inibida a ricocheta
deste fermento tão fino
pozinho de fazer rosa
crescer no chão do sertão
menina, nina, niña rosinha
sage enfant e crazy child
berückend Kind
linda, flor ascendendo
em letra, luz, mais luz,
ploppie!
serotonina – eis a rosa. (PARANHOS, 2016, p. 13.)

            Uma pequena joia de ironia, delicadamente indigitando o mundo com os apelativos da infância em quatro línguas. Ri-se do nosso tempo medicamentoso e hedonista, que faz da substância neurotransmissora algo tão importante, comparável ao signo de eleição do livro – a rosa. O jogo de assonâncias e todo o ludismo com os predicados da flor,que redundam na onomatopeia e exposição final, são exemplos, entre outros, dos efeitos de contraste de linguagem, na aproximação com poemas de fatura mais discursiva. Entre esses outros, destaca-se a série Confissões à rosa, composta de um poema em quadras e dois sonetos. Vejamos o segundo, também exemplar:

Chamejas, surda, textura cerrada,
fosses tu concha ou túnica de monja.
Em ti percebo a face, a mais amada,
mas me assusto com outra, em que me sonho.

Espelho ou lago, refletes minha face
exposta ao tempo em larga tempestade.
Enquanto te protejo da procela,
abandonas-me – esconsa, muda e cega.

Tu és da primavera, interminável,
e eu, no desamparo, vago, nua,
curvada pelo inverno, em sede louca.

Não suspeitas do amor, não sabes nada:
se palmilho entre lágrimas a rua
só eu te vejo, vives nesta boca. (PARANHOS, 2016, p. 43.)

            Neste soneto, a primeira quadra, com um par de versos brancos e outro rimado, de assonâncias internas e sibilações (textura/ túnica; concha/monja), antecipa as rimas toantes da segunda quadra, começadas pela palavra “face”, termo também anunciado antes. O desdobramento rímico, rimado e branco, espraia-se nos tercetos; formalmente, há uma estrita correspondência com o tema: é possível ler nessa música fugidia os encontros e desencontros entre o eu lírico e o signo “rosa”.

A face da rosa

            Como os dois poemas transcritos, os demais do livro são intitulados com a flor: “O poeta e a rosa”, “Rosa branca”, “Rosa das horas”, “Rosa terçã” etc. A outra palavra, além de “rosa”, que grassa nesse roseiral é precisamente face; e não será demais se aproximarmos todas as ocorrências.
            Vamos a elas: “E o meu amor, vejo sua face/ de flor cerrada” (p. 17); “Descubro a face/ da flor velada” (p. 23); “achava o rosto/ na tua face” (p. 29); “Rosa de sonho e metal – / em busca da face humana” (p. 34); “ao divisar a face da beleza” (p. 35); “Ora contemplo a face – / que palidez de lírio!” (p. 41); “Em ti percebo a face, a mais amada,/ mas me assusto com outra, em que me sonho” (p. 43); “Espelho ou lago, refletes minha face” (idem); “Tua face já destila em cor, e coras” (p. 45); “Assim que olhei na tua face/ percebi clarões intensos/ de estrela no rosto móvel” (p. 47); “O moço procurava ver a face/ amada, meio a tantas, esquecida” (p. 49); “Vejo agora a cor da face,/ aliciando a canção” (p. 51); “Assim que lhe olhei na face/ recebi a luz intensa/ de estrela, no rosto magro” (p. 55); “Dorso de serpente, face rosamarga” (p. 77).
            Esse inventário de tantas faces, que chega a extremos de se contrapor ao sinônimo rosto, há de significar algo. A recorrência sinaliza para que seja a própria alma da metáfora “rosa” no livro, bem aquilo que Paul Ricoeur, partindo de Aristóteles, chama de epífora:  um movimento do signo para fora de si. É essa palavra –“face” – que estabelece nos poemas um notável jogo entre informação e perplexidade (RICOEUR, 2000, p. 30), característico da epífora. Ricoeur o pensa, não em termos tradicionais de uma referência, mas – agora com Wimsatt – como um ícone, em aproximação com a tradição bizantina, aí entendendo um caráter de coisa, pela suspensão referencial e fusão do som e do sentido no poema. Trazendo para o livro em estudo: “rosa” é metáfora porque som e sentido conjugados (nos seus contextos, evidentemente) correspondem a “face”, mas ao mesmo tempo essa referencialidade se oblitera. “Face” pode ter o sentido de espelho humano, metonímico; “rosa” pode passar a corresponder também a outros signos, ainda que de referência ao humano, como em Rosa serotonina. Torna-se um ícone; de modo inverso,em alguns poemas, tal ícone é permutável pela metáfora/ícone da rosa: “Vejo agora a cor da face/ aliciando a canção” (poema Rosa sedução, p. 51).
            Como isso é possível? É intuitivo que a metáfora de flor com face ou rosto se estabelece por analogia do corpo humano com a estrutura vegetal, de partes superiores correlatas. Quanto à rosa propriamente, diz Juan Eduardo Cirlot sobre seu simbolismo: “significa o absoluto e a perfeição”, mas, bem por isso, “pode ter todas as identificações que coincidam com dito significado, como centro místico, coração, jardim de Eros, paraíso de Dante, mulher amada e emblema de Vênus” (CIRLOT, 1992, p. 390; traduzimos). Se aproximarmos esse verbete – “rosa” – do “rosto humano” no mesmo Dicionário de Símbolos de Cirlot, encontramos talvez a chave da “face” em Poemas da rosa:

Em si, o rosto simboliza a “aparição” do anímico no corpo, a manifestação da vida espiritual. As infinitas flutuações dos “estados de ânimo” que, por analogia, podem relacionar-se com variadas estruturas do real, refletem-se nele, particularmente no olhar. (CIRLOT, 1992, p. 390; traduzimos.)

            Ora, voltando ao livro de Paranhos, temos que o ícone rosaparece mais apto que toda a flora para simbolizar as “infinitas flutuações dos estados de ânimo” da face humana, tomada como metonímia do sujeito lírico.
            Há vários momentos do livro que tornam evidente essa preocupação com a simbólica da rosa, como o poema Rosa seca, ao tratar da “flor azul” – que tanto o Dicionário de Símbolos de CIRLOT (1992, p. 390) quanto o de CHEVALIER e GHEERBRANTE (2009, p. 790) relacionam ao impossível – “Do livro azul caiu a flor azul/em seda e sonho”, diz a poetisa, em Rosa seca. A mais disso, o simbolismo tradicional do amor é acionado no poema em quadras sobre a rosa como flor votiva da deusa Vênus (“Rosas de Vênus”), texto que remete aos presságios de Júlio César quando da conjura que o matou. Podemos citar, ainda e sem esgotar os exemplos, o pequeno poema sobre a Rosa mística, uma das denominações da Virgem Maria.
           
Equilíbrio híbrido  

            Apesar de não constar nas muitas epígrafes que abrem o livro, a sombra tutelar de Cecília Meireles marca presença em momentos significativos. Estará, dispersa, nas aproximações entre rosa e concha – que ecoam o vocabulário marinho ceciliano – a exemplo, não só do soneto II de Confissões à rosa, que transcrevemos, mas do Terceiro motivo da rosa. Este é um diálogo com o Segundo motivo da rosa, de Cecília, que significativamente o dedicou a Mário de Andrade. Na carta de agradecimento que remeteu à autora, o presenteado a chama de “Rosa Cecília Meireles Rosa” e admite sua preferência por este poema (em relação a outro que Cecília lhe oferecera)dado ser um soneto – “forma sublime e tão tênue que tantos males secretos andaram desencaminhando por aí” (apud MEIRELES, 1996, p. 36). Esse raro diálogo entre vanguarda (Mário de Andrade) e lírica discursiva (Cecília Meireles) é a própria fonte geratriz da poesia de Conceição Paranhos.
            Contudo, se Mário falava em “ecletismo sábio” (ANDRADE, 1955, p. 161) sobre Cecília, porque lançava mão do verso livre ou medido conforme a necessidade, já isso hoje se tornou correntio, ficando a novidade, se houver alguma, não tanto na variação rítmica, mas na construção do sintagma do verso. Usando métrica ou verso livre, Cecília sempre se colocou como lírico-discursiva; mas, quando morria a autora de Viagem, em 1964, Conceição Paranhos tinha vinte anos e publicava em jornais os primeiros poemas. Encontrava diante de si um cenário bem mais diverso e, aluna de Tasso da Silveira na Faculdade Santa Úrsula – o mesmo poeta junto ao qual se congregara Cecília e o grupo da Revista Festa ­–, Paranhos foi jovem quando o Concretismo, a Poesia Práxis e a Marginal faziam ruído, na pretensão de juventude que toda vanguarda tem. Hoje, não caberia falar em “ecletismo sábio” diante de uma poesia, como tantas,também ceciliana na oscilação entre o verso livre e o medido: a questão que se coloca é entre lira e antilira, entre subjetivismo e objetivismo, entre discursividade e poema elíptico.
            Parece ser na amálgama de dicções – a lírico-discursiva e a elíptico-antilírica – que Paranhos mais se realiza, afirmando, em qualquer caso, seu subjetivismo. Formalmente, seu melhor não é a oscilação eclética, que também pratica, mas o equilíbrio híbrido. Se os momentos mais antilíricos rendem algo lúdico e bem dosado como Rosa serotonina, não vão muito além disso; já os poemas puramente discursivos, apesar do evidente domínio técnico, não mantêm em geral a voltagem de Confissões da rosa II.
            Isso se dá sobretudo pelo uso à solta da convenção literária, a que referimos de início. Não se pode compreender de outro modo, tendo em vista a obra anterior da autora, que a força da imagem seja tantas vezes preterida em Poemas da rosa. Naquele tipo que Hugo Friedrich (1978, p. 206-210) classificou como “metáforas de genitivo” – em que a adjetivação inusitada, regida de preposição, esconde uma fusão de imagens – é preciso reconhecer que “carrilhão das horas” (p. 11) ou “broto da espera” (p. 57) soam bem tíbias, e mais ao lado de metáforas meramente atributivas, como “flor de chama” (p. 9) ou “rosa de ouro” (p. 57). Ocorre que, em tais casos, o “uso comum” de que deveria desviar-se a imagem (função reconhecida desde Aristóteles: allotrios) não é tanto o da oralidade, mas o do próprio discurso lírico de convenção, abalado pelo Modernismo e pelas mesmas vanguardas há muito assimiladas por Paranhos. A suposição do propósito autoral não excusa o resultado: é forçoso convir que tais momentos desmerecem os demais e prejudicam o conjunto. Em alguns sonetos, também o estrito paralelismo dos tercetos apenas reativa o velho esquema silogístico da forma, de arremate conclusivo, fazendo pensar nos descaminhos dos “males secretos” de que já se queixava Mário de Andrade a Cecília Meireles.
            A poesia recobra as forças no já mencionado poema final,Rosa completa, onde encontramos a autora na sua melhor forma, com apropriações estrangeiras e mots-valises – o somatório neologístico de dois termos – “rosamarga”, “belicamorosa” –, supressão de vírgulas para maior agilidade e outros característicos das vanguardas do século XX. Um torrencial brado vocálico lembra a Ode marítima, de Fernando Pessoa, nesse poema construído em enumeração caótica – outra novidade já gasta, cujo encanto Paranhos consegue revivicar. História, mitos, referências literárias parecem conduzir à rosa como símbolo máximo do feminino (“menarcas sem pausa”), da mulher amada e da mãe, como ensina Carl Gustav Jung: “É um terno germinar e renovar, uma vida em potencial que tem tudo pela frente e ainda contém dentro de si todas as possibilidades de realização sem estar sujeita ao esforço da configuração” (JUNG, 1989, p. 384). Não é outra a busca da poetisa por uma imemorial  “rosa/ oblíqua e cega”, entre lira e antilira:
           
                        De alguma forma nos acanalhamos.
                        Rosa.
                        Ocorre oblíqua e cega
                        após toda a vida já desde vivida. (PARANHOS, 2016, p. 75.)
           
            A sequência do poema faz pensar nos momentos mais felizes de ajuste da invenção verbal com a discursividade em nossa poesia: na Última elegia, de Vinícius de Moraes, ou no Poema sujo, para lembrarmos ainda uma vez Ferreira Gullar. Não é comparação de valor, mas de linguagem, e ainda assim é certo que Paranhos não vai tão longe nos estrangeirismos, como o primeiro, nem desce até o calão, como o segundo. Em algum lugar entre tais extremos situa-se a autora de Poemas da rosa em grande forma, com a suprema coragem de explorar um dos signos mais cansados da convenção poética em qualquer língua. 




WLADIMIR SALDANHAé poeta, crítico e tradutor. Doutor em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Publicou os seguintes títulos de poesia: “As culpas do poema”(2012), “Culpe o vento” (2014),“Lume Cardume Chama” (2014),“Cacau inventado” (2015) e“Natal de Herodes” (2017). Como tradutor, participou da reedição anotada de A cinza do Purgatório, de Otto Maria Carpeaux, pela Editora Danúbio, de Santa Catarina, tendo ficado responsável por verter referências de poesia francesa. Tem artigos de crítica no Jornal Rascunho(Curitiba), Jornal A Tarde (Salvador) e Jornal Opção (Goiânia), além de crítica acadêmica.


MARIA DA CONCEIÇÃO PARANHOS  é poetisa, ficcionista, dramaturga, ensaísta e tradutora. Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal da Bahia. Ph.D. pela Universidade da Califórnia, Berkeley, foi professora da Universidade Federal da Bahia. Estreou em poesia no ano de 1969, quando conquistou o Prêmio Arthur de Salles com “Chão Circular”. Autora, entre outros títulos, de: “ABC re-obtido” (1974, poesia); “Os eternos tormentos” (1986, poesia); “Adonias Filho: representação épica da forma dramática” (1990, ensaio); “Doutor Augusto partiu” (1995, contos); “As esporas do tempo” (1997, poesia) e “Poemas da rosa” (2016, poesia).



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REFERÊNCIAS:

ANDRADE, Mário de. O empalhador de passarinho. 2. ed. São Paulo: Livraria Martins, 1955.

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Tradução de Vera da Costa e Silva et alii. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2009.

CIRLOT, Juan-Eduardo. Diccionario de Simbolos. Barcelona: Editorial Labor, 1992.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

JUNG, Carl Gustav. Símbolos em transformação. Tradução de Eva Stern. Petrópolis: Vozes, 1989.

MEIRELES, Cecília. Cecília e Mário. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

PARANHOS, Maria da Conceição. Poemas da Rosa. Mondrongo: Ilhéus, 2016.

RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

Cavalos-marinhos escondendo sentidos na poesia de Lúcia Leão.

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De todas as coisas que o mar não me ensina

O exílio é o grande tesouro.
Ondas que não
se quebram,
cavalos-marinhos escondendo
sentidos mais profundos com o movimento
nada natural
que só os animais mestiços exigem
e imaginam.

Casa é uma caixa sem fundo
escapando,
palavras como infinito
oceano generoso - constante
espuma.

Uma cauda que pede
um nada de fechamento
futuro.           



aninhada

uma árvore não precisa
de parceiros -
elogios e
glória

é seu destino

o ar é um fator,
água e vento
nunca rejeitados

ela tem raízes,
porém,
braços que esperam



No ar

Achamos a família sem-teto morando
no terraço da nossa casa,
e não ficou claro se eles haviam subido
pelas paredes ou não.
Estavam cuidadosamente usando
a mesa
que havíamos guardado lá,
com as cadeiras
próprias para o deck
da piscina
que já não possuíamos mais.

Espalhados ao redor,
os restos
das suas estradas de antes,
e de mar,
porque nitidamente
eles haviam vindo de longe demais.
Um tinha uma cruz no pescoço,
os outros pareciam zombar
do destino óbvio
do seu design.

Nós não os chamamos
de vizinhos
nem de convidados.
Não os chamamos de
absolutamente nada.
Não trancamos as portas
de noite para dormir.

Eles podem ter vindo do alto. 



É noite e ninguém vem

A porta se esquiva da luz
como fazem as crianças
para perpetuar
momentos
que um dia chamarão 
intimidade

Há traços por debaixo
da noite que aliviam,
é certo, há nomes
divinos
que não são ditos,
mas que se resmungam

Nos sapatos, de manhã,
afalta de forro,
apoio, borracha que fez
questão de escapar
pelos dias

É noite e ninguém vem


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Lúcia Leão mora nos Estados Unidos, tradutora em tempo integral e escritora. Formada em inglês e respectivas literaturas, mestre em literatura brasileira com foco em filosofia. Traduziu vários livros de filosofia do francês para o português pela editora 34. Nos Estados Unidos, trabalha com traduções e escreve contos e poesias em inglês e em português. Estreia este mês em Mallarmargens como correspondente estrangeira, trazendo uma poesia contemporânea norte americana e de outros países de língua inglesa, muito pouco conhecida por nós, bem como ampliando o diálogo dos poetas brasileiros com as publicações neste outro idioma.

Publicações de Lúcia Leão em Mallarmargens:





UMA BREVÍSSIMA HISTÓRIA DA POESIA JAMAICANA, por Kwame Dawes (tradução: Lúcia Leão)

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UMA BREVÍSSIMA HISTÓRIA DA POESIA JAMAICANA
Por Kwame Dawes*

(Tradução de Lúcia Leão)

Existe uma verdade simples sobre a Jamaica que se mantém porque os próprios jamaicanos se habituaram a esperar deles mesmos a autoridade, a confiança e a certeza de que podem contribuir com algo de valor e de novo ao mundo, em qualquer campo que seja. Esse padrão está enraizado na história.
Poucas pessoas sabem que, durante o período de expansão colonial, no auge do comércio de escravos e no boom econômico da produção de açúcar, ilhas relativamente pequenas no Caribe tiveram uma importância imensa e foram disputadas em grandes batalhas pelas potências europeias. Poucas pessoas conhecem a dimensão desse processo. Esse interesse pelos corpos das pessoas negras e pelas terras dos povos nativos foi de caráter profundamente explorador e, em sua essência, destrutivo, e aqueles que herdaram essa ilha não podem ser culpados por terem herdado também a noção de que são importantes e cheios de possibilidades.  Além disso, a cultura da escravidão que se instalou na Jamaica é há muito tempo considerada uma das mais violentas e desumanizantes da história, e aqueles que sobreviveram a ela, e que até mesmo floresceram nessa cultura recorrendo à resistência e à rebelião, se consideram um povo engenhoso e imaginativo. Para eles, a sobrevivência e a criatividade são partes fundamentais da sua identidade.
Na Jamaica, é comum dizer “turn your hand and make fashion”, [“vire-se com o que você tem à mão”]. A ideia aqui é pegar uma coisa que possa ser comum, submetê-la a grandes inovações e criar algo que seja verdadeiramente de vanguarda, em termos de beleza e de importância – ou seja, produzir uma novidade. É correto utilizar esse contexto para se pensar nos jamaicanos no campo da música, nos esportes, na indústria e na literatura. A história da literatura jamaicana do período moderno é relativamente curta, mas suas raízes remontam à exploração colonial, à criatividade dos escravizados, e às forças espirituais e políticas que iriam delinear uma cultura da maneira como fizeram.  É uma literatura marcada por um vínculo profundo com a África e com a cultura africana, com o inevitável hibridismo criado pela pressão das culturas em um relacionamento forçado em um espaço frequentemente volátil, e por uma busca por liberdade. Assim se daria o surgimento da literatura jamaicana moderna, no início do século vinte.
Como a ilha se posicionou como um importante ponto de congregação cultural do Caribe de fala inglesa, é significativo que muitos dos grandes escritores da região tenham passado muito tempo na Jamaica enquanto desenvolviam seu corpus poético. Basta citar dois nomes: Derek Walcott e Kamay Brathwaite. 
No ponto máximo da poesia jamaicana situam-se duas mulheres que em gerações diferentes definiram os elementos centrais da poesia da ilha: Louise Bennett e Lorna Goodison. Benett é mais conhecida pelo uso que faz do vernáculo jamaicano na sua poesia, que acabou definindo uma linguagem e uma sensibilidade jamaicanas peculiares. A poesia de Goodison concentra-se em mapear o cenário cultural da ilha através de um lirismo elegante que foi significativamente moldado por formas folclóricas e pela música reggae.
Além de Bennett e Goodison, há uma lista impressionante de poetas que ao longo dos anos surgiram como vozes importantes na poesia em âmbito mundial. Poetas como Olive Senior, Claudia Rankine, Shara Ma Callum, Linton Kwesi Johnson, Lillian Allen, Mark McMorris, e Jean Binta Breezesão vozes influentes no Caribe e fora do Caribe. Porém, o mais empolgante é o fato de a ilha estar produzindo algumas vozes novas que estão ganhando prêmios importantes em todo o mundo edando realmente uma continuação de peso ao legado deixado por poetas como Anthony McNeill, Edward Baugh, Pamela Mordecai, Mervyn Morris, Neville Dawes, Mutaburuka, eMikey Smith. 
Há listas, mas listas só são úteis caso se deseje pesquisar a poesia de uma ilha de tamanha complexidade e beleza. Alguns nomes que estão surgindo e que são instigantes: Kei Miller, Tanya Shirley, Safiya Sinclair, Ishion Hutchison, Millicent Graham, Ann Margaret Lim, e Aza Weir-Soley.  A principal editora da literatura caribenha, Peepal Tree Press, orgulha-se de ter muitos desses poetas no seu catálogo, e quem estiver interessado em se informar melhor sobre o que impulsiona a poesia da ilha da Jamaica deve navegar pelo seu website,onde encontrará algumas joias espetaculares.

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*Kwame Dawes é autor de vinte livros de poesia e de vários outros livros de ficção, de crítica e de ensaios. Seu livro SpeakfromHeretoThere, uma coleção de poesias escritas em coautoria com o poeta australiano John Kinsella foi lançado em 2016. Seu livro mais recente, City of Bones: A Testament, da NorthwesternUniversity Press, será lançado em 2017. Ele é editor da revista literária Prairie Schoonere professor da Universidade de Nebraska e do Programa de MFA (Master of Fine Arts) da Pacific University. Kwame Dawes é também diretor do African Poetry Book Fund e diretor artístico do Festival Literário Internacional Calabash. 

A poesia jamaicana de Kwame Dawes, tradução de Lúcia Leão.

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COMO ESCOLHER UMA ÁRVORE PARA ENFORCAR ALGUÉM


Cena pastoril do heroico sul,
Os olhos esbugalhados e a boca torcida,
Perfume de magnólias, doce e fresco,
E de repente o cheiro de carne queimada.
Lewis Allan

As árvores jovens podem parecer resistentes, mas não têm memória, são tenras e verdes e tão próximas ao chão que se dobram com o peso repentino; e a verdade é que nem todas as árvores podem aguentar o peso de um homem morto e permitir que haja ar suficiente entre os pés estirados e a terra, altura suficiente para que o cheiro de carne putrefada seja levado longe o bastante para servir de mensagem para aqueles que farejam o ar abafado em busca de notícias.

Por mais velho que possa parecer com sua casca enrugada, ramos retorcidos e galhos caídos, por mais velho que possa parecer sentado à beira do canal, aquele carvalho sulista entende os rituais simples do enforcamento. Veja, ali está a reentrância natural por onde a corda vai deslizar e se prender, e aqui, neste ângulo especial, o ar úmido do rio, carregando a deterioração por milhas e milhas.    

Às vezes uma árvore jovem simplesmente morre depois que a urina de um homem moribundo penetra suas raízes. Às vezes uma árvore começa a apodrecer de culpa ou de algo como uma maldição. Mas as árvores velhas, calejadas pela chama dos raios de verão, e endurecidas até as lágrimas, sabem que de nada vale ser uma árvore, muda e desalmada, se ela não for suficientemente forte para sustentar um homem até que ele se transforme em ar.








FUNK NEGRO

A rigidez do meu maxilar
é força forjada no forno
de cada golpe que eu levei;
meu andar requebrado é como 
a compensação  para um coxo.
Não se ressinta do meu rebolado
exagerado, é tudo que eu tenho às vezes.
Porque eu conheço bem
o jeito como você me encara, 
olhos pálidos azuis como a lâmina
de uma machete
refletindo a cor de um novo céu,
o jeito como você mal sussurra
suas ordens, cospe a comida,
reclama do meu passo arrastado,
fungando com desprezo minha morrinha 
vendo defeito em tudo que eu faço,
nada está certo, nada está bom;
o jeito como amaldiçoa meus filhos como cães,
porque eu sei que você sofre,
sua amargura pingando pela baba
quando eu viro as costas,
quando o meu traseiro negro
balança daquele jeito que você odeia,
cruzando, feito pavão, este salão de punhais.
Eu sei que você se pergunta o que eu tenho
lá embaixo, na minha barriga, nas minhas coxas,
que faz ele sair do seu lado,
se esgueirar da própria pele de palidez doentia,
e uivar como um animal à noite,
choramingando como um bebê sem mãe, 
mamando em mim, mamando em mim.
Você não consegue esconder a humilhação que sente
por saber que às vezes eu me recuso a ele, 
eu sei que você sabe, pelo jeito
como ele goza em você, brusco e apressado,
buscando um buraco onde chorar sua alma —
sim, eu o mando embora quando eu quero,
e mesmo assim ele volta e pede mais.  
Às vezes meu orgulho bate.
Sei que você não pode imaginar sua insignificância,
artigo periférico  da poderosa e branca semente dele, 
troféu intocável e sem sal com seu cabelo dourado.

Eu conheço o jeito como você tenta me decifrar,
tenta ser eu, não pode ser eu,
nunca será eu, nunca sentirá o que há de negro
em mim, nunca conhecerá o blues em mim,
porque você nunca quer se ver
em mim, mesmo se juntas nós sangramos,
descobrindo os ritmos das marés da outra, 
e inchando juntas como irmãs,
acumulando juntas as águas da lua.

E eu passo rebolando pela sua vida,
esgueirando-me das lâminas com a minha pele curtida. 
Eu abuso de você, e quando ele berra,
é o meu orgulho em ação,
é tudo o que eu tenho, às vezes.
Eu vou preparar as suas refeições
até ele morrer,
e você pode apenas aceitar
porque eu aceitei sem reclamar
quando ele forçou o nada que ele é a mim,
quando meus filhos chuparam o dedo
ao som do meu lamento;
eu paguei, querida;
estou só colhendo o que vocês todos plantaram.






VISÃO
Para Ruanda

Toda foice devia ter um olho
para ver o estrago
que causa. 

Hoje, nossas ferramentas são feitas
em fábricas. Machetes
cegas como pedras chegam
empilhadas em caminhões. 

Elas não veem
os olhos suaves
de uma criança. 

Toda foice devia ter um olho
para ver o estrago que causa. 






ENREDO
                               
Para Troy Maxson

Um homem deve construir uma cerca ao redor da vida.
Um homem é uma coisa comum – carne e osso.
Um homem transa com sua mulher; existe amor aí.
Eles fazem filhos. Essas criaturas
cagam, choram, crescem, comem; podem tornar um homem
menor do que ele imaginava. Amar, também.
Um homem pode lucrar com a infelicidade
de seu irmão – é o silêncio
de Deus. Se você pecar uma vez, pode
sentir o cheiro do enxofre no ar, ver
o brilho da maldição no céu
do oriente; e o trem pega velocidade.
Mas a noite cai, o dia chega
e Deus não chegou. Você peca
a segunda vez e o pecado desliza na sua garganta
como melado, e você sabe que essa
necessidade de rir, essa fome das necessidades
de uma mulher – a necessidade que ela tem
da sua pele, da força do seu corpo, essa mentira 
que ela conta todos os dias sobre a melancolia
até você chegar – é dádiva de Deus,
aquilo que ele sabe que você precisa
para ser um homem bom, um homem lascado
e enferrujado, mas um tipo de homem 
“existem-piores-do-que-eu”. Peque sete vezes
e você esquece o sentido
das palavras. Você diz ao céu aberto
enquanto caminha para casa,
seu corpo ainda doído pela avidez
devoradora dela, você diz:
“Este é um hino de louvor; só
o todo-poderoso poderia criar
corpos dignos de tanta doçura”. Um homem
quer ter a tranquilidade do lar,
a ordem dos silêncios; um homem quer
filhos obedientes e a graça
dos céus para dizer, sim, este finalzinho
de doçura, este modo como suas ereções –
coisas tão preciosas agora – não são
desperdiçadas nesse desinteresse fatal,
esse resgate do último desejo,
a última lembrança da masculinidade –
isso também é dádiva de Deus. O enredo
vai acabar com a ordem, a esposa
saberá a verdade, a amante ficará
grávida, e os filhos e filhas
lamentarão os pecados de seu pai.
É assim que uma história é contada. Tudo que temos
são as faíscas breves das risadas ao longo da estrada. 





ENREDO

Um homem com voz embargada chega ao entardecer
com uma menina pequena no braço; ele fala
pouco, só diz que está procurando uma mulher
chamada Aleluia. É a busca
por uma mulher fugida que desencadeia um enredo.
Ninguém sabe o que ele quer fazer
quando a encontrar, ninguém sabe
por que está procurando por ela. Alguns de nós
sentados no quintal, olhando fixamente
os vaga-lumes lançando-se na escuridão,
imaginamos uma facada cruel, um corpo
estirado no chão, as mãos dela
para cima, uma pergunta na sua
boca retesada. Pensamos nele também,
desmanchando-se diante dela, chorando,
implorando por uma segunda chance. E alguém
menciona o homem com quem ela deve estar agora,
talvez um pastor, ou soldador,
ou quebra-pedras. Pensam nele
levando um tiro no rosto, caindo
de costas, inerte, chocado em ver
com que facilidade a morte pode chegar. Mas
não sabemos; uma noite lívida
abate-se sobre nós
com  histórias do que poderia
ter acontecido, a psicose
de um homem que viajou centenas
de milhas, por toda a Carolina do Norte,
cruzando West Virginia e atravessando o
Potomac para adentrar as espessas colinas
verdes de Maryland, antes dos céus
límpidos da Pensilvânia – caminhando,
empoeirado, os olhos empapados de tristeza
e da loucura da fome; caminhando
com essa criança ao seu lado, perguntando a estranhos:
“Vocês viram, vocês viram, vocês viram?”
sempre esperando que alguém tenha visto. Um velho
embusteiro profetiza cegamente as regras
do encontrar, as leis do seguir,
os cálculos do prender e do libertar.
Tem gente cuja maldição é ficar presa a outros,
um feitiço que pode ser comprado.
Quando uma pessoa é enfeitiçada e presa,
um dia ela saberá que odeia
aquilo a que está presa, mas não poderá partir
sem que sua alma fique torturada. Mesmo assim
ela irá, e aquele que foi abandonado
seguirá atrás. Voltamos então ao homem que quer achar
a mulher que o abandonou com uma menina.
Alguém conhece essa mulher e
ela também conhece alguém; é assim
que uma história começa; o drama
está em buscar o que foi perdido.







_______________________________________
*Kwame Dawes é autor de vinte livros de poesia e de vários outros livros de ficção, de crítica e de ensaios. Seu livro Speak from Here to There, uma coleção de poesias escritas em coautoria com o poeta australiano John Kinsella foi lançado em 2016. Seu livro mais recente, City of Bones: A Testament, da Northwestern University Press, será lançado em 2017. Ele é editor da revista literária Prairie Schoonere professor da Universidade de Nebraska e do Programa de MFA (Master of Fine Arts) da Pacific University. Kwame Dawes é também diretor do African Poetry Book Fund e diretor artístico do Festival Literário Internacional Calabash. 

Tradução: Lúcia Leão.

neolib [por Nuno Rau]

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neolib
Nuno Rau

estou no coração do centro da cidade do rio de janeiro.

ando pela avenida atordoado com meus desejos
de classe e converso com um desconhecido
amigo que trabalha em frente à mesma
janela de onde vejo a torre órfã de uma igreja
em cujo topo uma mulher pisa a orbe
diminuta como são diminutos os meus sonhos
de classe mediados por páginas que querem que eu
veja as coisas como as coisas realmente são
do jeito que nelas aparece sob a fina membrana
ou névoa que a tudo envolve enquanto salta
do papel um sorriso platinado e úmido
que me desvia os sentidos do medo que sinto
que da curva abrupta da próxima esquina
pulem na minha frente os meus pesadelos
de classe na forma de garotos armados
até os dentes cariados que entopem bocas
falando dialetos que não entendo e empunhando
lâminas pra riscar a verdade bem fundo
em minha carne.

se bem me lembro era um mês de junho quando
nesta mesma avenida assisti descerem de carros
alegóricos da polícia militar elementos à paisana
que se infiltraram na multidão fortemente armada
de flores e palavras - eles traziam máscaras
ninja escondidas nos bolsos e outros apetrechos
para insuflar a massa em direção às brigadas
fardadas e alinhadas atrás de escudos em todas
as rotas de fuga portando amplos estoques de balas
de borracha e sprays de gás de pimenta adquiridos
pela alocação de recursos que custam o massacre
da educação dos garotos que saltam do meu pesadelo
de classe para as casas de detenção enquanto aspiram
o vapor azul cobalto do crack antes de empunharem
armas brancas que são espelhos dançando
na frente de meus olhos numa hora em que a membrana
invisível não me protege.


paro na frente da banca de revistas com meu interesse
na cotação de hoje das ações da empresa estatal
que despencaram inacreditavelmente pensando
em comprar um substancial lote delas porque lastreadas
na imensa riqueza nacional que também é dos garotos
que no meu pesadelo interpretam o papel de feras
filhas de um massacre e penso a vida virou um drama
burguês de quinta categoriaenquanto as imagens
do papel jornal mostram a cara de um servidor
do sistema democraticamente eleito pelos cidadãos
de outra cidade que exibe seu sorriso
blindado e sem cáries afirmando ser preciso virar
a página do massacre do bom senso e da educação
porque tudo não passa de agitação de elementos
infiltrados que tornaram imprescindível o uso
da repressão violenta do aparelho de Estado
governado por sua pessoa acessível e aberta
pelo diálogo armado de valores éticos e cristãos
que estão aí para combater a intolerância de quem
se manifesta contra o massacre da educação
do garotos da esquina que meus projetos
de classe querem mandar mais cedo para trás
das grades que protegem meus melhores
anseios democráticos.

a noite alcança a cidade maravilhosa.

minha fé se desloca entre os abismos das palavras:
assim como tudo um dia espero emudecer
e não gosto de versos de circunstância (não faças
versos sobre acontecimentos, ele disse) como
também quase sempre não gosto quando poesia
e política se amam muito abertamente – mas
espero emudecer
 espero emudecer enquanto
meu corpo inteiro pensa: cinquenta anos

e nenhum

A poesia de Ingrid Morandian

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Imagem: Pixabay


Cinco poemas de Ingrid Morandian





I

amanheço lenda na feitura de tuas mãos
da soleira da porta, pulso algas azuis
infinita sombra de memórias,
ávida, sede de mim

talvez não permaneça aqui, encontre-me
nas páginas da magia, esfumaçada de ler
no contorno de caneta azul,
da caneta que absorve cerejas

na luz fugidia do quarto
arrebentou um solo de piano, um rasgo
no rosal azul, escrevo-me
esvaziada, histórias de recomeços


*
 
Pelos olhos de Pagu

o Gonzaga amanheceu desbotado
os olhos afluentes
em desacordo com o corpo
saí do meu quartinho de chuva
des-vestida
a orla
acenava nebulosa
sem sorrisos, sem dobradiças
guarneci os olhos de ondas
desfiz o imaginário
das horas mortas
ditei meu corpo nas ruas
descosturando calçadas
prédios
casas amputadas
prédios
alcancei o centro descascado
a Tribuna dividida entre quarteirões
a João Pessoa sem identidade
a Senador Feijó triste
com suas meretrizes insidiosas
esquinas em coro
aportei no fim da rua
em containers de emoções
o caís
tudo é tão longe
China
França
Rússia
você
interditada, de mãos sujas
revidei
a luta, as surras, as traições, os dissabores
revidei
revidei com a arte

*

Um dia

por vezes infinita andarilhei
pelas pernas da Rita
acendi aquele cigarro-canela
na tarde embolorada de sábado

perturbada com a leitura
de Beckett
catei folhas da calçada, catei gritos
e alguns poemas do abismo
amasso todos os recados de Rita
ainda ecoando abafados

das pernas da Rita inaugurei
o sexo agridoce
reinventando um país oblíquo-distorcido
Rita
perene o olhar na cidade
as ruas mouras e turvas

dentro da íris, um dia coube
a imensidão do silêncio
soltando navios

um dia coube, dentro do rosto
um punhado de chuva
na boca da Rita

*

Desmentiras

o vaso laranja ainda permanece na mesa
da sala
um grilhão de pontos de luz
cercam a porcelana
miríades despontam do terraço
e estranhamente
as mãos dela pousaram na finitude do tampo
e a bússola afina seus olhos
o arrefecer de uma tarde ensolarada
desmancha as mentiras no panteão
mais uma vez os egípcios levaram os restos
de pergaminho

*

O outro

é um equívoco pensar que os corvos
voltarão para a terra dos desejos
enaltecidos como estão, sobrevoam
totens de pedras e calcários em silêncio

incursionam pelo mundo das monossílabas
apagam o caos
e extinguem as vozes interiores
soprando relâmpagos e raios

lançam poemas na areia negra
que chegam ao longo do porto
alguém beija a janela usando espelhos
e entregam-me uma bandeja de cactos






Ingrid Morandian - “Como titereiro, no silêncio, brinco com as palavras na composição de textos. Estanco na fronteira do real e da ficção, e esvazio de todo eu através da escrita.” Publicações: Água Terra Fogo Ar – Crônicas elementais, Ed. Uapê, 2011 – História intima da leitura, Editora Vagamundo, 2012 – Revista Plural 1900 e Revista Plural La barca, 2016, Ed. Scenarium Livros Artesanais, Senhoras Obscenas, 2016, Editora Benfazeja.




3 POEMAS DE VALESKA TORRES

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Carne Moída

Torrando no meio fio do Ceasa,
homens armários me olham de esguelha,
sabem que ferida aberta é lugar para mosca botar ovos.

Abobrinha carne moída arroz feijão
o prato está na mesa.

Rolam os dados
no tribunal
vencem
os mais fortes
de pele
de olhos
de cabelos
de sacos
no cemitério de Inhaúma
um atrás do outro

Pretos acumulam cargas,
dentro de caminhões baús
o burrinho sem rabo empena
no sol à pino
saem gargalhadas
ele ri de mim
ri de todos
exceto
das sungas maiôs

Búzios. General Osório. Zona Sul.
Praias e mais praias com gente miúda na quarta-feira
o dólar está em alta magra sexy salto 15 saindo da boate um escândalo
na bolsa da mulher foi baleado um garoto correndo entres os carros na avenida
Nossa Senhora de Copacabana, onde a Senhora se escondeu?

Anteontem pintei minhas unhas
de vermelho
nas ruas de São Paulo
o gongo soa em colapso nervoso grita comigo,
não sei revidar

Acumulam-se inacabados:
cinco ou seis projetos arquitetados que estão a essa hora do dia remendados com fita crepe.
dois ou três possíveis relacionamentos que nunca disseram a hora ou o lugar de encontro.
um quebra cabeças, duas costuras no rasgo de minhas blusas e 46 horas mal dormidas.
Depois de velha e pelancuda o que me resta é ser comida pelas traças
em mim cabem
vigas aço concreto camisinhas cacos estiletes balanças dedos esmalte absorvente fígado queijo nojo


-


Espectro

ainda é permitido enrolar tabaco em folha de seda nas praças públicas
ainda as praças são públicas

nos cômodos de minha casa me são negados cartões de créditos, cheques
homens
são tempos de ligações desesperadas em busca de cesta básica
de esgoto amarronzado bosta carne comida camisinhas usadas
                                                                         de casca de paredes rachadas limo

estiletes em latim
cortam os homens frágeis
que nunca habitaram nada
sequer um metro quadrado do meu seio

as horas do almoço são mínimas
as cozinhas também
todos em caixas de papelões revirando sacolas plásticas

no quitungo é noite
        nos seus olhos
nos seis olhos
   nossolhos
debaixo de carapuças
a observar
espectro na porta à noite,
invade as persianas
cinzas,o mofo
esconde-se entre as almofadas.
o edredom roxo com ursos e pirulitos rosas

preenche o meu quarto, na neblina;
um guarda volumes abarrotado de coisas usadas; uma soleira de madeira; o espectro de casaco preto com um copo de vinho nas mãos, espreita meus sonhos tingidos de amarelo gema.

a vingança destruiu as suas melhores horas, digo a ele.
uma seda comprada a varejo,
e o corpo já não se satisfaz só pelo estômago
- coração é máquina do tempo
entre os dedos queimados
o beck em nossas mãos
termina em feridas.


-


Corações de Alcachofra

corações de alcachofra em conserva de óleo
mastigados depois do jantar
sobre a mesa
os pratos, os talheres, os corpos usados

abutres miúdos e vesgos
rasantes
afiam suas unhas no amolador de facas

arrancam as peles gorduras
jogam na vala atrás de minha casa
desfiguram a carne putrefata

explosões sucateiam o ferro
agora corroído serve de mordaça

a cidade dorme como se nunca houvesse
amanhecido. na madrugada
forra-se o tapete infestado
de ácaros

odor de alho na sola dos pés
caminhando sobre as ruas
os velhos não usam sapatos
deus não anda entre os meus
sobrevoa em helicópteros
arranhas céus
onde dorme em colchão de penas




*    *    *



Valeska Torres nasceu no Rio de Janeiro, Marechal Hermes em 1996. Mora em Irajá. Publicou poemas em "Do rio ao mar", coletânea de poemas, crônicas e contos, e no jornal bairrista Rio Suburbano. Contato.








A antologia LÍNGUA RARA está no ar !

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O nosso português é uma língua estranha na América Latina, pois não compartilhamos do espanhol que une o continente. Somos estranhos em nosso próprio mundo e isso explica muita coisa sobre a relação do Brasil com os nossos hermanos latinos. Pensando nessa diferença linguística, o escritor mineiro radicado na Paraíba, Bruno Ribeiro (Febre de Enxofre), organizou a antologia de contos Língua Rara, em parceria com a editora argentina Outsider. Uma antologia porteña, mas em português. Para compor a nossa língua rara, Ribeiro convocou distintos autores brasileiros, de editoras independentes a grandes, são eles: Adriana Brunstein, André Timm, Camila Fraga, Carlos Henrique Schroeder, Diego Moraes, Eduardo Sabino, Irka Barrios, Letícia Palmeira, Luisa Geisler, Micheliny Verunschk, Noemi Jaffe, Priscila Merizzio, Ricardo Lísias, Roberto Denser, Roberto Menezes e Sérgio Tavares. São 16 autores, 8 homens e 8 mulheres. Os contos passam por assuntos diversos, desde os horrores da ditadura a relatos absurdos, cômicos e inusitados. A antologia será digital e gratuita e estará disponível para download no novo site da editora Outsider, que será lançado em maio. O endereço é www.eloutsiderdigital.com
Antologia Língua Rara

Editora Outsider

Organizador: Bruno Ribeiro

Formato: e-book

Lançamento de URUBUS EM CÍRCULOS CADA VEZ MAIS PRÓXIMOS, de César Cardoso.

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Urubus em Círculos Cada Vez Mais Próximos” 
~ já nas livrarias ~


O roteirista, escritor e blogueiro Cesar Cardoso, estará na terça-feira, dia 2 de maio, no coletivo Clube da Leitura, residentes, Casa Rio, rua São João Batista número 105 em Botafogo. Ele falará do seu novo livro de contos, Os Urubus em círculos cada vez mais próximos, editado pela editora Oito e meio. O coletivo segue uma linha de leituras de motes (textos de ficção e ensaios) e produção de textos ficcionais. O mestre de cerimônia que conduzirá o evento será Eduardo Cavalcanti, um dos membros do grupo. À partir das 19 horas da noite, entrada franca.
 Cesar opta por construir um projeto de obra, em vez de simplesmente juntar textos. O livro é uma reunião de contos curtos, adotando a ideia de Cortázar de que no conto o escritor deve vencer por nocaute. À velocidade da linguagem se une um tom fantástico criando um universo mágico nas histórias. São aspectos que pegam o leitor de surpresa e o prendem à leitura. Cesar também trabalha muito com um jogo de informações culturais e de referências, que vão da literatura à música. É dessa forma que ele abre o livro contando a sensação da primeira Bienal do Livro realizada no Rio de Janeiro: uma luta de box às escuras entre Jorge Luis Borges e Franz Kafka. O livro ainda visita e reconta as Mil e Uma Noites, o Sítio do Picapau Amarelo, a tragédia que surpreendeu os Beatles em Abbey Road, o assassinato de Manuel Bandeira, a ida de Alice, não ao País das Maravilhas, mas a uma clínica psiquiátrica, um decreto-lei dispondo sobre os Escravos de Jó, a clonagem de Cristo e até mesmo uma outra humanidade criada por Deus.   
O ritmo veloz, o lirismo, o humor, muitas vezes amargo e corrosivo são marcas do estilo de Cesar, um autor que também transita entre a literatura infantil, a poesia, a dramaturgia e o humor. Cesar também é editor do blog literário Patavina’s ( www.cesarcar.blogspot.com).

“Cesar Cardoso é íntimo das palavras. Utiliza-se delas para nossa diversão, mas não abandona o potencial de comoção que habita o fundo de cada uma delas.”
Mariel Reis

“Não tenho regras para produzir. Às vezes olho um fato na rua, quero falar dele e a forma que surge pode ser o conto. Às vezes é uma crônica de humor, ou uma poesia. Isso pode acontecer também a partir de algo que eu leio, algo que eu sinto ou sonho, uma conversa com amigos, uma situação qualquer com a mulher que eu amo. Há também as encomendas. Uma editora me pede um livro infantil novo para esse ano. Ou o texto que eu tenho que aprontar para a TV. Ou um dos blogs onde escrevo me pede um poema. Tenho a sensação de que a literatura devia ocupar um lugar maior dentro de mim. Mas tudo é pouco. Até o tempo para o amor e para o encontro com os amigos.”
Cesar Cardoso 

“Em todos os contos Cesar Cardoso imprime sua marca de narrador experiente, seguro do que é escrever bem.”
Ronaldo Correia de Brito, na apresentação do livroAs Primeiras Pessoas

“O humor é uma presença forte na minha forma de olhar o mundo. E não podia deixar de estar presente na minha obra literária. Com o tempo, ele foi ficando mais cáustico, uma reação natural ao mundo que nos cerca. E é inevitável pensar meu fazer literário, os instrumentos desse meu trabalho. Em qualquer atividade humana o fazedor acaba por pensar o fazer. Da literatura até o muro da esquina.”  
Cesar Cardoso

“Narrativas que estraçalham as ilusões que cultivamos a respeito do Eu, denunciando seu caráter provisório e sua inconstância, e desmascarando sua aparência una e imutável.”           José Castello, em crítica sobre o livro As Primeiras Pessoas
“Para que serve a literatura? Pra nada. E num mundo onde todos querem tudo o tempo todo, talvez o nada seja a coisa mais importante.”
Cesar Cardoso


Sobre Cesar Cardoso
O carioca Cesar Cardoso nasceu em 1955 e é formado em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 2012 publicou o livro de contos As Primeiras Pessoas, pela editora Oito e Meio. E em 2015 lançou coisa diacho tralha(poesia), pela editora Texto Território. Escreveu para a revista Caros Amigos e para os jornais O Pasquim e O Planeta Diário. É roteirista, tendo escrito programas de tv como Tv Pirata, A Grande Família e Sai de Baixo. Atualmente é roteirista do programa Zorra, que em 2016 foi indicado ao International Emmy Awards de melhor comédia. Ainda pela Oito e Meio, participou de algumas coletâneas, como Para Copacabana, com amor. Seu conto publicado nessa antologia – “Ai de mim, Copacabanafoi selecionado para o livro The book of Rio, lançado em 2014 na Inglaterra pela editora Comma Press. Participou da Coletânea Prêmio Off Flip de Literatura – 2009 com o poema “Carochinhas brazileiras”e da ColetâneaPrêmio Off Flip de Literatura – 2015, com o conto“O veredito”, que faz parte do livro Os Urubus em Círculos Cada Vez Mais Próximos.  A fotografia é outra expressão artística de Cesar. Participou de diversas coletivas e em 2010 realizou a exposição No Vermelho Piscante Gire Com Cuidado, no Centro Cultural Carioca. Na área de literatura infanto-juvenil, lançou pela editora Biruta, O que é que não é? (selecionado para o PNBE e para o Programa PNLD Alfabetização na Idade Certa, do Ministério da Educação), Você não vai Abrir?e O gigante do Maracanã, este em 2014. Pela editora Gaivota, lançou Quem pegou uma ponta do meu chapéu de três pontas que agora só tem duas?Lançouainda Você pensa que água é H₂O?(editora Garamond) e Capoeira camará (editora Paulus), livro que recebeu o Selo Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Os livros Capoeira camará e O gigante do Maracanã foram selecionados pela FNLIJ para fazer parte do Catálogo do Brasil para a Feira Literária de Bolonha, na Itália, em 2013 e 2015, respectivamente. Ainda em 2015, O gigante do Maracanã foi selecionado para o Acervo Básico da FNLIJ. É colaborador do blog Caneta Lente e Pincel (http://canetalentepincel.blogspot.com.br) e editor do blog literário PATAVINA’S (www.cesarcar.blogspot.com).

Outros livros publicados:
Contos
Dedo de Moça – uma Antologia das Escritoras Suicidas. Coletânea organizada por Silvana Guimarães e Florbela de Itamambuca (Terracota Editora). Textos publicados sob o heterônimo de Alice Barreira. 
A Polêmica Vida do Amor, Coletânea organizada por Daniel Russell Ribas e Flávia Iriarte. Editora Oito e Meio. 

Literatura infantil
A Serra do Sobe-Sobe, Fim da Picada Começo de Estrada e Manu,Ela (Editorial Nórdica) e O Lápis Ladislau (Editora Miguilim).

Poesia
A Nossa Moranguíssima Paixão(Editora da UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro).
Escriptonita. Coletânea organizada por Alberto Bresciani, Alexandre Guarnieri, Jorge Elias Neto e Nuno Rau (Editora Patuá, 2016).
Humor
O Pai dos Burros(Editora Salamandra) e, com o grupo Obrigado Esparro: Confusões de Aborrecente e Garotas São Demais, Garotos São de Menos (Editora Frente); Como Educar Seus Pais e Zoando na América (Editora Objetiva).


Sobre a editora Oito e Meio

Fundada pela cineasta Flávia Iriarte, a Editora Oito e meiofoi inaugurada em 4 de novembro de 2010, com a proposta de lançar novos autores e investir na literatura contemporânea. Com 24 livros publicados, tem obtido reconhecimento pela qualidade literária e gráfica de seus livros, além de participar de alguns dos eventos de literatura no Brasil, como a Balada Literária e a FestPoa. A Oito e meio possui uma sede no Flamengo, que serve como livraria para outras editoras de perfil similar e local para seus lançamentos. Os livros podem ser encontrados no site e em livrarias no Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre.

URUBUS EM CÍRCULOS CADA VEZ MAIS PRÓXIMOS
EDITORA OITO E MEIO
124 PGS.
ISBN: 978-85-5547-041-7

PREÇO: R$38,00

Don Juan: o único sobrevivente do naufrágio. E agora, lorde Byron? - tradução de Lucas Zaparolli

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Don Juan encontrado por Haydée, de Ford Madox Brown.





Don Juan: o único sobrevivente do naufrágio.
E agora, lorde Byron?

Celebrando o bicentenário da obra (1818 – 2018)

Publicamos aqui na Mallarmargens a tradução do começo e do meio do “naufrágio de Don Juan”.

E agora este trecho que segue é o fim.
Após provar todas as mais sinistras sensações – fome, frio, calor, tédio e chegar ao canibalismo – finalmente os poucos sobreviventes do naufrágio avistam terra, mas apenas Don Juan chegará vivo a ela.
Mas vivo em que condições, para que, onde e quando?  Seria a ilha do Cíclope ou de Calipso ou de Circe ou de uma novinha?
Esse trecho é uma sátira da Odisseia, quando Ulisses é encontrado por uma princesa. Byron cita, neste trecho, ironicamente, claro, versos de outros poetas, Butler, Southey, Pope, Coleridge etc.

A tradução buscou, dentro do impossível, traduzir toda a forma e o conteúdo. 



CANTO II


XCVII.
A luz esvaece o vento, vindo o dia,
     Quando o vigia jura e vocifera,
Que se não é terra o que com o sol surgia,
     Nunca mais ver terra na vida espera.
E o resto esfrega o olho e vê uma baía
     Ou achou que via, e à costa o rumo altera,
Pois costa era e conforme menos dista
     Cresce distinta e palpável à vista.


XCVIII.
E assim alguns ficam em pranto quedos,
     Noutros olhar de estúpido é o que vês,
Sem esperanças distinguir dos medos,
     Como nada a importar-lhes desta vez,
Poucos oram (depois de anos sem) e do
     Fundo do bote há repousando uns três;
Sacodem-lhes cãs, mãos, membros absortos,
     Tentam lhes acordar, mas estão mortos.


XCIX.
Um dia antes, dormindo na água à deriva,
     Lá ia uma tartaruga-de-pente,
Suavemente e por sorte a pegam viva,
     Que lhes rende um dia a mais, e pra sua mente
Proveu uma coisa bem mais nutritiva,
     Que é uma coragem que lhes põe em frente.
Viam que em perigo tal, mais que fortuito
     Deu-se isto de sua salvação no intuito.


C.
A terra era uma costa alta e rochosa,
     Com montanhas que crescem (se inferiu),
E um rio por entre elas. Em várias cousas
     Pensaram, mas nenhum só descobriu
Em que parte do globo o bote pousa,
     Tão inconstante vento os impeliu.
Pensam no Monte Ætna, noutras ilhas, pode
     Ser os montes de Creta, Chipre, Rodes.


CI.
Neste ínterim, vem um vento e lhes vale do
     Nada e os põe da bem-vinda costa adiante,
É a barca de Caronte, há espectros pálidos.
     Carga viva de quatro tripulantes,
Com mais três mortos, que de tão inválidos
     Falharam lançar ao mar como os de antes,
Mais dois tubarões que à sua fronte fixa
     Borrifa espirro d’água quando esguicham.


CII.
Fome, cólera, sede, calor, frio,
     Agiu-lhes sobre em turnos, fez-lhes tais
Coisas que a mãe não conheceria o “fio”
     Aí entre esqueletos de uns magros mortais.
Na noite frio, de dia ardor, e a fio,
     Matou um a um, até só isto restar, mas 
Foi autoassassínio o fato principal,
     Por se engolir Pedrillo n’água de sal.



CIII.
Já mais próximo a terra, aí se vê de
     Aspecto irregular este lugar,
E o frescor sentem do crescente verde,
     Que ondeava as copas, e alisava o ar,
Tela que caiu pra não mais só se ver de
     Tudo onda luzidia, e céu nu a queimar.
Qualquer coisa amariam, não tendo apego
     Ao salgado, horrível, infinito Pego.


CIV.
Viu-se erma a costa, sem sinal de alguém,
     Cercada de ondas bravas; mas tão loucos
Iam por terra, que foram mais além,
Conquanto à frente o mar quebrasse rouco.
Entre eles um recife agora veem
Na mais revolta espuma e spray, tampouco
Lugar pra se chegar ao chão se vira,
Correm pra praia e o barquinho vira.


CV.
Em seu Guadalquivir Juan foi habituado
     A banhar seus membros jovens sempre prontos,
E nesse doce rio aprendeu nado,
     Levara mesmo essa arte a um bom ponto.
Nadador melhor raro tem-se achado,
     Talvez cruzasse até o Helesponto,
Como uma vez (e orgulho disto temos)
     Leandro, Ms. Ekenhead, e eu fizemos.


CVI.
Daí, ainda enfraquecido, magro e duro,
     Forçou os membros joviais pra abrir caminho
Numa onda rápida e, antes do céu escuro,
     Ganhar o chão que aí está, alto e sequinho.
Um dos tubarões foi o mais inseguro,
     Que apanhou pela coxa um seu vizinho.
Não puderam nadar os outros dois,
     Ninguém, só ele, alcançou a costa, pois.


CVII.
Não a alcançaria sem o remo, que
     Foi providencialmente a ele arrastado,
Quando o braço esgotado desiste, e
     A onda dura esmagava-o afogado,
Veio ao seu alcance. Agarrou-o, e doía o baque se
     A água o açoitava ali nele enroscado.
Com nado e garra, enfim, e esforço infindo,
     Rola à praia, sem sentidos, do mar vindo.


CVIII.
Ali arfante, agarrou-se cravando a unha
     Logo à areia, pra que o retorno da onda,
Da qual se arrancou ao ruído que acabrunha,
     Não o puxe à tumba faminta que o ronda,
E ali imóvel, jazeu onde parou, punha-
     -Se à entrada de uma cava gruta, com da
Sua vida só o bastante pra que doa,
     A achar que se salvou, talvez, à toa.


CIX.
Ergue-se em tíbio esforço, lento e reles,
     Mas cai apoiado em seu joelho com sangue
E em sua mão trêmula; aí ele fita aqueles
     Que tinham sobre o mar sido sua gangue;
Pra chorar dor não avista nenhum deles,
     Salvo um, dos três famintos, corpo exangue
Morto há dois dias, que agora encontra estéril
     E ignota plaga para cemitério.


CX.
Quando o olha, gira tonta sua cabeça e a
      Queda vem; com a queda, a areia passa
E roda e roda, e seus sentidos cessam.
     Cai de lado, esticando a mão que abraça,
Úmida, o remo (o mastro de emergência),
     E igual a um lírio murcho, sua carcaça
Com graça e pálida à costa esparrama, a
     Mais bela coisa já composta em lama.


CXI.
Quanto em úmido transe o Juan jaz,
Não faz ideia, da terra não se lembra, o
Tempo não tem dia ou noite e nada mais
Ao seu sangue gelado e ao senso trêmulo.
Quanto o duro desmaio dura, não faz
Ideia, até que a dor no nervo e membro
E a veia a formigar pulsante à vida o volta,
Pois Morte perdeu, mas vai com revolta.


CXII.
Abriu o olho, fechou, de novo o abrira,
     Porque era tudo dúvida e vertigem.
Julgou-se estar no bote e só dormira,
     De novo o desespero exausto o impinge,
E a morte onde há descanso preferira,
     E aí retorna o siso à sua origem,
E os olhos marejados lentos veem
     Linda moça que dezessete anos tem.





Don Juan de Byron

CANTO II

XCVII.
As morning broke, the light wind died away,
     When he who had the watch sung out and swore,
If 't was not land that rose with the Sun's ray,
     He wished that land he never might see more;
And the rest rubbed their eyes and saw a bay,
     Or thought they saw, and shaped their course for shore;
For shore it was, and gradually grew
Distinct, and high, and palpable to view.


XCVIII.
And then of these some part burst into tears,
     And others, looking with a stupid stare,
Could not yet separate their hopes from fears,
     And seemed as if they had no further care;
While a few prayed—(the first time for some years)—
     And at the bottom of the boat three were
Asleep: they shook them by the hand and head,
And tried to awaken them, but found them dead.


XCIX.
The day before, fast sleeping on the water,
     They found a turtle of the hawk's-bill kind,
And by good fortune, gliding softly, caught her,
     Which yielded a day's life, and to their mind
Proved even still a more nutritious matter,
     Because it left encouragement behind:
They thought that in such perils, more than chance
Had sent them this for their deliverance.


C.
The land appeared a high and rocky coast,
     And higher grew the mountains as they drew,
Set by a current, toward it: they were lost
     In various conjectures, for none knew
To what part of the earth they had been tost,
     So changeable had been the winds that blew;
Some thought it was Mount Ætna, some the highlands
Of Candia, Cyprus, Rhodes, or other islands.


CI.
Meantime the current, with a rising gale,
     Still set them onwards to the welcome shore,
Like Charon's bark of spectres, dull and pale:
     Their living freight was now reduced to four,
And three dead, whom their strength could not avail
     To heave into the deep with those before,
Though the two sharks still followed them, and dashed
The spray into their faces as they splashed.


CII.
Famine—despair—cold—thirst and heat, had done
     Their work on them by turns, and thinned them to
Such things a mother had not known her son
     Amidst the skeletons of that gaunt crew;
By night chilled, by day scorched, thus one by one
     They perished, until withered to these few
But chiefly by a species of self-slaughter,
In washing down Pedrillo with salt water.


CIII.
As they drew nigh the land, which now was seen
     Unequal in its aspect here and there,
They felt the freshness of its growing green,
     That waved in forest-tops, and smoothed the air,
And fell upon their glazed eyes like a screen
     From glistening waves, and skies so hot and bare—
Lovely seemed any object that should sweep
Away the vast—salt—dread—eternal Deep.


CIV.
The shore looked wild, without a trace of man,
     And girt by formidable waves; but they
Were mad for land, and thus their course they ran,
     Though right ahead the roaring breakers lay:
A reef between them also now began
     To show its boiling surf and bounding spray,
But finding no place for their landing better,
They ran the boat for shore,—and overset her.


CV.
But in his native stream, the Guadalquivir,
     Juan to lave his youthful limbs was wont;
And having learnt to swim in that sweet river,
     Had often turned the art to some account:
A better swimmer you could scarce see ever,
     He could, perhaps, have passed the Hellespont,
As once (a feat on which ourselves we prided)
Leander, Mr. Ekenhead, and I did.


CVI.
So here, though faint, emaciated, and stark,
     He buoyed his boyish limbs, and strove to ply
With the quick wave, and gain, ere it was dark,
     The beach which lay before him, high and dry:
The greatest danger here was from a shark,
     That carried off his neighbour by the thigh;
As for the other two, they could not swim,
So nobody arrived on shore but him.


CVII.
Nor yet had he arrived but for the oar,
     Which, providentially for him, was washed
Just as his feeble arms could strike no more,
     And the hard wave o'erwhelmed him as 't was dashed
Within his grasp; he clung to it, and sore
     The waters beat while he thereto was lashed;
At last, with swimming, wading, scrambling, he
Rolled on the beach, half-senseless, from the sea:


CVIII.
There, breathless, with his digging nails he clung
     Fast to the sand, lest the returning wave,
From whose reluctant roar his life he wrung,
     Should suck him back to her insatiate grave:
And there he lay, full length, where he was flung,
     Before the entrance of a cliff-worn cave,
With just enough of life to feel its pain,
And deem that it was saved, perhaps, in vain.

CIX.
With slow and staggering effort he arose,
     But sunk again upon his bleeding knee
And quivering hand; and then he looked for those
     Who long had been his mates upon the sea;
But none of them appeared to share his woes,
     Save one, a corpse, from out the famished three,
Who died two days before, and now had found
An unknown barren beach for burial ground.


CX.
And as he gazed, his dizzy brain spun fast,
     And down he sunk; and as he sunk, the sand
Swam round and round, and all his senses passed:
     He fell upon his side, and his stretched hand
Drooped dripping on the oar (their jury-mast),
     And, like a withered lily, on the land
His slender frame and pallid aspect lay,
As fair a thing as e'er was formed of clay.


CXI.
How long in his damp trance young Juan lay
     He knew not, for the earth was gone for him,
And Time had nothing more of night nor day
     For his congealing blood, and senses dim;
And how this heavy faintness passed away
     He knew not, till each painful pulse and limb,
And tingling vein, seemed throbbing back to life,
For Death, though vanquished, still retired with strife.


CXII.
His eyes he opened, shut, again unclosed,
     For all was doubt and dizziness; he thought
He still was in the boat, and had but dozed,
     And felt again with his despair o'erwrought,
And wished it Death in which he had reposed,
     And then once more his feelings back were brought,
And slowly by his swimming eyes was seen
A lovely female face of seventeen.



          ___________________________________
Lucas Zaparolli de Agustinié formado em latim e faz pós-graduação em tradução. Dois livros de poema inéditos: Pelo Andar do Dia e Canto no Pântano. Publicou independentemente as Obras Completas de Delmira Agustini (2014). Traduziu asGravuras Japonesas, de John Gould Fletcher, com Anderson Lucarezi.

trecho de Manual para anfitriões, de Laura Vaz

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[Francesca Woodman]


Manual para anfitriões


Varanda

1.

Recorrer às ruínas
para que saibamos a direção de cada toque.

Preparar a mesa e o jantar
para o estranho sentar.

Deixar ele se servir primeiro.

Combater a mim, que fiquei.
Interpretar carinhos tímidos.
Sentir o prazer chegar, e ir
no gozo seco.

Abraçar o exílio.

Os movimentos são sempre pra frente, suponho.

Traçar rotas
e dissimular.
Reverenciar a solidão.

Ocupar-me com tarefas domésticas.

A primeira: trocar a fechadura para que o estranho não entre!

Lembrar-me de não perder as chaves.
Lavar a louça quebrando menos louça.

2.

São pretensões mesquinhas contar que, atenta:
sinto escorrer pelos dedos as horas?

Tenho escrito manuais e pensado em estratégias,
jogado com entrega e cinismo,
ouvi aquela música do Tim Maia.

3.

Rotas traiçoeiras
o sol queimando
palavras que
com maestria
você apresentava
para ouvidos sedentos,
pois disponíveis.
Imaginava.

Sua boca seca
meu olhar distraído no musgo
que cresceu no portão
nas moscas em volta do adubo
minha tentativa de adornar,
trapacear,
enquanto você não chegasse.

Para que começássemos
outra vez
o ritual inútil de pretender irmãos
países em guerra.

I told you when i came i was a stranger

Lutamos contra coisas distintas?
Silêncio,
tédio.

Acho graça.
Vou buscar água.

Parte 2

Pendurei um quadro discreto:
para me lembrar
dos protocolos invisíveis.

O jogo de mesa,
aquele comprado no verão
em que o sol cozinhou meu corpo
e a cólera:

Um cartão de visitas.

Mais cuidado
com as travessas cheias de comida
que derrubo
limpo
e torço para que não se machuquem com o vidro
porque não se desperdiça comida
apesar de gostar de imaginá-los
mastigando
o vidro rasgando
a garganta
sangrando
mas eles nunca se machucam
porque nem olham o quadro que pendurei
talvez por ser discreto.

*
Deste que ocupa seu tempo com tarefas mais nobres
invejo apenas a destreza nos movimentos,
a firmeza  ao tomar tudo o que é seu por direito.

Tudo em seu tempo:

Escova,
barbeador,
toalha,
eu.

Espelho

Dessa distância segura,
em que a imagem não me olha de volta,
não transpô-la,
pode ser  uma promessa.

Fingir que o outro apenas escolhe
não me ver.

Curva,
o assombro
perscruta.

***


Laura Vaz nasceu em São Gonçalo, 26 anos. É professora de Filosofia no ensino médio, atualmente cursa o mestrado em Estética e Filosofia da arte na UFF.



É PRECISO LITURGIAR OS DIAS, COM BALAS NOS OLHOS: Airton Souza resenha Pedro Barbosa

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Esses dias necessitam de poetas que insurgem em nós as dores do tempo, sem ignorar os carrascos que estão por todos os lados distribuindo flores, com o espírito das balas e, ainda cavalgam sobre nós afundando cada vez mais suas lâminas de pedras agudas. Esse e outros gestos líricos vestidos de navios fantasmas é parte do que encontraremos no livro Liturgia da bala, publicado pela Editora Penalux, de São Paulo e, segundo livro de Pedro Barbosa, um homem que não desiste de perguntar se há ainda “remédio para o coração?”.

Dividido em quatro tomos, temáticos dentro de si, na busca de construir uma unidade poética, Liturgia da bala traz a palavra em sua urgência de reflexão lírica bem perto da vida e não muito longe do mar e dos afetos e efeitos que a vida precisa para sua condição de r-existência. Mas, assim mesmo precisamos saber:

Ah, o espírito
Fingiu-se de esquecido.
Mas o verdugo está velho,
O cepo virou lenha,
A lâmina do machado cegou.

Cegaram as lâminas de nossos machados e a vida e nossos velhos verdugos estão hasteados para que nós fingíssemos ter esquecido as dores do mundo. Contudo, não temos as ferramentas necessárias de como esquecer as balas e suas liturgias que pesam em nossos ombros e olhos, pois Pedro Barbosa e seus eu - líricos, nos alerta que tudo isso são apenas “metamorfose forçada”.

Liturgia da bala, a cada tomo poético traça a caminhada de um poeta que desde sempre se fez palavra e gestos no mundo. Essa é em parte a tarefa dos poetas (se é que poetas têm tarefas!). Pois, Pedro Barbosa não foge aos embates e não finge combate. Ele sabe escancarar o peso das “vísceras implodidas”, mesmo sabendo que dói o luto e as viagens dos mortos sobre a perspectiva dos desenventos.

Nesse livro, ao mesmo gesto, estão balas que rasgam becos e galhos periféricos que servem para os dilemas dos homens e todas as almas que vagam perante dois planos para solidão. Por isso, o poeta parece sussurrar, a nos dizer:

A dor é morta
Contra nossa maneira
De fazer o mundo
Sobre a vida

Em Liturgia da bala os leitores terão a chance de indaga-se até aonde vai o poder da poesia, ao ensaiar maneiras de dizer, mesmo que o dia chove e que o estado esteja vestido de calamidades, é preciso, às vezes, nós mesmos anoitecemos com a pele em orvalhos e, ainda se perguntar: como aguentar tantos crepúsculos?

E, olha que Pedro Bandeira e seus eu – líricos só querem um dia se o fazedor de calçadas, para aplainar caminhos e acariciar as pedras que homens e mulheres, negligentes, pisaram indiferentes as primícias de sentir esperanças. Porque só os poetas, quando chegam perto das palavras para compreender suas mil faces, sabem, contra a maneira do mundo, traz a lume as coisas inacessíveis.


Esse Liturgia da bala, de Pedro Barbosa, nos lega a lição de como, muitas vezes, voltar “à frente da casa”, só para saber se tudo está por lá. Lição tão essencial nesses dias sem ênfases. Só isso já basta à leitura desse livro. Mas, há sem duvido outros gestos dentro de Liturgia da bala.

ZooPoesia de Adriana Brunstein

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Imagem: immagini.4ever.eu




Série ZooPoesia
de Adriana Brunstein

Um velho alce
cansado
de tanta chifraria
finalmente tomou coragem
e uma dose
de xiboquinha

Pegou a estrada
trouxa até o lombo
sabia que na cidade
alça fiel
lhe aguardaria

Encostou na parada
Fez sinal e vibrou de alegria
Mas o coitado
não sabia
que o ponto era de táxi
dermia

*

E a pobre da girafa
Ficou com nó na garganta
Foi traída
– Quem diria? –
Por uma bela duma anta
Sempre fora
Fiel e digna
Em todo seu existir
 Já seu marido
Se amarrava
Numas ancas de tapir
Jurou vingança
À sua altura
Com plateia e fuzuê
Mas a anta
Atrevida
Se recusou a comparecer
Passou o tempo
E o divórcio saiu
A fé que tinha no amor
Foi pra puta que pariu
Então recebeu a visita
De um dromedário camelô
Comprou por uma grande pechincha
Um mega dum vibrador
Vive hoje tão feliz
Quem a vê até se comove
Foi embora até o trauma
Do impossível meia nove

*

E eis que o tamanduá
De saco cheio da vida
Chegou à beira do abismo
Berrou e o eco repetira
- Que merda isso de comer formiga!
Apalpou seu protótipo de tromba
Que nem pra dar prazer servia
Comprida decerto, mas fina e além de tudo
- Que merda de minúscula linguinha!
Achegou-se uma fêmea nova
Modelo novo de dar bandeira
E ele se empolgou num salto
Que a artrite levou pra ribanceira
Lá de baixo ele a olhou
Sonhou que seria sua viúva
Mas a última coisa que sentiu
Foi uma puta indigestão de saúva





Adriana Brunsteiné Ph.D. em física, escritora, dramaturga e roteirista. Ganhou o prêmio HQMIX 2008 de melhor roteirista nacional com Prontuário 666 — Os Anos de Cárcere de Zé do Caixão. Publicou o romance Estado Fundamental (Panelinha Books, 2012), participa das antologias de contos Casa de Orates (Editora Mondrongo, 2016), O Outro Lado da Notícia (@link Editora, 2016) e Língua Rara (Ediciones Outsiders, 2017). Lança em breve, pela Editora Laranja Original, Pancho Villa não sabia esconder cavalos.




2 poemas de André Rocha

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Ilustração: swissmisses


Bar da Val.

você reclamava porque eu passava as tardes
de cueca no sofá vendo reprises de futebol
que quando saia com meus amigos
o papo era só boceta, crime, bola e droga
mas eu não liguei quando você mentiu e transou com sua amiga
e aquele dia que a gente chapo de md
te contei da garota do meu bairro
e que as vezes escrevia poesia ouvindo funk
te botei pra chupar 
você disse que precisava de um amor
eu queria me suicidar 
andava meio maluco
iria fugir pra Pernambuco
com dois quilos de cocaína
mas sua sensibilidade 
boicotava meus desejos vulgares
egoístas e
promíscuos
você acreditava em deus
eu acreditava na carne
como matéria corrompida 
presente nas orgias por mim promovidas
você passava esmalte nas unhas
e se raspava na minha frente
espalhando seu cheiro
pelo quarto inteiro
você disse que precisava de um amor
e eu não soube amar



Danone.

minha mania de malandro
me fez trapacear demais e interrompi alguns sonhos
devemos saber que nas orgias
estamos sozinhos
pra mergulhar nesse universo proibido
tire as roupas e nade nu
pras contravenções cotidianas é necessário saber brigar
não renegue a próprio raça
a beira do precipício não é um lugar agradável de se caminhar pra alguns
minha linhagem carrega o caos envenenado e doente
nas entranhas e na navalha no dente
os enganados pelo céu
beije sarjetas
belisque as tetas das moças
beba mais um pouco
cachaça anestesia a alma dos incendiários
meu hobby preferido
sempre foi o suicídio
sem nem um pingo de medo
escolhi no cardápio meus pecados prediletos
e pichei meu nome nos muros da cidade
pra marcar minha passagem
como um cão mijando nos postes...



André Rocha, 29 anos. Criminoso auto de data. Coleciona problemas na justiça e paixões repentinas. Cachaceiro desde sempre, protegido de Exu. Era pra te morrido em 2009 mas por chacota do destino sobreviveu. Autor do livro Suzana Sem Calcinha Na Calçada De Paralelepípedos, Editora Carrancas.

Nominata 2018

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Teori Zavascki
ou Teoria Zavascki
você se lembra?
mera conspiração
futuro mancomunado
com o passado
exceção
regra do regime
se rebate como libélula
o efeito borboleta
atordoante das hélices
e dos risos das hienas

Romero Jucá
gravado inalterado
absorto
solto no mundo
mero Jucá
o menino da língua grande
- vamos fazer um pacto?

Temer Jamais
mas se Gilmar e Alexandre
da Mendes & Moraes mandarem
quem tem Moro privilegiado
quem tem morto privilegiado
PEC até à exaustão


Ubirathan do Brasil lança "O Amor é Um Búfalo" em Rio Preto

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O amor é um búfalo" nasceu num picho de parede em uma igreja evangélica, depois se esparrou pelas cidades do interior, muros de fábricas abandonadas e cemitérios, praças públicas redes sociais, e agora virou título do terceiro livro do auriflamense Ubirathan do Brasil.

Por convite de Kleber Felix, editor do projeto "Literatura de Buteco" que traz outros grandes nomes da literatura independente, como Mario Bortolotto, Bruno Goulart, Camila Fraga, Edivaldo Ferreira e Bruno Brum, Ubirathan do Brasilé o décimo segundo escritor a compor a coleção da Bar editora de SP.

Nessa nova saga do escritor encontram-se poemas já publicados em jornais e revistas de Portugal e Brasil e outros textos ineditos. Ubirathan revela seus símbolos umbandistas, surrealistas e xamânicos, atua como maldito e bendito. O amor é um búfalo fala sobre santos de gesso, amores desabados, violeiros, ayahuasca, fala sobre sambas e orixás, sobre loucura e sensatez.

Ubirathan prepara seu novo título para uivar em Santa Catarina, São Paulo e Minas Gerais.


Conheça um poema do livro:

quando o horizonte explode

amei como um evangélico ama os bagos de Jesus
um suicida que se apaixona por cicuta
no mês de maio
um carcará alucinado
debatendo as asas de saudade
enquanto o sol desmaia no horizonte
de cana-de-açúcar

você bebeu ayahuasca a tarde passada
falou que seu coração selvagem explodia igual tamborim
num dia triste de carnaval
chacoalhava as ancas prum deus devasso
pedia pra eu não bater, nem golpear tapas
você só queria sexo tântrico

tatuou Namestê na nuca
implorou pra eu dar uma brecada com o destilado
jogatinas e putarias
me pediu pra romper com a sinuca
ás onze da noite
evitar palavras de baixo calão com a vizinhança
quer que eu rasgue as cartas do baralho
quer trazer um travecão com um pomo-de-adão
gigantesco pra nossa cama


a lua tá cheia


SERVIÇO
Sarau das Janelas - Lançamento do livro de bolsoO Amor é Um Búfalo, de Ubirathan do Brasil. Sexta-feira, 5 de maio, a partir das 20h. Casa das Janelas (Rua João Teixeira, 346). Entrada livre.

Entrevista com César Cardoso (Urubus em círculos cada vez mais próximos) por Fernando Andrade.

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1 - Há em seus contos um trabalho intenso de concisão com a linguagem. De usar todo aparelho dos signos de forma encaixada dentro do espaço do conto. Como você foi desenvolvendo esta forma de narrar? 

- Esta concisão é resultado de alguns caminhos que fui traçando em minha literatura. Como dizia Leminski, “quanto menor, mais do tamanho da China”.  Escritores que eu gosto, como Graciliano Ramos e Dalton Trevisan, trabalham com a concisão da linguagem. E mais, vivemos em um mundo de enxurradas: de informação, de consumo e até de adjetivos... Então, a seleção e a concisão são dois métodos, duas formas de olhar o mundo e a literatura que eu prezo e busco praticar. O adjetivo, por exemplo, é sedutor, é fácil. Às vezes, quando não encontramos uma saída para o texto, ele vem se oferecer para ocupar esse lugar. Graciliano, em sua secura, falava com humor que “papel e caneta custam caro”. Então, viva a concisão.

2- Em seus contos, há um trabalho bem interessante sobre o cotidiano das pessoas. Mas ao mesmo tempo há sempre algo insólito e fantástico acontecendo. Como foi dosar estas duas linhas narrativas?
   
 - Meu livro anterior, “As primeiras pessoas” também não é uma simples junção de histórias. Todos os contos são narrados na primeira pessoa. E daí o livro se desenvolve a partir dessa premissa. Neste “Urubus em Círculos Cada Vez Mais Próximos” mais uma vez busquei um projeto. A chave desse livro é partir do cotidiano e chegar ao insólito, ao fantástico. Cortazar dizia que “o conto vence por nocaute”. Foi o que busquei também, tanto na linguagem quanto no enredo. Quando fiz a primeira versão do livro, havia duas vertentes: a questão da violência e a questão do fantástico. O crítico literário e escritor Flávio Carneiro foi quem me apontou isso mais claramente. Então, optei pelo caminho do fantástico. Os contos às vezes são pequenas cenas de teatro, às vezes namoram com a linguagem poética. E sempre buscam surpreender o leitor e fazê-lo reler e repensar a história. Também trabalho muito com as informações culturais que tenho, da literatura, da música, das artes plásticas. Gosto de pegar estas informações e virá-las do avesso e trazê-las de volta nessas narrativas curtas. Assim, há contos em que a construção da Torre de Babel é vista de uma outra maneira, ou um jóquei numa corrida não consegue nunca alcançar a linha de chegada, se perde numa ciranda sem fim; ou a atuação de uma bailarina se revela uma simples caixinha de música... Assim construí este “Urubus em Círculos Cada Vez Mais Próximos”. Aliás, o título é retirado de uma frase do último conto do livro.    

3 - Em uma frase você muda o eixo completo do enredo. Como foi este exercício? O que seu trabalho como roteirista na televisão te ajudou neste trabalho de síntese com a linguagem? 

- Escrevo contos, poesia, humor, literatura infanto-juvenil. E, em todas essas formas, a síntese está sempre presente. É bom não dar tudo para o leitor, deixar no texto lacunas que o leitor vai encontrar e, dessa forma, construir a história junto comigo. O trabalho de roteirista de televisão sem dúvida me ajuda. Sempre trabalhei como roteirista de humor, e no humor você tem que ser sintético. Ele tem um ritmo e, se você se expande demais, você quebra esse ritmo, afrouxa sua cena e perde a graça. Então o humor me ajudou a ter esta capacidade de síntese. Além disso, em tudo que escrevo tem algum tipo de humor. Neste livro, cheguei a um humor mais irônico ou até mesmo sarcástico.

4 - Como foi processo criativo dos contos?  Como você desenvolveu-os?

– Comecei fazendo a opção pelo fantástico. Hoje, já não sei mais identificar quais foram os primeiros contos. Mas, a construção deles nasceu de muitas maneiras: uma cena que vi quando voltava pra casa de madrugada, alguma coisa que li, a conversa com amigos num bar, uma consulta médica. Ou simplesmente parei diante do computador e fiquei pensando caminhos, histórias. Aí entra a minha bagagem, o meu baú pessoal e intransferível. Um conto que gosto muito é uma releitura do Sítio do Pica-pau Amarelo, onde o leitor acaba por descobrir que os personagens são bonecos com os quais alguém está brincando. E quem é? A Barbie. Os personagens são bonecos da Barbie. Monteiro Lobato foi o primeiro autor que descobri, quem primeiro me encantou com a literatura. Eu era criança tinha todos os livros dele em casa, tinham pertencido ao meu pai quando ele era criança, e meu avô me contava aquelas histórias. Eu era, e sou, completamente apaixonado pela literatura do Monteiro Lobato, pela Emília e todo aquele mundo. Ainda tenho essa coleção. Então, ele faz parte de minha história literária. E é um prazer e uma homenagem trazê-lo para a minha literatura, para dentro de um conto meu. Um outro exemplo: há um conto de uma bailarina dançando, e esperando pelo aplauso. O que surgem são duas mãos que dão corda numa caixinha de música. Em verdade, ela é uma bailarina rodando numa caixinha de música. Como me veio essa ideia? Primeiro, a caixinha de música - eu dava sempre de presente para minha avó.  Depois, a minha enteada fazia balé eu às vezes eu fazia o coque nela, muito mal feito e lotado de grampos, coitada. E, por fim, como também trabalho com fotografia, fiz uma série com bailarinas de caixinhas de música. Esses três elementos se juntam e desaguam na linguagem do conto. Assim nasce o conto “Coreografia”, que está nesse livro.

5 - Como foi trabalhar com referências literárias, históricas e
e científicas? Elas te ajudaram na imagética dos contos?

- Ajudaram muito. Na parte literária, por exemplo, o conto que abre o livro fala da primeira bienal de literatura do Rio, em 1923. Isso nunca aconteceu. E eu boto como grande evento da bienal uma luta de boxe entre Borges e Kafka. Para que Kafka não levasse vantagem, já que Borges já está cego, a luta acontece no escuro. E no final, quando a luz se acende, os dois desapareceram.  Todos esses dados são absurdos. Na minha literatura, gosto de falsear as informações, trabalhar com dados falsos como se fossem verdadeiros. Faço isso em vários contos desse livro. E estou escrevendo outro livro só de informações falsas, como a carta que Camões teria escrito ao governador de Moçambique pedindo ajuda para voltar a Portugal pois estava na miséria; ou a visita de Darwin ao deserto de Atacama, no Chile, para conhecer uma espécie de lontra que sabe usar instrumentos para se alimentar. Para mim, falsificar dados literários, históricos e científicos é uma ótima maneira de inventar histórias. No meu ponto de vista, nada é neutro, nem a ciência. Tudo pode ser usado da forma que você quiser. No livro “Urubus em Círculos Cada Vez Mais Próximos” há o conto “Himenópteros Fomicídeos”, que é o nome científico da formiga. É a história de um sujeito que passa o dia desenhando formigas. À noite ele dorme e as formigas saem do desenho e o cobrem na cama. Elas o estão protegendo? Vão devorá-lo? O conto não define. Mas eu cito uns quinze tipos diferentes de formigas. E essas informações são verdadeiras. As formigas, onde elas vivem, do que se alimentam, tudo é verdadeiro, eu pesquisei. E me serviu para inventar o conto.

6 - Os desfechos dos contos não se esgotam numa ideia similar. Há sempre uma gama de situações bem diferentes que concluem os contos muito bem. Você os escrevia primeiro? Ia pelo desenvolvimento sequencial da narrativa?  Ou anotava ideias para conclusão?

- Nenhum deles eu comecei pelo final. Sempre me veio a ideia e eu fui desenvolvendo. A primeira surpresa é para mim mesmo. Como é que vou me surpreender nesta história? Que final vou achar? Como vou surpreender sem me repetir? Eu parti de uns 300 contos e cheguei aos cento e poucos que formam o livro. Procurei também dar uma ordem nos contos. Há mais de um conto com o tema da prisão; A ideia da prisão é muito rica. Eu achei 2 contos que trabalhavam de forma diferente um do outro. Como eles tinham o mesmo tema eu coloquei uma numeração e deixei os dois afastados um do outro no  livro. Assim eu fui organizando cada história e o livro. Tem um conto em que o personagem está viajando de trem, adormece e, no meio da noite, acorda. É uma situação comum de viagem, pela qual quase todo mundo já passou. O personagem tenta se situar, descobrir em que pedaço da viagem está. Ele abre a cortina da janela. E o que vê? O planeta Terra brilhando no céu daquela noite escura. Então eu pensei e o leitor vai pensar também: onde diabos esse sujeito está?

7 - A tua epígrafe é do Augusto Monterroso, um escritor que praticava o microconto. Embora não dê para dizer que seus contos sejam microcontos, há uma compacidade da escrita e do conteúdo que parece que nunca é descarte. Você chegou a fazer leituras destes autores deste estilo de escrita?  
 
 – Sim, em épocas diferentes, fiz algumas leituras que acabaram me ajudando a encontrar os caminhos desse livro. Posso citar “A Ovelha Negra e Outras Fábulas”, do hondurenho Augusto Monterroso, a coletânea “Os 100 Menores Contos Brasileiros do Século”, organizada pelo Marcelino Freire, “Os Anões”, da Veronica Stigler, “Jardim Zoológico”, do Wilson Bueno, as obras literárias de Murilo Rubião, Cortázar, Campos de Carvalho. Todos, em alguma medida, trabalham com a concisão, o fantástico e o humor. Assim como Borges e Kafka. Eles são personagens do primeiro conto do meu livro. Kafka retorna em outro conto, onde é morto pelo inseto em que se transformou seu personagem Gregor Samsa. Acho que em qualquer trabalho humano, todo mundo tem que desenvolver suas ferramentas. Eu adoro ler e quanto mais leio, mais me divirto. E mais eu consigo trazer ideias para meus projetos de literatura.

8 - Não tem como classificar seus contos como fábulas. Mas percebi um tipo de ideia moral que fecha muito bem os contos. Como você ia chegando a estes finais sempre surpreendentes? 

Neste livro, busquei sempre a surpresa. Os contos namoram com a fábula sim. Vários são fábulas desconstruídas, fábulas pelo avesso, onde a surpresa final transita entre o fantástico e a linguagem da fábula. Muitas vezes trabalho com uma linguagem que aparentemente é muito objetiva, neutra. E é a surpresa que vai desconstruir essa aparente neutralidade. O leitor chega ao final e diz: opa, não era o que eu pensava, deixa eu ler isso de novo. A surpresa é uma forma de jogar o leitor de volta para dentro do conto. É uma forma de não ser um texto fechado, resolvido. O leitor pode imaginar o que ele quiser. Eu escrevo literatura infanto-juvenil, volta e meia vou a escolas conversar com a criançada que leu algum livro meu. E muitas vezes têm leitores que fazem perguntas que eu mesmo não imaginava. Em meu livro “Quem Pegou a Ponta do Meu Chapéu de Três Pontas que Agora Só Tem Duas?”, o personagem diz: “Roubaram uma ponta do meu chapéu de três pontas. E logo a vermelha, a que eu mais gosto.” E uma garota lá perguntou: “Vem cá, e quais são as cores das outras pontas?” Eu nunca havia pensado nisso. Então eu busco surpreender o leitor, deixando um final em aberto, e este leitor, ao construir sua leitura, também pode me surpreender.

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O carioca Cesar Cardoso nasceu em 1955 e é formado em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 2012 publicou o livro de contos As Primeiras Pessoas, pela editora Oito e Meio. E em 2015 lançou coisa diacho tralha (poesia), pela editora Texto Território. Escreveu para a revista Caros Amigos e para os jornais O Pasquim e O Planeta Diário. É roteirista, tendo escrito programas de tv como Tv Pirata, A Grande Família e Sai de Baixo. Atualmente é roteirista do programa Zorra, que em 2016 foi indicado ao International Emmy Awards de melhor comédia. Ainda pela Oito e Meio, participou de algumas coletâneas, como Para Copacabana, com amor. Seu conto publicado nessa antologia – “Ai de mim, Copacabanafoi selecionado para o livro The book of Rio, lançado em 2014 na Inglaterra pela editora Comma Press. Participou da Coletânea Prêmio Off Flip de Literatura – 2009 com o poema “Carochinhas brazileiras”e da ColetâneaPrêmio Off Flip de Literatura – 2015, com o conto“O veredito”, que faz parte do livro 

Fernando Andrade, 48 anos, jornalista e poeta. Trabalhou durante dez anos como livreiro. Colabora no portal Ambrosia como resenhista de literatura e música.  Faz parte do coletivo de Arte, Caneta Lente e Pincel com textos de poesia e prosa.  Participa do Coletivo Clube da Leitura. Tem um conto chamado Quadris na coletânea do terceiro volume do clube da leitura. Tem dois livros editados pela Editora Oito e meio. Lacan por Câmeras Cinematográficas e Poemometria. Lança  mês de Maio seu terceiro de poemas, Enclave editado pela Patuá. 
 

FOUR OF A KIND, conto do livro Bricabraque, de André Mellagi

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Série "Animais", de Homero Lima e Paulo Chimendes






FOUR OF A KIND
Os copos foram distribuídos e a garrafa passou um por um até sobrar a metade no centro da mesa. Brindaram e Douglas começou trazendo o desfecho sofrível do filme que acabaram de assistir. Cátia elogiou justamente a falta de conclusão e o valor do paradoxo, Fabiano achou que é falta de comprometimento do diretor e Larissa ateve-se à performance tocante da atriz, assumindo a lágrima que deixara cair na cena da morte da velha. Douglas citou as qualidades ausentes na escola soviética e as presentes no neorrealismo italiano, Fabiano contrapôs nomes da Nouvelle Vague, Cátia adulou a fotografia no cinema chinês e Larissa sorriu sozinha ao recordar uma comédia de Buster Keaton que não lembrava o nome. Fabiano sugeriu Brotas para o próximo feriado, Cátia prefere Ubatuba, Larissa vai receber uns primos de Teófilo Otoni e Douglas já se comprometeu em acampar na Serra dos Órgãos com o pessoal da faculdade, mas que na verdade irá visitar a mãe em Petrópolis. Passam a garrafa em cada copo e pedem mais cerveja.
Cátia anunciou um convite que recebeu para participar de um grupo de teatro, Larissa irá começar o módulo Quattrocento em pintura renascentista, Douglas continua a procurar estágio e Fabiano tirou fotos de uma pomba que pousou na sacada de seu prédio, mas preferiu não comentar. Douglas, num tom grave, fala do irmão que se separou da esposa, Larissa se compadeceu mais com a ex-cunhada, Fabiano pediu para o irmão vir tomar uma cerveja e Cátia confirmou para si a falência dos relacionamentos. Fabiano reclama de um torcicolo após a aula de yoga, Douglas relembra os três pinos no braço esquerdo que fraturou há 3 anos, Larissa não esquece do diazepam antes de dormir e Cátia está preocupada com a menstruação que ainda não veio. Garrafas vazias, pedem mais.
Larissa espera uma conjugação de planetas aliada a determinado posicionamento do sofá para garantir um telefonema amanhã, Douglas diz que está tranquilo na solidão, Fabiano informa que o namoro continua firme mas Cátia percebe que é a terceira vez que ele olha para seus peitos. Douglas relata uma cena engraçadíssima da vizinha que tentava apanhar a coleira do cachorro que fugiu, Fabiano fingiu achar graça, Cátia olhou o relógio e Larissa manteve em segredo seu pintassilgo engaiolado. Última saideira.
Fabiano abraça Douglas, Cátia vai ao banheiro com Larissa. Douglas indica que Cátia está afim dele, Fabiano silencia um ódio com frases motivadoras, Larissa aparece com o batom retocado e Cátia com os brincos de Larissa. Fabiano reclama do valor da conta, Larissa cochicha com Cátia e Douglas inventa um cenário com as duas. Cátia tem certeza que quer voltar para casa, Fabiano insiste em outro bar, Larissa se distrai ao ver um casal brigando na mesa ao lado, Douglas imita o golpe da garça de Karate Kid em cima de uma cadeira, antes de se estatelar no chão.




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André Mellagi, nascido em São Paulo, é formado em Psicologia, mestre edoutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP. Participou decoletâneas de contos, além de publicar em blogs de literatura. Seu livro de contos Bricabraque(Editora Patuá, 2017) recebeu Menção Honrosa em 2014 no Programa Nascente daUSP e foi obra pré-selecionada ao Prêmio SESC de Literatura de 2016.

Alçapões de pássaros-palavras nos poemas de Bernardo Almeida

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Imagem de http://zeliacorreaguardiano.blogspot.com.br




Alçapão

Olhos que inspiram
a formação
de inescrutáveis
paisagens.

Baixos, rasos,
belos e fortuitos;

distantes , afáveis
conspícuos, convolutos.

Olhos, que são teus
perolados, enfáticos,
hipnóticos

refluídos a mim
não representam osmose
mas condição
de alguma posse
sobre o universo
que dominas
ao alcançar, longínqua,
teu ideal de amor
em cumplicidade e alternância
de minha distensa
admiração instantânea

teus olhos em fusão
com o infinito



Antes, pares cingidos

Antes, pares cingidos,
perdidos;
agora, encaixados
vagam unos
extrapolando os sentidos

globos de vidro
instados a comprimir
o universo rendido
sob os reflexos da lua

sexos fendidos,
unidos à noite pletórica,
melíflua, magna;
em seu esgar feroz,
que nos devora

carne sobre carne
arte contra arte
costura, impiedade

chiaroscuro, estrondo,
descompaixão

o conflito se orgulha
do amor aspergido
na contramão
a avançar, denunciando
distúrbios surdos
figura sobre fundo
adentrando,
íngreme e cadente,
a folhagem
que se insinua
ao desfrute
em crescente
transfiguração
plena e crua





Em vão?

Não nos transformamos
em escuro
só porque é noite

continuo tentando
clarificar
os vagões da madrugada







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Bernardo Almeida nasceu em Salvador (BA), em 1981. É escritor, jornalista, artista digital e roteirista. Participou de dezenas de coletâneas e antologias. Publicou os livros “Achados e Perdidos” (poesia/2005), “Crimes Noturnos” (poesia/2006), “Enquanto espero o amanhã passar” (poesia/2009), “Sem um país para chamar de pátria, sem um lugar para chamar de lar” (poesia/2009), “LONA” (poesia/2011), “O Vencedor está morto” (contos – Editora Confraria do Vento – 2013/14), “Viagem de balde” (conto – Amazon - 2015) e Arresto (poesia – Penalux – 2016/17). Tem poemas traduzidos e dispersos na França e Croácia.

Parto sem destino rumo ao sul - Jorge Xerxes

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Agora são doze horas e doze minutos, o que eu avalio pela fumaça do meu malboro, ziguezagueante, através dos raios de Sol, frente a minha vista. Parto sem destino rumo ao sul.
        
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Caminho rápido ao longo de quatro quadras sob um Sol escaldante. O ponto de táxi fica a trinta metros da padaria, onde quero comprar uma coca e um pacote de baconzitos. As duas malas pretas, dessas de couro, antigas, paralelepídecas, com uma alça para a mão, estão pesadas pra caralho. Digo pro taxista olhar minhas malas, enquanto vou até a padaria, que depois pegarei o táxi para a rodoviária. Ele me diz que nem fodendo, eu que cuide de minhas coisas, só tem ele no ponto, vai que chega outro passageiro antes e ele perde a corrida. Eu carrego as malas com muito sofrimento, trinta metros para ir, mais trinta para voltar com minha coca super-gelada e um pacote gigante de baconzitos, minha barba espessa e grisalha toda ensebada, tinha passado a noite toda sem dormir. Os sovacos suados, fétidos. Volto lá e é o mesmo motorista. Digo pra ele, toca para a rodoviária agora então. Ele tenta puxar assunto, eu fico fitando o infinito do céu através do vidro fumê. Lá dentro do veículo tem ar condicionado, mas lá fora está um calor do caralho, sigo pensando. Quando chegamos ao destino, o taxímetro marca vinte e seis reais. Ele me diz que faz por vinte e cinco. Eu saco a carteira, dela uma nota de vinte, outra de cinco e uma moeda de um real. Ele diz que a moeda de um real não precisa. Eu jogo a moeda com força na pança dele e digo, enfia a moeda no teu cu. Parto sem destino rumo ao sul.
        
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Música incidental vindo do smartphone da garota loura de cabelos encaracolados, vindo da mesma fileira do ônibus, três poltronas à esquerda, um amor em cada porto, ah seu eu fosse marinheiro, não pensaria em dinheiro, um amor em cada porto, ah seu eu fosse marinheiro, Adriana Calcanhoto (se não me engano). Solto um peido longo e constante, sem qualquer ruído, pior que o gás mostarda, a senhora da poltrona ao lado me fita com uma expressão de assombro, em poucos segundos, ao menos umas três fileiras de assentos do ônibus sofrem com a implicação de meus atos pregressos: duas coxinhas amanhecidas, um copo de groselha, uma coca e um pacote de baconzitos, que eu comi até o farelo. Eles sofrem calados e resignados, como Jesus Cristo em sua via-crúcis. Rezo pela alma deles, sei que sempre é mais suportável a própria cruz, os próprios gases que aquele do outro, é a lei do carma. Causa e efeito. Parto sem destino rumo ao sul.
        
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Chegando em Porto Alegre, o primeiro lugar em que eu vou é um karaokê chamado Babilônia Club. A temperatura em Porto Alegre está bem mais amena, mas como não tomei banho e viajei horas de ônibus, as mangas de minha camisa estão colando nos meus sovacos, donde se desprende um odor azedo, fétido, de baixa freqüência, que parece distorcer o espaço-tempo ao meu redor, faz de meu corpo uma massa pastosa e amorfa, sustentada apenas por uma frágil estrutura de músculos e ossos gravéticos, por sua vez a carregar duas malas pretas de couro paralelepípedecas. Deixo-as no canto, próximo do balcão e peço um rabo de galo, dois rabos de galo, três rabos de galo, e só então estou pronto para cantar. Escolho a canção Samba da Benção, de Vinícius de Moraes. Atravesso a melodia, erro a letra, e então o DJ acelera o ritmo da música, a casa está cheia, tem uma lista enorme de canções para ele botar e eu estou pagando o maior mico, ainda mais agora, com o Samba da Benção em ritmo de rap. Quando percebo a traquinagem, mando ele ir tomar bem no meio do olho do seu cu, do microfone mesmo, em alto e bom som. Uns perceberam que a música foi drasticamente acelerada e tomam meu partido, outros me vaiam e mandam eu me foder, vai se foder bêbado, grita um bêbado gaúcho alto e magro, usando gola role. Eu grito vai se foder você seu gaúcho viado. O Babilônia Club ferve, vira uma confusão generalizada, copos voam, sopapo pra tudo quanto é lado, eu pego uma garrafa das grandes de Heineken que está pela metade na mesa ao lado e, segurando-a pelo gargalo, dou um golpe só, com toda a minha força, de baixo para cima, estraçalhando-a bem no queixo do DJ, a papada dele abre de fora a fora, descola a pele, agora é sangue jorrando para todo o lado. Nessa hora um merdinha tenta me defender de vários caras que partem pra cima de mim, ele abre os braços entre eu e os caras, é nessa hora que eu escapo, fujo correndo pelos fundos, mas deixo minhas malas para trás. Saio correndo pela rua estreita, gritando filhos da puta, filhos da puta, pela noite escura como o breu. Sem as malas fica mais fácil a minha locomoção e dou graças pelo incidente. As malas que se fodam. Parto sem destino rumo ao sul.
        
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Com muito custo e no limite de minhas forças alcanço o Hotel Scala, faço o check in roçando minha barba e fazendo cara de poucos amigos para o gerentezinho simpático, engomadinho, apenas mais um bosta, subserviente a estrutura de castas sociais, evidente na capital gaúcha. Moleque babaca, eu penso, e respondo ao mínimo possível das perguntas do seu formulário. Para algumas de suas perguntas, eu apenas rosnava, para outras, permanecia em silêncio fitando-o profundamente, com cara de ódio. Por fim, depois de uns dez minutos, ele se deu por vencido. O seu quarto é o 304, Senhor. Grrrr, eu assenti. Não é que eu seja maleducado, estava apenas cagando e andando para ele, além de realmente cansado. De tudo. Liguei o chuveiro bem quente, tirei minhas roupas. Nesse momento você pode me imaginar, homem de meia idade, um pouco grisalho, barba estilo lenhador, mal desenhada no rosto, um metro e setenta centímetros de altura, uns cento e trinta quilos, obeso, mas um bocado parrudo e peludo pra cacete, enfim, traçando uma analogia, coisa feia de se ver, um cão chupando manga. Permito-me relaxar de pé no box do banheiro, sob a ducha forte e quente, revigorante. O sabonete do Hotel Scala é verde e minúsculo, mal dá para ensaboar as partes. O shampoo, fedido igual a desodorizante de automóvel. Permaneço assim, imóvel, sob essa cachoeira, fitando os azulejos azuis a minha frente, revestindo a parede. O rejunte é praticamente invisível, revestido por uma asquerosa camada verde de musgo. Noutros lugares, onde não há musgo, ou ele se desprendeu, o rejunte é preto de camadas pré-históricas de fuligem, camadas e mais camadas sobrepostas, ignoradas, desprezadas, omitidas pela rotina diária da limpeza, que era parca, apenas uma atividade pró-forma, a qual o administrador do hotel fazia vistas grossas, e os hóspedes desconversavam como se fosse espécie de acordo silencioso revertido em diárias super econômicas. Depois do banho, caí pelado e de costas sobre a cama de casal de molas, as pernas e os braços abertos. Não ouvi, mas devo ter roncado como um porco. Parto sem destino rumo ao sul.
        
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Só quando despertei no outro dia eu me dei conta do quanto estava enrascado, além de ter perdido todos os meus pertences, deixados em duas velhas malas pretas de couro paralelepípedecas, dei falta dos meus documentos, do cartão de crédito e de um montante de dinheiro em espécie que trazia comigo, eu tinha perdido a minha carteira. Eu podia jurar que trazia a carteira comigo, no bolso direito da calça preta de pano, como de costume. Mas não dessa vez. A lei de Murphy é implacável, ela te abraça nos momentos mais singulares, para fazê-lo lembrar de sua força, não a minha, a força dela, para mostrar o quanto é forte a lei. Desço para o café da manhã, mas ele já havia encerrado. O relógio marcava dez horas e quarenta minutos e a entrada para o café da manhã no salão do Hotel Scala se encerrava pontualmente às dez mais trinta, me explicou a recepcionista. Mas isso com algum jeito, boas maneiras, um bom dia, o por favor usado no momento adequado, porta de acesso, passaporte, para as necessidades vitamínicas, de carboidratos, de proteínas, pães diversos e uma boa xícara de café preto. Do salão do hotel eu parti direto para a rua, já que não tinha um puto no bolso, sai batido do hotel. Caminhei por algumas ruas de Porto Alegre a esmo e com vagar, observando a correria das pessoas, com tantos afazeres, ideias na cabeça, até que dei de frente com uma grande rede de magazines, as Lojas Centauro. Ponderei que se fosse para prejudicar alguém, que fosse um estabelecimento como aquele, uma loja grande, onde o desfalque dividido pelo total das vendas, resultasse num valor tão próximo quanto possível de zero. Disse bom dia para o atendente, pedi para experimentar uma camisa branca social de manga longa, calças pretas também sociais, cuecas samba canção amarelas, meias pretas sociais, cinto e sapatos pretos confortáveis e de couro. O atendente pegou alguns modelos, variações sobre o mesmo tipo de roupa que uso desde os meus vinte e poucos anos, disse para eu usar o provador. As meias e as cuecas eu as tomei furtivamente e as botei nos bolsos de uma das calças, antes de seguir para o provador. Fui até o provador onde deixei dependuradas as minhas próprias roupas, vesti-me com calma, olhei-me no espelho, bem alinhado, agora sim, estava tudo bem. Olhei pelo vão da cortininha e, quando um cliente interpelou o atendente com uma pergunta, deixei rápido o provador e sai andando naturalmente da loja, como se nada tivesse acontecido. Imiscui-me em meio ao vai e vem das criaturas no centro de Porto Alegre, ali eu era apenas mais um, uma simples alma em meio ao cardume de tantas outras, caminhei por quase uma hora, deixando o centro, paralelo às vias que levavam para fora da cidade. Acenei para um caminhão que transportava fardos de lenha. O veículo parou alguns metros a minha frente, no acostamento à direita. Eu perguntei ao motorista para onde é que ele ia, vou levar essa carga para Passos de Torres. Eu pedi uma carona e montei na boleia do Mercedes Benz. Era impressionante, o pen drive do cara só tocava Raul Seixas. Infinitamente. Várias versões de uma mesma música, algumas muito mal gravadas, por sinal, depois outra e mais outra, algumas delas eu nunca tinha escutado, mas era sempre Raul, e o motorista parecia não se importar com isso. Meio sem saco para conversas, perguntei ao motorista se ele gostava de Raul Seixas. Ele não respondeu a minha pergunta. Ele, ao contrário, parecia animado por ter alguém com quem conversar. Contou que vinha de Pelotas, donde tinha saído muito cedo, antes do Sol nascer. Então iriam para Torres, a cidade litorânea mais ao norte do Rio Grande do Sul. O dia era limpo e ensolarado. Veja como o dia está bom para um mergulho no mar, ficar de bobeira na areia, pena que eu tenho de retornar ainda hoje para Pelotas. O motorista contou que bastavam cruzar a ponte sobre o rio, em Torres, e eles estariam em Passos de Torres, já no Estado de Santa Catarina. Lá ele iria descarregar os fardos de lenha, almoçar e tomar a estrada de volta. A volta é sempre mais rápida, sem a carga, mesmo sendo morro acima. Mas ele disse que se fosse sexta, ou dia de sábado, esticaria até Mira Torres, que fica logo adiante de Passos de Torres, que por sua vez é a cidade seguinte de Torres, e teceu explicações sobre a lógica intrínseca destes nomes de cidades gaúcha e catarinenses, na ordem das progressões de suas distâncias. Explicações óbvias, desnecessárias, dessas usadas por quem está simplesmente querendo manter o diálogo, aplacando a solidão do quotidiano dos motoristas de caminhão. Contou que em Mira Torres ele tinha um amigo, Roberto, sua esposa Beatriz e a filha Fernanda. O motorista e Roberto tinham estudado desde o terceiro ano do fundamental juntos, nenhum deles terminou o ensino médio, mas quanto a isso ele não mencionou a razão. Ele morava numa casa de praia, simples, mas muito bem cuidada. Roberto era pedreiro e ele, o motorista, costumava pernoitar por lá, se era fim de semana e, principalmente, se estivesse fazendo Sol, com o céu limpo, dia quente de verão, para um banho de mar em Mira Torres e um bate papo descontraído com o amigo de longa data. Em nenhum momento o motorista disse o seu nome ou perguntou o meu. Em nenhum momento perguntou o que eu ia fazer por aquelas bandas. Pensei em como os gaúchos são discretos, ou talvez o tipo de pessoa que toma caronas seja um tipo desinteressante, mais um bom ouvido que boa boca, com uma vida vazia e erma, tão contada e recontada que já não lhe dava atenção, ou, por ventura, um misto de ambas as coisas. Eu ajudei o motorista a descarregar os fardos de lenha. Para isso, antes eu tirei a camisa branca social e a dobrei com zelo, deixando-a sobre o assento, na boléia do caminhão. E, depois, feito também o trabalho com calma e cuidado para não suar muito, não sujar a calça preta de pano, também social. Minha única vestimenta. O motorista pagou o almoço num restaurante barato e ainda me deu trinta reais pela ajuda com o trabalho. Você adiantou o meu dia em uma hora e meia, ou duas horas, obrigado e até mais. Então, antes dele partir, perguntei o seu nome. Meu nome é Anderson, ele respondeu, sem perguntar como eu me chamava. Melhor assim, pensei cá com os meus botões. Parto sem destino rumo ao sul.
        
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Com nove reais mais vinte e cinco eu compro uma vodka balalaika bem gelada, e ainda me sobram vinte reais mais setenta e cinco, em cash. Eu estava me sentindo muito bem, com roupas novas, descansado, bem alimentado, o parrudo com a sua barba de lenhador mal desenhada. Sigo tomando a balalaika aos poucos, enquanto caminho de Passos de Torres para Mira Torres. Boas três horas e meia de caminhada, aos goles da vodka barata, que aos poucos ia aquecendo. Mas beber e caminhar era técnica que eu havia desenvolvido desde a adolescência, quiçá, de vidas pregressas, outras encarnações. Quando se bebe ao caminhar, o álcool é absorvido e queimado mais rápido, funcionando como um amortecedor das ideias com ação analgésica concomitante para a jornada. Chegando na praia de Mira Torres, apesar de um leve bafo de álcool, eu ainda me sentia otimista e bem apessoado, cabelo e barba grisalhos, roupa social. Fui perguntando para um camarada aqui, outro acolá, elicitando, até que, enfim, já quase ao final da tarde, o cara da mercearia me disse, tu segues duas quadras, dobra à esquerda, tu desces uma quadra, vira à esquerda de novo, é no meio dessa quadra, do lado esquerdo, é lá que ele mora. Parto sem destino rumo ao sul.
        
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Dou três socos na porta, não muito fortes, não muito fracos, pancadas assertivas, seguras de si. Roberto. Roberto. Uma linda loura gaúcha, de pele muito branca, olhos muito azuis, bunda e seios firmes, generosos, portando uma cabeleira encaracolada que lhe caia até cinco dedos abaixo da linha dos ombros. Deve ser Beatriz, pensei com os meus botões. Roberto está? O Roberto foi dar um mergulho no mar, ele sempre faz isso no fim da tarde. Já volta. Você deve ser Beatriz, não é? Sim, sou eu mesma, ela faz uma cara de preocupada, talvez pelo inusitado da situação: um cara de estatura mediana, cento e trinta kilos, aquela barba de lenhador mal desenhada, a roupa social, os sapatos pretos, brilhantes, de couro. Eu a acalmei com a minha fala. Eu sou bruxo (amigo, em bom gauches) do Anderson, o motorista, faço frete de carga também, o meu caminhão quebrou, precisou de um conserto, perdi dois pneus e amassei a roda num buraco, numa cratera, deixei no borracheiro em Passos de Torres, ele me disse que é bom com o martelo para desentortar a roda, não tinha onde dormir, passei um rádio para o Anderson, ele disse que não sabia, mas talvez eu pudesse pernoitar na casa de vocês. Ah... pode sim, uma mão lava a outra, o Roberto já chega, são amigos desde antes de eu conhecer o Roberto, o Anderson. Por sorte a Fernanda não está em casa, foi dormir na casa de uma amiga, diz que é trabalho de escola, mas nessa idade, não sei não. Mas a gente também tem o direito de se divertir, não dá pra ficar o tempo todo na cola da menina, né?! Entra, quer um café? O Roberto já vem, senta aí. Passa um café fresco, com calma, com a água aquecida no fogão a lenha, ao invés de filtro de papel, coador de pano, adiciona quatro sementes de cardamomo, eu fico sentado à mesa, a fitá-la. Ela chega com três jogos de xícaras e pires, depois traz o bule de café fresco, fumegante, a saborosa fumaça incensando o ambiente. A porta da sala dá para a praia. Ao longe vejo um homem alto, moreno, tipo atlético, ainda assim magro, que vem caminhando lentamente da praia em direção à casa. Ela acena com a cabeça na direção dele, Roberto. Roberto entra e Beatriz começa a falar. Primeiro me apresenta, esse aí é um amigo do Anderson, diz que teve um problema com o bruto, quer pernoitar aqui em casa. Eu não preciso falar nada, só estendo a mão e digo, prazer Roberto, ele diz prazer amigo do Anderson. Nesse ponto fico imaginando se já não é um absurdo esse desinteresse pelo outro ser humano, coisa de gente dali, muito na deles. Beatriz e Roberto engatam uma conversa sobre o dia a dia, o que você fez hoje, amor? E aí, deu certo de pegar a nova obra? E a outra, quando termina? Você também tem de descansar, Roberto. Hoje eu estou aqui contigo, não estou, Bia? Eles se beijam, era como se eu fosse completamente invisível, não pertencesse às mesmas dimensões do espaço-tempo do universo deles. E, é bem provável que, de fato, não. Ou talvez tivessem pressentido algo de podre na minha aura, algo cinza, ou denso, ou pesado, ou enuvarado. Roberto me diz, dorme lá no quarto da Fernanda, aqui a gente deita cedo. Ele toma um banho demorado, se arruma devagar, depois vai para o seu quarto. Beatriz já está lá. E assim eu faço também, tomo um banho e me fecho no quarto de Fernanda, quem sou eu para recusar o pernoite. São oito horas e eu me deito, não consigo pregar os olhos, é muito cedo, o sono não vem. Em geral eu durmo tarde, acordo cedo, sofro de insônia. Leio uma antiga revista Manchete, que é o único texto que me agrada no quarto da menina. Nada de Harry Potter, romances adolescentes, livros de ficção, alguma coisa de misticismo, psicologia, religião, não, apenas a revista Manchete, com muitas fotos de celebridades, textos curtos, letras grandes, legendas com os nomes das atrizes, tudo numerado, organizado, então essa gostosa aqui se chama X, e aquela gostosa lá se chama Y. Nunca me lembro dos seus nomes. O rádio no quarto do casal toca Kid Abelha Acústico MTV, num som que, lá dentro, deve estar num volume bem alto. Não demora muito para que os gemidos, gritos truncados de penetração, coisas que eu não sei, mas posso imaginar, que devem estar acontecendo entre Beatriz e Roberto, alguns gritos dele também, mais espaçados, ah..., mete, mete, assim, mete, mete, mete mais, na voz de Beatriz. E isso vai se estendendo, das quinze para as nove até quase uma hora da manhã. A coisa toda acontece em ciclos. São três ciclos de quinze minutos de ação com intervalos de cinco minutos entre eles, completando cada hora de sexo selvagem, pura entrega. O ápice, os orgasmos de Beatriz, parece se estender por quase oito minutos, quando ela uiva baixo, geme, grita abafado mete, mete. O de Roberto é mais pontual e intenso, acontecendo sempre entre o décimo segundo e o décimo terceiro minutos. Mas cada jogo, vamos chamar assim, parece uma nova música, uma nova sinfonia, de diferentes ritmos, outro tipo de encanto. Eu sei disso porque não consigo adormecer até que tudo termine, com o Kid Abelha ao fundo, em modo repeat ao reiniciar o DVD. Resultado: uma taxa de três punhetas por hora para mim, acordo noutro dia com o pau ardendo de esfolado. Ao despertar fico imaginando como eles conseguem foder tanto, fico imaginando quanto amor tem um pelo outro, porque isso é evidente, a marca registrada de cada uma das treze sinfonias de sexo, uma reciprocidade, cumplicidade, um querer amar de deixar qualquer observador cabisbaixo, se sentindo um merda, só de imaginar ser possível existir amor daquele tamanho. Ele com tão pouco, o pau esfolado, a cabeça baixa no café da manhã. Beatriz nem liga, está iluminada, fala, conta da sua vida com alegria à mesa do café, parece cantar, mas fala, um sabiá transmudado na forma de mulher. Roberto, um pouco mais contido, mas milhões de anos luz adiante da insignificância e uma boa dose de vergonha que me afligiam. Muito. Disse, obrigado, até mais, e sai caminhando pela praia de Mira Torres. Os sapatos e as meias sacados, estes e a camisa branca dobrada eu carregava em minhas mãos, a calça social preta dobrada até pouco abaixo do joelho, seguia sobre a fronteira móvel das ondas na areia, procurando manter a água do mar ao nível de meus tornozelos. Ah... a liberdade. Ah... a liberdade. E, no fim, não é nada disso. Parto sem destino rumo ao sul.
        
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Em Passos de Torres, ainda na orla, cruzo com uma vendedora de brincos, miçangas, biquínis, que, por razões óbvias, me fita ao longe, mas vira o rosto quando estamos nos aproximando. Ela não é feia, apenas um pouco seca demais, com a pele judiada pelo Sol e de caminhar pela praia o dia todo, parece também meio riponga, ou algo mais pesado, deve ter se introduzido recentemente no mundo do crack, ou talvez o limiar entre uma coisa e outra, vai saber. Então eu me dirigi a ela e perguntei, quanto custa este brinco, apontando para um jogo de peças no formato de gotas curvadas, deviam ser de prata, por certo, formas fluidas, como as ondas, como o yin apenas, como o yang apenas, separados um do outro, ideia da mente de algum artesão muito maconheiro e com um bom equipamento para a fusão. Estes custam oitenta reais, meu senhor. E para irmos atrás daquela construção e darmos uma rapidinha, quanto é que fica? Tem camisinha? Tenho. Então são cem reais, ela se empinou, exibindo o corpo. Eu não podia perder aquela chance de liberar o tesão recolhido da noite anterior. Então caminhamos em direção a construção, para trás de um muro de lajes planas pré-fabricadas, bem rente a praia. Além da construção, pela metade, tinha um bocado de areia e um bocado de mato verde, como se a obra tivesse sido abandonada a própria sorte. Ela encostou a bolsa e o quadro com as pratas e as miçangas no muro, tirou a roupa, me pediu a grana e a camisinha. Eu enfiei a mão no bolso, saquei tudo que havia lá e lhe dei. Vinte reais mais setenta e cinco, nada de camisinha. Ela me disse, mas o que é isso? Isso é tudo que eu tenho, pronunciei com um ar desolado e honesto. Olha, você não quer levar umas pulseiras de couro, ela tentou desconversar. Não, eu preciso de você, eu disse. Olha, por isso aí, só se for um boquete, pode ser? Eu assenti com a cabeça, abri o botão da calça de pano, baixei o zíper e a parte da frente da cueca samba canção amarela (para dar sorte). E o meu pau saltou rijo pra frente. Ela me olhou com aquele ar de onde é que eu fui me meter? O meu pau era pequeno e fino, quase sem carne, sem músculo, parecia o osso da coxa de um frango. Com a glande à semelhança das cartilagens da extremidade maior do osso da coxa, o pinto com uma seção fina e a cabeça cheia de pelanca, fimose. Mas ela chupou bem, enfiou o osso de coxa de frango todo dentro da boca, pressionava a glande em direção a garganta, massageou a cabeça sebenta com a língua, depois roçou de leve a seção do osso com os dentes, então ela o tirou rápido da boca, astuta, enquanto aquele ossinho pulsava e expelia um generoso volume de sêmen. Olha, engolir, eu não engulo. Botou o biquíni, uma canga, pegou a mochila e o quadro de artesanato, e partiu. Deixou-me ali, suando e com o pinto murcho, a cueca samba canção agora arriada até a altura dos meus joelhos. E voltou para o seu trabalho como se nada tivesse acontecido. Parto sem destino rumo ao sul.
        
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Eu boto minhas roupas, deixo a orla e atravesso a ponte pênsil que me transporta de Passos de Torres (SC) para Torres (RS). Entro num restaurante simples, peço um copo d’água da torneira, explico que tive os meus pertences, carteira e celular furtados, o garçom se prontifica a ligar para a polícia, diz que num caso desses é recomendável ao menos que se faça um B.O., mas ele não sabe da minha história, então eu desconverso, digo que é desnecessário, depois eu cuido disso. Conforme os clientes vão deixando suas mesas, peço ao garçom para comer os restos de seus pratos e, logo, já estou almoçado. Agradeço ao garçom pela gentileza, peço desculpas pela situação constrangedora e me despeço. Sigo para fora da cidade, novamente margeando uma rodovia. Tento chamar a atenção dos carros com o dedo polegar da mão direita em movimentos pendulares centrados no cotovelo, indicando o sentido da via, ou, para quem não entendeu, pedindo carona, carona para qualquer lugar. Então pára uma camioneta branca com um grande refrigerador sobre o chassis, dois grandes marfins azuis formando um xis e compondo o logo lateral, placa de Gramado. Na Chevrolet branca estão o motorista e o ajudante que perguntam para onde é que eu vou. Digo que é para Gramado, mal entro no veículo e os dois começam a me contar sobre o trabalho diário do transporte de peixes, pegam o peixe fresco de Passos de Torres e os levam para a distribuição, a comercialização, o abastecimento das cozinhas dos hotéis e restaurantes de Gramado. Falam sobre os diversos tipos de peixes e outros frutos do mar, falam das suas quantidades em kilos, que transportam. Sobre as flutuações do mercado de acordo com as estações do ano, porque um determinado tipo de peixe é mais comum em tal e qual época, menos acessível nas outras, e assim é a dança da vida, de certa forma, a alimentação é apenas mais uma de nossas necessidades guiada pelos ciclos, a interagir com os ciclos de vigília e sono no ser humano, as fases da Lua, os ritmos dos ventos, das correntes oceânicas, estando assim, guardadas as devidas proporções, tudo interconectado, nós todos conectados através de anzóis, linhas de pesca, redes e outras estruturas de conexão, mesmo as nossas ondas cerebrais, a emitirem pulsos de alta freqüência, que são modulados pela freqüência dos batimentos do coração. Não estou aqui a discorrer sobre sístoles e diástoles apenas, estou, antes, me referindo ao metafísico associado a este órgão de natureza pulsante, vibrante e sensível ao meio, estou a discorrer das nossas escolhas, dos nossos sonhos, ao nível conceitual e potencial de construção da própria realidade, aquilo que verdadeiramente nos anima, nos faz seguir adiante, apesar das adversidades. Estou a tratar da fé, no seu sentido mais amplo. No amor, na caridade, no desejo de ver o outro feliz, em última instância, no anseio pela completude, na realização pessoal, a justificar toda a existência, se é que você me entende. Acho que não. Isso não foram eles que disseram, fui eu que pensei. Sou apenas um passageiro a ouvir, a ouvir, a ouvir, e registrar. Deixar fluir para dentro da mente, imiscuir aos sentidos, tirar as minhas próprias conclusões e sonhos, estes irão se materializar em breve. Sou gestante de ideias. Salto na cidade de Canela. Entro na Catedral de Pedra, escondo-me antes da nave ser fechada. Aqui passarei a noite só e em oração. Imerso aos cheiros de velas sendo queimadas, centenas de milhares de pedidos erguidos aos céus e agradecimentos por graças alcançadas reverberam simultaneamente na cavidade que é o interior daquela nave, edificada exatamente como um neurônio retransmissor do ser humano à divindade, para o equilíbrio de todo o cosmo. Deito-me sobre um banco da Catedral de Pedra e adormeço. Parto sem destino rumo ao sul.
        
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Na manhã seguinte o pároco se assusta ao ver-me deitado sobre um dos bancos da nave roncando como um porco. Mas poucos segundos depois, isso ele me disse depois, estava refeito do susto, porque sabia não se tratar de uma nova aparição de Jesus Cristo ou mesmo um desdobramento do Satanás com muitas cabeças, como fora descrito no apocalipse de São João Evangelista. Apenas um cara grisalho, centro e trinta quilos, parrudo, com a barba de lenhador mal desenhada no rosto, apenas um ser humano comum, sem grandes propensões para o bem ou para o mal, ele avaliou. Nada relacionado à ocorrência dos milagres, nada de possessões ou grandes distúrbios psíquicos, aqueles de natureza psico-cinética, exceção feita ao peido com forte odor de enxofre, ao bafo de centenas de serpentes, aos pêlos que remontam ao Tony Ramos, nada que estivesse de alguma forma relacionada aos mitos do herói ou àquele do asceta. Um bosta, apenas um bosta, com o perdão da palavra, ele me confidenciou. Sem saber como reagir àquela investida, eu disse que havia dormido na Catedral de Pedra porque precisava de confissão. Obviamente julguei que ele não tivesse qualificação para fazê-lo, e eu sairia ileso daquela sinuca de bico. Pois então vamos tomar um bom café preto, eu preparo, trouxe pão fresco e manteiga com sal, o pão é contado, mas deve sobrar um ou dois filões para você, sempre aparecem visitas inesperadas na hora do café, hoje foi você, depois eu faço a tua confissão. Trato é trato, retruquei. Então eu narrei para ele a história absurda de um cara que, sem norte, decide viajar sem destino rumo ao sul. Mas a história era outra, completamente diferente dessa narrativa sem pé nem cabeça, porque o que eu contei é como a minha vida devia ter sido, e também como é que ela foi, nada de sair por aí mandando os outros tomarem bem no meio dos seus respectivos cus, que se fodessem, cada qual a sua maneira e gosto, mas sim um processo conduzido por tênue encadeamento, de elos, uma fina corrente, filigrana, estes elementos de conexão flexíveis a unir as contas de vidro. Aquilo que eu narrei para o pároco, aquela jóia, era o que eu gostaria que você soubesse, tudo aquilo que eu não soube descrever aqui. Não por vergonha, mas porque de repente a vida se tornou um televisor cuspindo informações aleatórias, nunca uma história com continuidade, com altos e baixos, sim, a modularem a experiência, mas uma história com encadeamento, passível de renovação, de renascimento, como o Sol, como o dia, como a noite, como as fases da Lua. Então eu decidi mentir, omitir, distorcer, não na confissão para o pároco, mas na história paralela, nessa minha narrativa. Porque eu gostava de brincar de Deus, foder com os personagens, na mesma medida que Deus nos outorgou o livre arbítrio, enquanto eu escrevia. E isso tudo era apenas balela, de quem está fugindo, tentando esconder da vida a intensidade, enchendo-a de adornos, furtando-lhe a essência, do significado, e este não sou eu, em definitivo. Parto sem destino rumo ao sul.
        
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Caminho a pé da cidade de Canela para Gramado. Deixo para trás os meus pecados, deixo para trás a minha narrativa sobre um dos bancos da Catedral de Pedra. Daqui para frente, tudo o que está descrito nesse caderno foi anotado a priori, antes de se manifestar como realidade. Eu escrevo sobre um futuro que eu imagino, esse que é o da narrativa ficcional. Não a ideação mental da semente para a realidade da árvore, essa é outra história. Mas há ainda uma terceira possibilidade. Parto sem destino rumo ao sul.
        
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No meio do caminho vejo a sinalização de acesso para uma cachoeira. Caminho por vinte e dois minutos, os vinte e dois minutos mais longos da minha vida. Chego numa clareira que se descortina frente à trilha na mata. Eu vejo rochas, arbustos de hortênsias, borboletas brancas, ao fundo, a banheira cavada na pedra por uma imensa queda d’água. Tiro toda a minha roupa, dobro-a, organizo com zelo sobre uma grande pedra ao Sol, distante da água. Entro na água super-gelada aos poucos, molhar as bolas do saco é quase premonitório, dá um aperto profundo na garganta. Então eu mergulho, dou braçadas parrudas, toscas, porém vigorosas em direção ao centro da cachoeira. Entro debaixo dela, sinto a pressão da água sobre os meus ombros, sobre a minha cabeça. Então subitamente relaxo o corpo, deixo o fluxo me levar para a borda. Faço isso por três vezes. Na quarta investida sinto câimbras fortes em ambas as panturrilhas. Simultaneamente. Depois outra fisgando o abdômen, fazendo eu me curvar, sem reação, apenas tentando respirar, permanecer na superfície. É quando dou com a cabeça forte numa pedra. Aquilo que cada um acredita ser a realidade, a narrativa dum certo homenzinho parrudo ou o exercício da imaginação para a construção da realidade. Esta é a terceira via, como se fossem três as caixas do gato de Schrödinger [*]. Enquanto nas duas primeiras caixas, nunca sabemos em qual delas ele está, só a intuição é bússola precisa, ela vai de encontro ao gato, assim como o gato procura por ela. Enfim.
         
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Jorge Xerxes– heterônimo de Alessandro Teixeira Neto – é pisciano; nascido no ano de 1971. Natural de São João da Boa Vista, SP; “cresci ao pé da serra da Mantiqueira; por entre trilhas e cachoeiras; sempre em rota de colisão àquele verde inconcebível”Estudou por pouco mais de dez anos na Unicamp; “tinha o meu próprio ritmo de assimilar as coisas” diz com um sorriso enigmático no canto da boca. Interessa-se por tudo aquilo que nos passa desapercebido; “gosto de escrever sobre as coisas pequenas”.
 Publicou:
“As Cinquenta Primeiras Criaturas”, Livro de Contos e Poesias, 150 pp, Editora Multifoco, ISBN: 978-85-7961-109-4, (2010).
“Para Pescar a Lua”, Livro de Contos e Poesias, 138 pp, Ryoki Inoue Produções, ISBN: 978-85-63427-09-0, (2011).
“Trama e Urdidura”; Livro de Contos, Crônicas e Poesias; 156pp; Scortecci Editora; ISBN: 978-85-366-2764-9; (2012).
“Jornada Rumo ao Sol”, Livro de Contos e Poesias; 132pp; Scortecci Editora; ISBN: 978-85-366-4181-2; (2015).
 Mantém o blog “Palavras Órfãs de Poesia: O que Restou”, desde Dezembro de 2008. https://jorgexerxes.wordpress.com/

        
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