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7 poemas de Greta Benitez

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Alla Nazimova, 1923


Estação Vitrola

Amigo da outra esfera
devolva minha vitrola
para que eu dance o fox trot eterno.
Ela e o caderno sempre foram meu romance
meu ménage à trois.
Com eles, os melhores instantes
quero pegar o próximo trem
com meus dois amantes.



Paco Rabanne

Longos cílios
Longos tangos
Loucos vestidos longos
Uma loura em um Caravan marrom
O que aconteceu comigo?
Um carro antigo
Um sonho bom.



Glitterdays

O músico das luzes
Novo amante encontrado no patchouli
Entre os odores desobedientes das feiras
Homens novos se descobrem todos os dias
Homens nobres se cobrem todas as noites
Homens pobres se...
Homens podres nos...
Vento na cortina colorida
Madrugadas vetiver



Reinado

Agora
Garoa
No meu sonho, o desenho de uma coroa
Hora de parar
O unicórnio finalmente encontrou seu lugar.
O ponteiro se mexeu
Bem-vindo, meu agridoce cavalheiro.
O Rei, agora é meu.




Bordado

Hoje estou fácil para você.
Na vitrine, de graça (quase).
Cantando na praça
Bordando uma frase
Tricotando passos à sua procura pelas ruas.
Hoje, mas só por hoje
Minhas tatuagens são suas.



Aviso:

Fechem suas portas
Porque o minotauro está à solta
E todas as noivas estão bêbadas.
As castanhas portuguesas estão envenenadas
E os drinks foram preparados
Não se sabe por quem.
O tornado é o sopro do homem do lago vermelho
E a purpurina vai se espalhar pela festa.
Fechem suas portas, famílias cristãs, cubram seus espelhos
Protejam suas virgens em tules sagrados
Porque os homens mais feios, agora belos são considerados
Eles são os noivos
E chegarão em fúria.




Check-In

Não me importa entrar pela porta arabescada
Do desespero
Descer
Inferno
Destempero
Desequilíbrio
Certas cordas sem rede de proteção
Fogo
Carvão
Súcubos
Exus
Sereias amaldiçoadas, super-heróis do avesso
Nada disso me assusta
Se tiver certeza de que na saída
Eu estarei do lado de fora esperando por mim.




Greta Benitez nasceu em Curitiba. Lançou os livros “Rosas Embutidas” (Edição do Autor, 1999), “Café Expresso Blackbird” (Landy, 2006) e Canção Antiqüe” (Patuá, 2013). Foi publicada em revistas como “Oroboro” e “Continuum”. Recebeu diversos prêmios e participou de várias antologias.

"com o luto a fervilhar nas ínfimas artérias das necrófilas borboletas" - 3 poemas de Luiza Nilo Nunes

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O clamor


I

Assopremos as arquejantes rosas
As milagrosas corolas
Que se debruçam com seus caules insones sobre o pálido tremeluzir da fala
Assopremos as palavras dos seus redutos de sono
O fogo puro para o sacro instrumento matinal da escrita
As arcaicas e irrepetíveis vibrações do fogo junto aos periféricos aquedutos da voz
Enredemos as oscilações da voz, as suas
Raízes púrpuras
Os seus luminosos peixes atravessados de mortuário silêncio
Os seus pássaros oxidados, os seus
Inúmeros cobertores de incêndio


II

Quando os dedos escavam lentamente os sintomas ossuários
Da página
As feras vigilantes anoitecem
Com os seus pulsos clamados de lâminas puramente
Arteriais,
São dóceis com as flores arqueadas até à alvura das frontes
São como as mulheres ao redor das mesas
Imóveis e cálidas
Incubadas em suas asas enclausuradas de morte,
As mulheres que sopram a palavra para os seus púlpitos negros
As mulheres que levantam o pó dourado da palavra, que a deslocam
Potencialmente
Sobre as agulhas matinais dos brilhantes lábios
Sobre as líricas e assombrosas mandíbulas


III

As manhãs principiam em suas crisálidas de treva
A luz volteia nas crateras extintas como as mãos que enlutam no sangramento
dos nomes
O outono vibrará entre a seiva estelar dos ombros, com os seus tétricos
Galopes de fuligem ao redor dos ossos plúmbeos
Com as suas rosas enegrecidas que circulam
Cantaremos para o crepúsculo abominável das mãos


IV

Para que se abram lentamente as águas e as transponíveis paredes
Cantaremos os vasos breves
As férteis orquídeas pressagiadas de sono com os teus quartos sufocados
De flores e de nocturnos aparelhos
Cantaremos os fósforos indeléveis dos espéculos
Para que os aquários transbordem em suas artérias de sede
Para que inundem de espuma os fundamentos
Da página


V

Com uma coroa luminosa
Escutamos o cardíaco estremecer dos mortos e dos astros rubros
O recôndito pomo sangrado entre a alvura das têmporas
As gotas do ouro e do deslumbramento
Escutamos um círculo musical com mercúrio nas pedras
Um círculo transparente de rosas inumadas e de inúmeras crianças
Dessas misteriosas e diáfanas áleas desprende-se um perfume
Arcanamente casto
A linguagem límpida e monstruosa das folhas
O sangrento animal em minhas mãos e mandíbulas
A aquática estrela arterial da escrita




Sobre o outono lutuoso das mãos


As folhas estalaram de luto ao redor das esquálidas e indeléveis mãos,
as mãos enregeladas de sintomáticas névoas,
as mãos pressagiadas por uma luz tão límpida onde a noite tecia
as suas anímicas redes,
mãos que eram como orquídeas sem o sangue fosforecente dos caules,
que eram dedos estelares comprimidos sobre a rugosa e transbordante memória
de inúmeras unhas palidamente orvalhadas,
com ossos
longos e duros que puxavam as cordas para a roldana lutuosa das rocas
que dobavam a treva sobre as membranas dos peixes.
As folhas estalariam de luto ao redor dessas diáfanas mãos,
porque eram folhas vigorosas desde o centro mais outonal dos bosques
cardiacamente plúmbeos,
eram folhas, pedras e rosas assopradas na raiz porosa do ouro
nauseabundo,
pedras escarpadas desde o arco translucidado e inavegável dos poços

Recordo
sobre essas mãos esmaecidas as estações cantavam as suas traqueias de cobre,
giratórios equinócios vibravam nos acordes dos dedos,
os quartos musculados de nocturnas abóbadas
cresciam e respiravam nos declives
das copas - os pátios levantavam as fuliginosas maçãs, as esporas corrosivas,
os eléctricos lírios aparelhados de morte,
era a eterna travessia das lúgubres carruagens:

havia mulheres com os aquários secos,
sombras uterinas ao redor das vigílias,
líricas mulheres com os pulsos escamados de solitários astros,
mulheres brilhantemente pálidas junto ao rodar e amanhecer dos negros berços,
eram figuras de sono até ao princípio mais materno das bocas,
com as rosas desabrochadas sobre os dédalos cerebrais, sobre as barrigas diluvianas
e carregadas de escombros

Mas era nessas mãos de mulheres contempladas de pétalas de inauditos assombros,
nessas mãos onde a morte hospedaria as suas clareiras de febre, as suas pálpebras
rugosamente verdes, os seus líquenes tenebrosos
eram essas as mãos que inclinavam as rocas e a respiração oxidada dos pássaros,
mãos até ao silêncio mais aquático das urnas
mãos até ao incêndio regurgitado das casas,
mãos com o luto a fervilhar nas ínfimas artérias das necrófilas borboletas,

mãos
com o outono a embalsamá-las



Tétrico opúsculo amoroso


Escutarei a inaudita melancolia dos teus nocturnos pátios
os cabelos naufragados em seus círculos constelares e triunfantes de treva,
as suas copas incendiárias pressagiadas de ouro, os teus pomares chamejados
de sibilantes libélulas
Lembrarei as tuas mãos diurnas nocturnamente castas que encadeavam o movimento
zodiacal das rocas
as tuas mãos plenas de rosas e de intangíveis equilíbrios
as tuas mãos inalteradas sobre os princípios do mundo


Escutar-te-ei
a estremecer desde os antigos recessos da mortuária carne
com um alquímico tubérculo a enredar os venenosos filamentos do coração gélido
com a memória bolorosa dos espumados espéculos que pirogravavam o teu rosto
entre pétalas e giratórios clamores,
os espumados e cardíacos espéculos ensombrados puramente de cadavéricos
pássaros,
ensombrados de nomes rumorosamente crepusculares,
elegíacas nomenclaturas,
espelhos assoprados de máscaras fossilizadas de tantas flores vítreas
até que as clepsidras estalem das suas urnas arenosas e se rebentem pálpebras
no rodar dos séculos.


Pelas manhãs
com a dolorosa paixão a alquebrar os caules
direi que os dias carregam poemas de cinza nas suas órbitas luminosas
direi que os braços alquebraram os ombros para o centro explosivo das fugitivas águas
que os braços conduziram os pulsos para o centro nuclear dos sanguinários corpos
para que as fontes derramassem os seus sémens transbordantes e mágicos
para que os pátios reabrissem todas as portas matinais do começo ao monstruoso
eclodir de um amor absoluto


Amor: esqueletos plúmbeos, corpúsculos negros, desvigoradas rosas ao redor
da cabeça,
bocas acesas em candelabros de morte, o animalesco e macio odor exangue
dos frutos, a sublimada pedra verde, cantante,
inesgotável voz,
a harpa rarefeita com sua sombra de ternura,
o álcool para o pó intoxicante dos lábios


tempo que suspendo por detrás dos muros altos
um bosque aceso
um lugar secreto e puro para brilharmos para sempre


*imagem: Am Abend. - daunhaus


5 poemas de Dione Carlos

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1.

Cravo


Silêncio cravado no espaço entre nós
Gengivas decadentes
Ogivas desativadas
Língua amortecida
Palavras desencontradas
Silêncio cravado no espaço entre nós
Mais um terrorista
Onde está a bomba?
Ele me lança no vazio.
Explodo no espaço entre nós
O som, agora preenche aquele vazio e o silêncio permanece no antes e depois do que clareia e
cega, alimenta, esvazia.
Onde estamos?
Espalhados em paredes e sobre a carne humana
Sobre a carne humana, subaproveitada, revendida, traficada, fabricada, explorada.
Mãos no lugar dos pés, pés nas cabeças e na praia uma menina vela a família na areia.
O grito, idioma internacional dos inaudíveis, invisíveis, previsíveis.
Mais um terrorista.
O imprevisível.
Caixão sem cravo.

2.

MÃOS NÔMADES



No banho resquícios de sujeira
renovação de imundícies
a água escorre pela cabeça
Mãos apressam os filetes através do corpo
registram a forma, o tamanho
despertam o sangue
Entre as pernas o rosto iluminado, cega
a cabeça dança em círculos
uma língua ativa
A boca aberta o gosto de Éden
o pedido de asilo
fronteiras entre pelos pubianos
Costas largas que sobem e descem colinas, montanhas, mares
deixam marcas na natureza
recebem e doam
Pernas abraçam quadris, apertam, coreografam
O mergulho de um rosto em outro pescoço
Peito com seios, barriga entre coxas
Murmúrios variados
Posições invertidas
A boca aberta, o gemido morto
O fim do paraíso
Mãos nômades

3.

Um vampiro me disse


Quando meu sangue chegar até você, saiba receber.
Quando me doar o seu, saiba oferecer.
Para que não existam coágulos entre nós.
Porque o sangue é algo sagrado demais para se desperdiçar com vampirismo amador.
Nos suguemos intensamente.
Sem uma gota fora do dente na jugular.
A veia, nosso ponto de encontro.
A veia, nosso quarto, onde a luz não entra.
A veia, nosso portão sem grade, fechadura aberta.
A veia, dilatada nos anima.
A veia, sugada nos emancipa.
Um vampiro me disse.
Chupar na ausência de sangue é voltar no tempo.
Largar o peito, sugar borracha.
No pescoço, um mapa .
Mãos frias escorregam , controlam o ar que entra, fica, espera, segura, sai.
Vou, fico, parto, volto.
Sou inteira meu pescoço.
Todo ânimo, todo breu, toda a cachaça concentrada .
Meu colar ao redor de mim.
Sem ele, desnuda.
Com ele, vampira


4.

Reciclagem cardíaca



Amor capturado.
Encapuzado, fica cego.
Ouve e aspira o fedor de seus captores.
Recebe o soco, ouve a faca, sente o choque.
Tudo sabe, nada diz.
O amor é um péssimo informante.
Qualquer amor delator é paixão passageira, de pequena intensidade.
Sequestro a paixão, por vingança.
Dois meses em cativeiro.
Não a maltrato.
Conta tudo, sem nada saber.
Paixão vira lata.
Do meu peito para a reciclagem.
Paixão de grande intensidade.
Nada sabe, nada diz.
Submerge em mim.
Afogado no lixo.
Lá está o amor descartado.
Meu coração, inservível, insubstituível por outro que não seja o teu.


5.

Shanghai



Quem não tem avião voa em Shanghai com suas naves coloridas acopladas
entre si.
Tudo gira em círculo ao redor do mesmo ponto.
Cadeiras, xícaras, minhocas, gaiolas.
As luzes iluminam os gritos quando a noite chega.
Euforia e pavor em decibéis elevados.
Pipoca, algodão doce, rifles, brindes, pelúcia.
A vara de pesca fisga um peixe artificial cujo prêmio é um pega varetas.
Na máquina uma vidente de plástico revela o futuro.
Na gaiolinha de madeira o papagaio tira a sorte.
Quem não tem carro dirige em Shanghai com seus carrinhos estridentes
batendo entre si.
Impacto nas costas, cabeça, braços, nervos, gritos, perseguições.
Sempre estive em Mônaco passeando pelo principado.
Abatida por algum tipo de motorista bêbado sem carteira.
Fim do sonho.
Bater de volta ou escapar pela pista?
Pegar o primeiro trem no escuro?
Ao menor indício de luz, a emersão do medo.
Peludos ou não, mascarados ou não, armados ou não, ensaguentados ou
não, o terror se impõe em sua casa.
Quem não tem balão flutua por Shanghai em seus cestos pintados de vime.
A um metro e meio do chão é possível avistar todos os sapatos na fila de
espera.
A expressão de cada rosto ansioso pela sua vez.
A música em Shanghai não foi feita para dançar mas para marcar na
memória o tema de cada lugar.
Desfigurados por espelhos, a passagem arranca gargalhadas.
Quem não tem cavalo galopa em Shangai em seus animais alados.
Rodeado por espelhos, pedras preciosas, basta segurar firme na barra e se
deixar levar pela labirintite.
Passear pelo sistema solar em quinze minutos com planetas de luz
florescente.
Saltar em ambiente inflável.
Passear em um barco viking, dilacerado pelo seu ir e vir.
Baixar, descer, circular sentado na roda gigante enquanto o parque brilha.
Quando a noite chega, algo acontece em Shanghai. Quando ela chegou algo
aconteceu comigo.
Aos três anos percebi que o parque estava com os olhos abertos para mim.

*Parque Shanghai. No bairro da Penha, no Rio de Janeiro.

Musas de Acetileno _ Bárbara Lia

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René Magritte - Landscape, 1926.






(...) amorosa sedenta, encha a boca 
de lodo – oh, haste de luz no metal!
Não chega este amor à altura do seu
amor... Então, enterre-me no céu! 

Marina Tsvetáieva



Tsvetáieva pediu: Enterre-me no céu!
Sonhava viver mais perto do terrível falcão
Ansiava alturas para transformar-se em neve
E desmaiar em brancos flocos meio às crianças russas
Antes de a terrível guerra penetrar
Pele, ossos, vidas pequeninas...
Sabia Marina da dor inexorável do adeus
Sabia que ninguém deve morrer sem conhecer:

Um boneco de neve e uma cama branca de amor.




O céu vela as estrelas; e então as revela
Virginia Woolf




Diante do belo jardim de pedras uma a uma ela colheu _
Duras companheiras de viagem _ mais visíveis que as estrelas 
Morrer seria mais doce _ seria adiável _ se as estrelas não se escondessem 
Virginia e o silêncio do céu irrevelável, intratável e intocado...
Quem dera pudéssemos morrer segurando as estrias duras das estrelas secretas
Aos fortes restam pedras, rios, a coragem, os passos firmes e a decisão:
Nunca mais as vozes ferirão nossos ouvidos com seu mantra





Eu poderia comer o céu
como uma maçã,
mas prefiro perguntar
à estrela primeva:
Por que estou aqui? 
Anne Sexton


Sonhava um filho, sempre a rubra visita mensal
Lua do avesso derramada em lençóis
Crateras estagnadas anunciando ciclos e ausências
Sonhava um filho _ mãos de camponês eslavo
Ou, quiçá, olhos de Susana bíblica 

Vidas femininas em narrativas tétricas
Sem nenhuma resposta da estrela primeva
Resta o voo solitário na cama larga
 
Gozar a dois é atravessar a cortina de Deus
E Deus é mesmo cruel só se revela em luz agônica
Seu rosto é uma luz surpreendida que ninguém captura
Deus é esta pequenina réstia do gozo enquanto dura

Sonhava um filho _ mãos de camponês eslavo
A rubra visita mensal
O voo solitário
A cama larga
A garagem enfumaçada
A coragem...
A coragem...


...ausência frequentada sem mistério
céu que recua
sem pergunta
Ana Cristina Cesar




Subir a London Road de bicicleta 
Tempo de cartões postais e promessas
Em cada canto do mundo um avião pousa - A teus pés
Como quem se move em um oceano de folhagens
O momento fel acena - céu que recua sem pergunta -
Anula o tratado de delicadeza 
Ignora belas meninas nas estações vazias
Uma mala nas mãos e por companhia
Assombro e luvas de pelica




* quatro poemas inéditos em livro. os trechos em itálico referenciam títulos ou versos de escritoras que a autora admira, como Virgina Woolf e Anne Sexton.





Bárbara Lia (Assaí, Brasil, 1955) é Poeta e Escritora. Publicou nove livros (poesia, romance e contos). Destaque em vários Prêmios Literários, entre eles: SESC, UFES, Helena Kolody e Newton Sampaio. Integra várias Antologias, entre elas: O que é poesia? (Confraria do Vento), O melhor da festa - 3 (Festipoa), Amar, verbo atemporal (Rocco), Arqueologia da Palavra _ Anatomia da Língua (Literatas_Maputo) e Fantasma Civil (Bienal Internacional de Curitiba). Vive em Curitiba.


...Um pouco de cólica, um copo de cólera... 1 prosa de Cristina Judar

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John Jude Palencar - Impossible Things

Rosário


Um pouco de cólica, um copo de cólera, a doçura me corrompe e me faz crer. Peças pálidas de louça branca povoam vitrines, me fazem sofrer sonhos de cozinhas docilmente planejadas e pés direitos, inalcançáveis de tão altos. Santa paz da redenção material, rogai por nós
(todos repetem, em coro: gozai por nós!).
Sofás em fila sorriem com desdém, lavalouças que de tão loucas, quidificadores liquidam ideias, exércitos de espremedores avançam em procissão, quase como papas. Pios. Santa paz da redenção descarada, rogai por nós
(todos repetem, em coro: gozai por nós!).
Mesas de centro de quatro pernas, espanadores com quatro penas, processadores de líquidos diáfanos, apitos psicossomáticos das chaleiras cromadas, a panela pressiona minhas têmporas em uma enxaqueca sem fim. Santa paz da redenção material, rogai por nós
(todos repetem, em coro: gozai por nós!).
Penduricalhos nas janelas, uvas em cachos de vidro nas fruteiras, impávidas libélulas furta cor sobre o aparador – na parte interna, pratos alaranjados Nadir Figueiredo, frustrados em suas transparências alaranjadas por jamais serem destaques em mesas de Natal. Santa paz da redenção domestica, rogai por nós
(todos repetem, em coro: gozai por nós!).
Telas de LCD e óculos 3D, relações finadas nas telas da TV, mentiras em efeitos holográficos, o tapete revirado nas pontas, criatividade escondida em dobras, cantos sujos por planos parados, panos encardidos nos vãos das moças. Santa paz da telenovela brasileira, rogai por nós.
(todos repetem, em coro: gozai por nós!).
Escovas de piaçava neo hippies, pás de lixo desencanadas, aspiradores que aspiram uma vida mais fina, lençóis acetinam, o bidê se cala, cálido. A garrafa térmica entorna o caldo, a moça casou. Santa paz da redenção descarada, rogai por nós
(todos repetem, em coro: gozai por nós!).
[Ao sair, é estritamente necessários deixar bíblias, folhetos de cantilenas e véus sobre os bancos].




Cristina Judaré escritora e jornalista, autora dos livros “Vermelho, Vivo” (Devir) e “Lina” (Estação Liberdade). Escreve aqui.

Pequena antologia poética por Rodrigo Novaes de Almeida

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José Manuel Ballester


“Aprendi que a poesia é filha da realidade e da materialidade e impureza do mundo visível, e só através da criação poética o mundo pode ser desvelado.” – Lêdo Ivo



Palavras são pequeninas esferas vibrantes formadas na casca da fala. Como Saturno a devorar seus filhos. São pérolas no regaço carnal de uma consorte. Como Saturno a devorar seus filhos. Para fazer-se, desfazer-se e refazer-se o cortejo onírico. Como Saturno a devorar seus filhos. Ou um naco de aspiração diáfano.

Era uma vez um homem-deus que comandava onze mil guerreiros. Um dia, o homem-deus se apaixonou por uma cabra de uma aldeiazinha distante, quase na fronteira do seu vasto império. Ele tomou para si a cabra, nada pagando ao seu dono, pobre-diabo pastor das estepes. Foi então que o pobre-diabo pastor das estepes se revoltou e resolveu se vingar do homem-deus que comandava o exército de onze mil guerreiros. Sorrateiramente, ele se aproximou da cabra e a matou. O homem-deus, em sua ira desmedida, mandou esquartejar o pobre-diabo pastor das estepes. Cada pedaço do seu corpo foi enviado para cada província do império. Assim, saberiam o tamanho da sua dor e o seu poder. O imperador-deus mandou também construir um templo para praticar a memória da sua amada cabra. Séculos se passaram então. Já não existia império algum. Já não existiam onze mil guerreiros. Já não existia aldeia distante. Já não existiam estepes. Já não existia homem-deus. Tampouco templo. Tudo era ruína. Pó. Os tempos estavam mudados. Todavia, uma estranha adoração permanecera na mente e nos corações dos homens. Altares eram erigidos. Ídolos esculpidos. Religiões nasciam e se corrompiam e se proliferavam a cada dissídio. E a história do homem-deus que se apaixonara por uma cabra das estepes se perdera para todo o sempre.

Nadir do canto e pranto, entram as musas. Nós, as graciosas esferas vibrantes, monumentais estádios etéreos. Nós, substrato. Nós, etos da poesia. Nós que aqui fazemos a vez do coro – obtempera/mento. Dá-Se a poesia. Como Saturno a devorar seus filhos. Canto encantado. Encanto cântico. Encantamento.

Ontem Zaratustra sonhou com dois leões e uma besta negra. Eles o intimidavam, como ocorrera em outro sonho, no qual sete leões o perseguiam. Ele correra, tentando chegar ao cume de uma montanha. Cercaram-no. A besta negra surgira também e se transformara num samurai. Lutaram com espadas. Zaratustra alcançaria, numa outra noite, o cume daquela montanha. Uma leoa prostrada diante de uma mão sem corpo fecharia o seu caminho à última pedra, e também primeira. Um lago com milhares de ametista sob as águas seria a sua única e derradeira alternativa, mas um macaco de pelos dourados conspurcava o corpo de Eva na margem ocidental. E o silêncio. Tinha o silêncio. A guerra estava longe agora, nas planícies. Apenas uma espécie humana sobreviveria então. Zaratustra não pensava em seus filhos que ainda levariam ciclos de tempo para nascer, mas olhava através deles, de crianças brincando sobre um piso de mármore. Aqueles olhos, eram os seus olhos, olhos grandes em faces pequenas, olhos que diziam futuro. A espada do samurai atravessou o seu peito, mas ele não caiu. Continuou lutando, e antes que cortasse o seu adversário em dois, o adversário se tornou mulher. Longe dali dois leões e uma besta negra quebrantavam outro Zaratustra. O dilúvio começara. A água era escura e cheirava mal. Podre. Era um pântano, mas era também uma floresta fechada. Zaratustra subiu em uma das árvores e avançou para a seguinte. Os dois leões ficaram para trás, mas a besta negra mantinha o seu propósito. Zaratustra não sobreviveria. Seus filhos não nasceriam futuro. O mundo não veria mais sol, que explodisse o sol, que explodissem todos os sóis. Andrômeda já atravessara meia galáxia. Eram uma coisa só, uma borboleta dançando no Cosmo. Mas não havia explosões. Não haveria explosões; não até o devido ciclo de tempo. Zaratustra sabia. Nós sabíamos! Um tempo festivo já começara. A dança galáctica, sim! As crianças futuro. Por que Zaratustra ainda sonhava? Por que voltava o seu olhar para o passado, justo agora? Ele trouxe o futuro, mas seus sonhos, mesmo tanto tempo... Ai, o que nós estamos dizendo? Não foi ontem. Tudo agora. Sem amanhã. Mas Zaratustra viu. Viu amanhã e vê agora-ontem. E algo ficou preso no passado, algo que precisa... não... algo que quer se mostrar para Zaratustra. Estou velho, diz ele. Minhas crianças cresceram. Espalharam-se no bater de asas de Borboleta. Agora todos dançam. A nova galáxia festeja. Desde a queda da besta negra do mundo. Eu sou o último da minha espécie. Eu sou passado, agora. Os sonhos me dizem a verdade, sempre. É hora de partir, espírito do tempo. O fluxo em mim deve desvanecer. Precisa. Eu quero. Eu não quero: mais. O ciclo do tempo humano se fechou em mim; como princípio, volto a ser criança. Então. Zaratustra. Presença. Faz-se Esquecimento. Desfaz-se. Uma ode ao homem morto. Pequeno recorte. Dobradura. Borboleta bate suas asas. O sol nasce, como ontem, mas não há mais olhos humanos para vê-lo. Crianças brincam, entre as estrelas. Até que um dia, pleno será o repouso das nascentes dos rios do tempo; é lá que Zaratustra nos espera, agora.

Como Saturno a devorar seus filhos. Potência cosmogônica a velar-des/velar-re/velar o Ser. Como Saturno a devorar seus filhos. Através de um pátio oco lusco-fusco. Como Saturno a devorar seus filhos. Resguarda-se o limite sob um domo, aviltamento do chão. Até estar outra vez no recobrimento concreto do mundo.

Nós não existimos. Existe apenas uma pequena formiga dormindo sobre uma pedra e sonhando que nós existimos. E nós existimos. E os demais seres existem. E o mundo e a natureza existem. E as estrelas. As galáxias. O todo universo existe. Porque a pequena formiga existe ela sonha que as formigas existem. Porque a pequena formiga existe e sonha que as formigas existem. Porque a pequena formiga sonha que existe. Porque a pequena formiga sonha que existe sonho. Porque a pequena formiga sonha que existe pequena formiga sonhando que existe. Porque a pequena formiga existe a pequena formiga não é necessariamente formiga. Porque a pequena formiga não é necessariamente formiga a pequena formiga existe. Como o fruto do conhecimento no Éden não era figo, maçã nem pêssego, a pequena formiga ao não ser necessariamente formiga é em verdade ser. Ser dormindo sobre uma pedra sonhando que nós existimos. Ser dormindo sobre uma pedra sonhando que existe uma pedra. Ser dormindo sobre uma pedra sonhando que existe ser formiga dormindo sobre uma pedra. Ser dormindo sobre uma pedra sonhada sonhando que existe sonho. E que nós, em verdade, existimos.

Interstício do ânimo dos ruminantes. Trincadura orgânica do corpo metafísico – Imitatio Dei. Como Saturno a devorar seus filhos.

A primeira gota do orvalho no Jardim derreterá ao primeiro raio de sol da manhã e produzir-se-á o primeiro som depois do longo silêncio do Inefável.

Uma libélula sorverá o primeiro gole e voará rumo à Imponderabilidade.

Será criado o Homem. Será chamado Homem. E viverá como Homem.

Estará escrito que o Homem não possuirá asas.

Palavra, pedra, homem e galáxia. Pó ao vento, em arrebatamento. E o que mais querem de mim?



Rodrigo Novaes de Almeidaé escritor e jornalista. Tem os seguintes livros publicados: 'Rapsódias – Primeiras histórias breves' (contos, Editora Multifoco, 2009), 'Carnebruta' (contos, Editora Oito e Meio e Editora Apicuri, 2012) e 'A construção da paisagem' (crônicas, com Christiane Angelotti, Editora Sapere, 2012). Tem também textos publicados no Le Monde Diplomatique Brasil, Jornal Rascunho, Observatório da Imprensa, Portal Cronópios, Jornal Opção, entre outros. Site: http://www.rodrigonovaesdealmeida.com/


"nem mesmo mil pás de cal estancariam essa hemorragia"

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Uma tinta que pinte de branco as cores vivas dessa saudade


às vezes planejo meios de emparedar a janela
(Casé Lontra Marques)


Uma tinta que pinte de branco as cores vivas dessa saudade;
paredes brancas amenizam o ambiente; hospitais, asilos e igrejas
demonstram-nos. Onde? onde, ó irmão querido dessa vida de lástima, onde
a tranquilidade? onde a sombra fresca?
onde o pouso da mosca sobre a chaga aberta?
onde o frescor da virgem pura que se despe ao vigário impuro?
onde o mel que nem o deus pode perecer? onde...

É sempre tempo desse mesmo tempo
Insisto nas estações, nos movimentos dos astros, dos barcos...
todo lugar é lugar de solidão
todo olhar é impresso, dado viciado,
espírito bocejante que por uma nesga no túmulo
escapa em noites geladas e
busca o mesmo germe que primeiro roeu
as vísceras expostas de seu cadáver
fruto maduro que teima em voltar à...
metáforas inúteis... a vida um teatro de cenas inúteis
em composições toscas e atores, ah, que atores!
sim, os mais belos, retilíneos e verdadeiros atores!
que amores, todos eles, esses atores, meu deus, ah,
nos bares, bancos, vielas,
estudantes, filósofos, artistas, professores, advogados, proxenetas,
economistas, médicos, geógrafos e putas,
todos os melhores atores
desperdiçados em papéis em gavetas inescrupulosas
que quando se abrem liberam
um fétido odor de carne podre

Ah, antes crer em deus...
mas não, ó jovem de arroubos esteticistas pós-modernos,
não seria esse o seu percurso; por que estradas batidas,
companheiro de nuvens? ó anjo coxo da asa esquerda expulso dos céus e
infernos, donde cicatrizar a ferida?
sob qual céu levantar voo?
existem ninhos de pequenos anjos famintos
à espera de sua volta crepuscular?
não, seu caminho é de ardor
é periclitante e é de fogo e pedra e musgo e lodo
e é íngreme e galho e relva

Talvez o cinema e a literatura confortem
a terça parte do meu ser que pode ser confortada

Talvez... e era sempre dia de talvez, talvezes...
e agora o talvez vacila, parte dizendo adeuses ou até logos,
não distingo bem,
mas sei que parte, sei porque me olha com olhos de vou-me-embora
Não há mais ocaso a nos amarrar os sapatos
e novamente um morro sem freio,
novamente sem bonde ou esperança
mas ainda com uma vontade imensa de me agarrar a beira de sua saia
e assim sair do carro e andar a pé a seu lado, em silêncio, a seu lado

Queria ao menos uma última chance de te sorrir
mas tenho medo que no futuro o amor tome uma tez
[azulada


Levarei ao chão todas as bicicletas cor de fogo.
Jogarei no lixo os buquês de flores cor de vinho.
Apagarei todas as imagens coloridas.

Nada disso, no entanto, afagará a ferida aberta
Pelo escoar do tempo no corpo.
Um corpo todo desmedida,
Todo bifurcação de possibilidades,
Todo abraço dado ao acaso.

Nada disso dá conta das fissuras vazias na tal parede
do tempo – nem mesmo mil pás de cal estancariam essa hemorragia.

Passo em frente a uma boutique:
manequins me olham e seus olhos não guardam expressão alguma;

Navios petrolíferos tentam saquear o mar;
amar virou sucata junto a horizontes perdidos
em meio a cargas a descargar.


(Uma mesa diante de mim expõe uma laranja partida em duas)


me desvinculo do mar,
quando as águas vêm a mim
(Cézar Vallejo)


a noite começa com fagulhas
de felicidade e figuras
geométricas
milimetricamente fatiadas
e dispostas
na cidade nos quartos e casebres;
outra noite de caminhos de asas breves
apertos
simetricamente delimitados
entre distintos lábios
que quando aproximados
se contorcem em sintomas de noites primevas
focos cauterizados duma vontade nua
revivida;
a noite termina com uma lua nova a fisgar um estrela
já conhecida.


*palavra: Vander Vieira
*imagem: William Blake - A Vision: The Inspiration of the Poet (Elisha in the Chamber on the Wall)


3 poemas de Jádison Coelho

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Galloping horse - Edvard Munch




DESAGRADO


Desagrado:
Estou inflamado
E minha língua presa na máquina de escrever.

Desagrado:
A minha verve é ainda maior,
O meu pudor é de sempre estar nu e só
Lascando o pau em quem ondar tirar
E no alto clã se posiciona.

Desagrado:
Pela missão de um diabo morado no meu pulmão,
Que respira sabão
Entupindo a narina do que dizia.

Desagrado
Porque sou a verme caseira no labiríntico reto
Ovulando...Ovulando...Ovulando...
E a mim pouco importa se nisso está a merda de poesia.

Sendo um miserável que ainda
Mesmo leproso de cruas palavras escreve
E morre defecando a cada dia,
Sou tragável, sou um desagrado pelo beijo dado
Nas mãos, olhos, boca, tripas e escrotos
Dum íntimo cigarro,
Dum Mestre Sexual: Gregório
De matos e guerra vã.



BIRUTÉIA


NÃO SOU FAZEDOR DE PALAVRAS
O DIABO FEDE A FLORES
NÃO FUI EU QUEM INVENTOU OS SENTIDOS
O DIABO CHEIRA A ENXOFRE
NÃO FUI EU QUEM AMARROU OS VERSOS
NUMA LINHA ARAMIOU-SE
PÔS EM BAGUNÇA
POSER EM DESAFETO.

É GOSTADO DA CASA DA MÃE JOANA.
QUANDO NO FINAL,
AFINAL,
AONDE ESCONDERAM DISCÍPULOS, PAGÃOS?

MESMO AINDA QUERENDO,
QUERO MAIS NÃO
NÃO QUERO ENCHARCAR-ME EM POESIA
TENHO QUE TE CONTAR,
CHEGA MAIS PRA CÁ
(E BEM BAIXINHO)
O DIABO TEIMA EM NÃO MORRER POR AFOGAMENTO
NÃO HÁ MORTE PR’ELA MESMA
É QUE O DIABO NÃO DEVE MORRER
(E BEM ALTO)

HÁ VIDAS EM LOUCOS!



Esses dias,
Os quais me tranquei neste quarto,
Movimentei-me para o Oeste a descobrir Outros
Lugares e tempos invertidos,
Quais esses, os meus olhos, até ontem não viam de enxergar.
São inspirações que transpiram nos poros das minhas mãos,
Aquelas amputadas, que tateiam gentes e futuros ainda tão longes
Embaçados no horizonte de um velho marujo em naufrágio,
Em prisão de ser liberdade aqui
Num não Agora que se foi partindo.






Jádison Coelho(1992), natural da Atlântida Negra e do planeta Marte, poeta baiano, graduando no curso de Letras Vernáculas pela Universidade Federal da Bahia, pesquisador nas áreas de Literatura e Cultura, uma voz em vozes mescladas às identidades múltiplas, que constituem um espelho quebrado em estilhaços despidos de poesia escancarada na garganta virada. Participou dos projetos “Bate Papo Musical”, antologia “100 poemas 100 poetas” e integra a comunidade de Luso-Poetas. Atualmente trabalha para a publicação do seu livro versado, “Filho de Nhá Bahia”, que acende os temas da ancestralidade, identidades baianas e brasileiras, memórias e o cotidiano da cidade de São Salvador. email: jadisonc92@gmail.com



Através do Anjo mais selvagem VICENTE FRANZ CECIM

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http://vimeo.com/80589406

Através do Anjo mais selvagem

Poema de Vicente Franz Cecim com imagens e canto de Hildegard von Bingen

Caderno de esboços-O Anjo de Hiroshima- Poema de Marcelo Ariel da série ' 32 obras de Farnese de Andrade'

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Este anjo

Não olha para trás como o Novus de Klee

mira no presente contínuo

a irrealidade infinita 

 da dor

 que não pode ser aplacada

Nem por nossa indiferença distraída

ela

destroçou suas asas

 agora enterradas 

são uma samambaia negra in vitro

 memória do  irremediável feto 

acalentando a   melancolia

com seu grito

mas estes olhos anseiam

pela explosão de tudo o que vive

principalmente a do Sol

Olhos-anunciação

no fim irão trincar o vidro

a cabeça se curvará

até a ossada

do último

 por enquanto os ainda 

vivos 

 os profundamente sós

que não sabem que estão sós


     criam suas projeções

     mas estes olhos sabem  

     entre

     a vida e morte

     fronteiras não existem



   poemas e problemas  flutuam

  no ar

  onde este  amor se dissolve 

 num centro que jamais esteve em nós

e depois   também morre

 nada se move

 só este olhar

no fundo dos oceanos

fala

enquanto o tempo 

para fora

do espaço

corre



Marcelo Ariel

escrito aos 17 anos








O Simbolismo Social no Brasil

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            Compreendido como um movimento literário que se fixou basicamente no sonho, na metafísica, e cuja postura diante do mundo, para muitos, foi resumida nas célebrestorres-de-marfim, o Simbolismo, no Brasil, também produziu uma grande e considerável arte social – no conceito de sociedade e o que é relativo a ela, inclusive a ordem social. A perambulação dessas temáticas vão desde o maior - Cruz e Sousa - até um pós-simbolista que publicou suas obras até a década de 60, como Pádua de Almeida.
            A grande influência da literatura portuguesa influiu para a não abstenção dessas temáticas nas obras em nossos simbolistas. Aqui faço ponto para duas grandes figuras lusas que, mesmo não sendo simbolistas, aguçaram essa percepção social na arte: Antero de Quental e Cesário Verde. O primeiro, em cujas Odes Modernas (1865) o socialismo à Proudhon é celebrado, foi um dos sonetistas que mais influenciaram o Simbolismo brasileiro, tendo, absolutamente, um espírito muito semelhante, por exemplo, ao de Cruz e Sousa – fosse no aspecto político ou espiritual. Já Cesário Verde – que, segundo o simbolista Antônio Austragésilo, foi um dos poetas portugueses mais lidos pelos brasileiros do movimento -, tem, em seu poema “Desastre”, um verdadeiro clássico no que se refere à crítica social e à exploração do homem pelo homem.
            Na questão teórica, Baudelaire – um dos grande precursores do Simbolismo, mas, por essência, um Decadentista -, assim definiu a suposta obrigação da poesia em questões morais e sociais: “(...) Digo que, se o poeta procurou uma finalidade mora, diminuiu sua força poética e não é imprudente apostar que sua obra será má. A poesia não pode, sob pena de morte ou de decadência, assimilar-se à ciência ou à moral. Ela não tem por objeto a Verdade, ela não tem senão Ela mesma. As formas de demonstração das verdades são outras e estão alhures (...)”. Não havia, portanto, desde os decadentistas franceses até os simbolistas brasileiros, um intentento essencial de moralidade – de escrever sobre as mazelas da sociedade para que se ponha o leitor a questioná-las. Porém, como veremos, esse pressuposto de abstenção foi, pouco a pouco, deixado de lado.
            Se no aspecto artístico havia uma postura crítica dos Simbolistas, o mesmo não havia na vida pública, principalmente depois da Proclamação da República (1889). A grande parte dos primeiros simbolistas brasileiros fizeram campanha pelos movimentos abolicionista e republicano – de Emiliano Perneta a Cruz e Sousa, Oscar Rosas, entre outros -, mas a postura elitizante e excludente da Primeira República fez com que o apoio se tornasse frustração; acerca da abolição, Cruz e Sousa, filho de escravos (que acabaram sendo alforriados), era o grande exemplo de como a sociedade não havia se preparado para os negros livres – nem sequer para um negro de uma importância intelectual como o autor de Broquéis– que sofreu, mesmo de importantes escritores e críticos da época – como Araripe Júnior – ataques como “seus poemas não negam que é um primitivo” ou “é um maravilhado com a civilização”.
            Falemos, enfim, de dois poemas de Cruz e Sousa. Durante muito tempo – talvez por má interpretação ou má fé – ele fora acusado de se abster de questões de “ordem-social” (como se a própria fuga para um outro mundo ideal não fosse uma consequência de um mundo hostil ao poeta), mas antes mesmo de seu Missal (1893) ele já havia publicado o soneto “Escravocratas” ou o texto “O Abolicionismo”, em que critica a falta de preparação da sociedade para receber os negros alforriados. Mas partamos de um texto de Faróis (1900), nem sempre lembrado como uma grande e genial descrição da pobreza do Rio de Janeiro daquela época – além de conter valiosos traços de um “sofrer-redentor”, tão comum à crença católica, e também usual à linguagem simbolista.

LITANIA DOS POBRES


Os miseráveis, os rotos
São as flores dos esgotos.

São espectros implacáveis
Os rotos, os miseráveis.

São prantos negros de furnas
Caladas, mudas, soturnas.

São os grandes visionários
Dos abismos tumultuários.

As sombras das sombras mortas,
Cegos, a tatear nas portas.

Procurando o céu, aflitos,
E varando o céu de gritos.

Faróis à noite apagados
Por ventos desesperados.

Inúteis, cansados braços
Pedindo amor aos Espaços.

Mãos inquietas, estendidas
Ao vão deserto das vidas.

Figuras que o Santo Ofício
Condena a feroz suplício.

Arcas soltas ao nevoento
Dilúvio do Esquecimento.

Perdidas na correnteza
Das culpas da Natureza.

Ó pobres! Soluços feitos
Dos pecados imperfeitos!

Arrancadas amarguras
Do fundo das sepulturas.

Imagens dos deletérios,
Imponderáveis mistérios.

Bandeiras rotas, sem nome,
Das barricadas da fome.

Bandeiras estraçalhadas
Das sangrentas barricadas.

Fantasmas vãos, sibilinos
Da caverna dos Destinos!

Ó pobres! o vosso bando
É tremendo, é formidando!

Ele já marcha crescendo,
O vosso bando tremendo...

Ele marcha por colinas,
Por montes e por campinas.

Nos areiais e nas serras
Em hostes como as de guerras.

Cerradas legiões estranhas
A subir, descer montanhas.

Como avalanches terríveis
Enchendo plagas incríveis.

Atravessa já os mares,
Com aspectos singulares.

Perde-se além nas distâncias
A caravana das ânsias.

Perde-se além na poeira,
Das Esferas na cegueira.

Vai enchendo o estranho mundo
Com o seu soluçar profundo.

Como torres formidandas
De torturas miserandas.

E de tal forma no imenso
Mundo ele se torna denso.

E de tal forma se arrasta
Por toda a região mais vasta.

E de tal forma um encanto
Secreto vos veste tanto.

E de tal forma já cresce
O bando, que em vós parece.

Ó Pobres de ocultas chagas
Lá das mais longínquas plagas!

Parece que em vós há sonho
E o vosso bando é risonho.

Que através das rotas vestes
Trazeis delícias celestes.

Que as vossas bocas, de um vinho
Prelibam todo o carinho...

Que os vossos olhos sombrios
Trazem raros amavios.

Que as vossas almas trevosas
Vêm cheias de odor das rosas.

De torpores, d’indolências
E graças e quintessências.

Que já livres de martírios
Vêm festonadas de lírios.

Vem nimbadas de magia,
De morna melancolia!

Que essas flageladas almas
Reverdecem como palmas.

Balanceadas no letargo
Dos sopros que vem do largo...

Radiantes d’ilusionismos,
Segredos, orientalismos.

Que como em águas de lagos
Boiam nelas cisnes vagos...

Que essas cabeças errantes
Trazem louros verdejantes.

E a languidez fugitiva
De alguma esperança viva.

Que trazeis magos aspeitos
E o vosso bando é de eleitos.

Que vestes a pompa ardente
Do velho Sonho dolente.

Que por entre os estertores
Sois uns belos sonhadores.


            É, evidentemente, um poema simbolista, com suas evocações, ritmo alucinatório e imagens alegóricas – mas é, inegavelmente, uma crítica social – e muito mais complexa, em representação e profundidade, do que grande parte do que fora produzido por Realistas ou Naturalistas da época. Não podemos nos esquecer que, com o Cientificismo em voga – inclusive com o uso de frenologia para determinar o caráter e personalidade de uma pessoa por meio da medição do crânio, e com a fama de Lombroso atingindo o auge - para muitos, agir em prol da sociedade era reproduzir as teorias deterministas e escrever uma obra em favor da superioridade racial. Talvez um dos exemplos mais evidentes disso é “O Cromo” (1888), de Horácio de Carvalho, cujo principal personagem define-se como um ser “darwianamente superior” (Lília Moritz Schwartz faz um breve estudo sobre essas obras naturalistas em seu “O Espetáculo das Raças”, da Companhia das Letras).
            Entre outros poemas de Cruz e Sousa que contêm teor social – que, segundo Andrade Muricy, tomou como posição política o Socialismo -, cito o clássico “Escravocratas”. Detenho-me em transcrever a grande obra de Cruz e Sousa - “Emparedado” - pois, por sua extensão, obstaria a sua publicação por inteiro. Não podemos nos esquecer que Cruz e Sousa era leitor de Castro Alves – “o poeta dos cativos”, como era celebrado por muitos -, chegando, em 1881, a homenageá-lo publicamente pela ocasião do decênio da morte do poeta baiano.

ESCRAVOCRATAS


Oh! Trânsfugas do bem que sob o manto régio

Manhosos, agachados — bem como um crocodilo,

Viveis sensualmente à luz dum privilégio

Na pose bestial dum cágado tranquilo.


Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas

Ardentes do olhar — formando uma vergasta

Dos raios mil do sol, das iras dos poetas,

E vibro-vos à espinha — enquanto o grande basta


O basta gigantesco, imenso, extraordinário —

Da branca consciência — o rútilo sacrário

No tímpano do ouvido — audaz me não soar.


Eu quero em rude verso altivo adamastórico,

Vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico,

Castrar-vos como um touro — ouvindo-vos urrar!


           

            Cito agora o gaúcho Eduardo Guimaraens, talvez o grande representante do Simbolismo do Rio Grande do Sul. Há, em sua obra completa – A Divina Quimera (1942) -, dois poemas que fazem, direta ou indiretamente, menção à Primeira Grande Guerra (1914-1918). Esse fato vem confirmar o que Andrade Muricy, em seu Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, disse acerca da postura ativa de muitos simbolistas à época do conflito. Em alguns exemplos, cito Alphonsus de Guimaraens, que escreveu, muito influenciado pelo tema, a sua Pauvre Lyre, publicada postumamente em 1921, e também Nestor Vítor, o grande amigo de Cruz e Sousa, maior ensaísta e crítico da primeira fase do Simbolismo, que fundou, em 1914, junto com Rui Barbosa e José Veríssimo, a Liga Brasileira pelos Aliados; Nestor Vítor, inclusive, chegou a criticar duramente alguns poetas do Movimento Simbolista que se abstinham naquele momento.

Eduardo Guimaraens, tratando da guerra, legou-nos, de mais singular, este belo poema:


SETEMBRO DE 1915 (nas Estâncias de um Peregrino)


Sob o esplendor dos astros que sorriem,

acorda o mundo a um sonho alucinante.


Ouvem-se os versos lúgubres de um Dante.

Descem-se os nove círculos do Inferno.


Que vale a dor do teu soluço eterno,

ó dolorosa Noite, ardente e triste?


Do que era outrora humano a sombra existe

apenas, sobre a terra desolada.


Desfraldam-se as bandeiras à lufada

da morte. E o sangue espuma sobre a lama.


Pare o gemido aos lábios de quem ama!

Petrifique-se o gesto que perdoa!


Qual raio de ódio, o atro clamor ressoa

que os homens chama aos campos de batalha.


Quando há de vir a esplêndida mortalha

para envolver o último Combatente?



Nitre, a galope, o furacão furente:

e os trovões uivam, altos agourando.


E as Pátrias choram sob o céu, cantando.

E os Bardos erguem, num delírio, a lira.


Sobre as trincheiras, a alma a Deus aspira.

São reis, contudo, a fome e o desalento.


E, a um solitário ritmo de lamento,

sob o clamor que, pela noite, escuto,


como sonhando, as doces mães de luto

que, dentre o céu das lágrimas, sorriem,


oram ao pé dos Berços. E sorriem!


E acerca do Simbolismo Gaúcho, cito um dado biográfico de Alceu Wamosy, autor de Coroa de Sonhos (1923) e do soneto “Duas Almas” – um dos melhores escritos em terras brasileiras. Wamosy, mesmo tendo uma obra idílica e de uma leveza outonal, envolveu-se fervorosamente na Revolução de 1923, ocorrida em seu Estado, vindo a falecer em 13 de Setembro desse ano, por consequência de um ferimento de guerra. Foi uma característica do Simbolismo gaúcho o envolvimento com os temas e belezas do Rio Grande do Sul – fosse na poesia (como em Eduardo Guimaraens, vide o Canto do Vento Minuano) ou nos então constantes conflitos da região, como em Wamosy.
            O curitibano Dario Vellozo, um dos maiores propagadores do Símbolo, conhecido por sua poesia esotérica, tão criticada por seu feitio hermético, não se impediu de deixar, em 1892, um soneto em apoio ao Socialismo. Vejamo-lo:

NOVO PENDÃO


Por terra o despotismo!... Trompas soem!...

Soem de guerras bélicas fanfarras!...

Saltem da morte envenenadas garras,

Monstros de pedra à bala esboroem!...


Férreos tinidos másculos reboem,

Gritos cruzem o ar, surjam lamentos;

Choquem-se o ódio, a raiva, os sentimentos;

Troem clarins e os bombardeios troem!


Por terra o despotismo!... Caos e morte

Rolem do Sul a regiões do Norte,

Sacudindo os ermos de espantoso abismo!...


Quebrem-se os cetros que a tormenta arranca!...

Flutue após longa bandeira branca,

O alto estandarte do Socialismo!...


É dado de curiosidade o fato de que Dario Vellozo, um maçom, preferisse (não com pacifismo) o Socialismo. Na ocasião de sua morte, o seu funéreo cortejo – como desejou o poeta – passou pelas regiões mais pobres de Curitiba, em uma interessante e derradeira manifestação de união do poeta com o povo de sua terra.
            É possível que a crítica social – no que se compreende essa palavra, ou seja “da sociedade ou relativo a ela” -, quando praticada por poetas simbolistas, tenha atingido um dos ápices em Silveira Neto, autor de Luar de Hinverno(1900). Quase tudo de sua época, em sua “Ode ao Alicerce”, é tratado, conjuntamente com grandes fatos e mitos históricos: do cientificismo à política de injustiças, de um “alicerce maligno” que sustenta o malogro do mundo às revoltas que o estremeceram, mas não o derrubaram. É uma obra-prima, sem dúvida, do Simbolismo e, porventura, da poesia brasileira.

ODE AO ALICERCE (na Ronda Crepuscular)


De pedras brutas, pedras sobrepostas,

Que a rígida argamassa em bloco firma,

Diz o Alicerce: aqui, nestas encostas,

Quem a muralha que eu sustento pode

Sacudir-ma?


Num baque surdo, para aquele rumo

Foram as pedras num montão jogadas;

Depois, a trolha, o camartelo, o prumo,

E o plano feito: em linha foram todas

Colocadas.


Talhando o solo a pique, da comprida

Vala terrosa lento ele se erguera,

Erato e largo, devassando a vida,

Com a solidez de um contraforte de aço

Se fizera.


Então, sobre o Alicerce, pedra a pedra,

Erguem-se paredões e a de granito

Bela fachada, que a alma desempedra

De uma arte antiga, relembrando assombros

Do alto Egito.


Veem-se portais que ao passo humano tentam

Para cultos de Apolo ou das Fortunas;

Ou plintos onde hieráticas assentam

Desse mármore branco do Pentélico

As colunas.


Fustes coríntios; capitel de acanto,

Que a lenda evoca de uma noiva morta;

Cariátides de olhar frio, do espanto,

Que à vencida de Cária, ou Salamina

Desconforta.


E a soberba muralha que recorda,

Cruel, do Coliseu a arena imensa,

Ou Brunellesco que a amplidão acorda

Quando a assombrosa cúpula levanta

De Florença.


Suntuosa e vasta é pronta a maravilha:

Palácio ou templo, escola ou alcaçares;

De amplos salões em que a Ilusão rebrilha

Do Gozo farto; mas... e se for tudo

Pelos ares?...


Pompas de ouro e veludo, lá por dentro,

Geram orgias; e, paramentado,

De Judas e Iago é o orientalesco centro.

E ninguém mais se lembra do Alicerce,

Enterrado.


Vultos senhoriais de governantes

Calcam os pavilhões. Crésus bojudo

Loas burila aos tetos fulgurantes:

E a Arte se obumbra e a Ciência tudo aplaude,

Tudo! Tudo!


Mundo que é a febre do viver humano,

Encastelado nas muralhas; e estas

O poderio, rígido e tirano,

À luz ostentam entre varandins

E giestas.


E o Construtor o gênio não disperse

Em calcular o peso do mundo,

Que subterrâneo e humílimo o Alicerce,

Ninguém o vê, mas ei-lo ali supremo

E profundo.


De que ele exista (é bem humana a incúria)

Dos paredões abaixo, quem se lembra?

Ah! mais um dia fende-o, horror, a fúria

Do terramoto; e à convulsão que trágica

O desmembra.


Ele estremece. A grita e a insânia dá-lhas

O pânico; e, num rápido minuto,
Ruem tombando a cúpula e muralhas,
E mármores e bronzes, num reboo
Longo e bruto.

E ao fundo o novo Atlante vê o entulho
Do orbe que há pouco lhe pesava aos ombros;
Um século de lutas e de orgulho
Que desmoronam; e ele inda é alicerce,
Nos escombros.


Povo, assim és; o plinto da estrutura
Na Mole social; e era oculto
Sob a ruma de andrajos e amargura.
Quem do Kremlin, ou de Versailles, vira
O teu vulto?

Mas se ao peso do guantes ou da fome
A juba enristas, o rugido atroa;
E nada mais a cólera sem nome
Detém-te, e Alhambras ou Bastilhas, tudo
Se esboroa.

E não sucumbes, não; pária indomável.
E te hás de alevantar um dia invicto,
Povo! como as montanhas, admirável,
Bloco integral com o vértice em demanda
Do Infinito.


Janeiro -1914


            Manifestações como O Instante Universal (1934), de Pádua de Almeida (irmão do magnífico poeta Moacir de Almeida) – e em cuja lírica se posiciona um dos grandes momentos da poesia brasileira da década de 1960, no livro O Luar de Outros Caminhos (1961) -  talvez marquem um raro passo na poesia simbolista – pois se trata, única e exclusivamente, de um livro de viés de protesto social. Muito comuns foram casos como o do carioca Marcelo Gama que, discorrendo sobre aspectos sociais presentes em relações do cotidiano – para além de uma discussão teórica, Socialismo, Anarquismo e etc.., acabou por escrever versos como estes, presentes no poema “Feia”, publicado na Via-Sacra, em 1944:


(…)


Sei que um dia choraste, assistindo a uma boda,

porque viste alguém rir do teu porte mesquinho.

Já chegaste a dizer, encontrando um ceguinho:

- Que bom se fosse cega a humanidade toda!


Entristeceste ao ver, numa revista de arte,

um "tipo de beleza"... E terias a palma

se fosse dado a alguém fotografar tu'alma:

- não havia mulher tão linda em toda parte.


(...)



            O Simbolismo, considerado um estilo que se absteve dos interesses sociais e coletivos, como demonstrado neste ensaio, se não participou ativamente da vida pública após a Proclamação da República, não deixou de ter, em grande parte, uma arte de imenso valor social. Constituindo-se, sem dúvida, também de um movimento Pós-Romântico, o Simbolismo teve algumas poucas semelhanças formais com a escola literária de Castro Alves. O que havia de igualdade era referente à postura dos poetas, pois esta foi essencialmente de revolta nos dois movimentos - por sentirem-se os poetas muitas vezes deslocados da sociedade - em deslocamentos não somente no sentido de frustração amorosa (nos Românticos) ou de incapacidade de resolver os seus problemas de ordem metafísica (Simbolistas) – mas também no que se refere à ordem social. Se para os Românticos a escravidão e a Guerra do Paraguai (1864-1870) avivaram as discussões sobre a questão da nacionalidade brasileira, para os Simbolistas foi a Primeira República, com muitos problemas semelhantes aos do Segundo Reinado, que fez com que se procurasse – por meio da alegoria simbólica - um porquê da desigualdade entre os seres.









CARRETÉIS, POR MAURO GAMA [12 POEMAS DO "MUSGO MÚSCULO"]

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1



Tanjo só a faísca do hirto nervo.

O anjo me escuta além de Sírius.

Sementes no ar:

iluminadas

voam contentes

fecundam fadas.

Hendrix e Bach se abraçam na ilha

maior que os mundos. Lírios. Lêisers.


                                                       


2



Fulgores. O veleiro preso

numa esmeralda.  Os véus   os gritos

ganhando a escada

da madrugada.

Por que os balões

os olhos  o antro?

Crianças levando arcos e tochas.

As aves. O jardim se abrindo.


                                                   


3



Tudo se engana e se confunde
nas trilhas e olhos desse mundo.

Sedas e sombras

da mesma aranha.

A podridão

ou uma ametista.

Que sumos somos na mistura

dos filtros vários   e dos fusos?


                                                       


4



Ficamos conhecendo – e até

amando – a forma desse objeto.

E a cor do fio

seu movimento

sua espessura

tensão   alento.

Incognoscível é a parada:

por esgotar-se  ou rompimento.


                                                      


5



Tem algo de bacante – não

de mater– e tem algo de santa

de ninfa e heroína

de artistas góticos

ou pré-românticos.

Percorre a história

traz os seus lumes  lírios  laços

e me encontra  cai-me nos braços.


                                                      


6



Relâmpagos. Suas emboscadas

de azul.  A noite em trapos   trôpega

e aqui escondidos

os dias perdidos

espectros   quadros

de elos passados:

sair   se abrir   ser vento   chuva

forças sem dono   luzes   mundo.


                                                       


7



Carga do tempo: só perturba

quando esperamos – ou revemos

os seus (mal)feitos:

de um lado aflige

do outro devasta.

Traz de uma esfinge

uma mudez só de desprezo.

Mas não tira o olho de suas presas.


                                                        


8



O corpo   aqui:  uma retorta.

A identidade? É a de um “paciente”.

Sairá fumaça?

Mais que isso passa

nos seus compostos

e “excipientes”.

“Olhai os lírios...” Lero-lero:

Beleza   amor   têm nota zero.


                                                          


9



Seja seu poema às vezes concha

onde ele – autônomo – se esconda:

do que for doença

ou for remédio;

de achar o amor

ou o desamor.

E esteja aí vivo e tenro   não

feito pérola – ou conclusão.


                                                       


10



As moscas gostam daqui.  Acham

tudo propício – e promissor:

pairam  pesquisam

“põem olhos ternos”

em quem mais risco

tem de petisco;

no que se fazem companhia

mais persistente – e menos fria.


                                                           


11



Olhou nos olhos   viu o humor

da busca   ou os mucos   da carência.

É o brusco amor

só um impostor

ou o amor bruxo

sempre de falha

sedento  em cada sortilégio?

Não sei:  só sinto  me azedo   quero.


                                                              


12



O meu vazio entre os vazios

da mata   suas entranhas frias

suas culpas roídas

no ar se expungindo

sorvendo o espaço

de verdes traços

em torno:  o fluir   o libertar-se

da condição – sem se apagar.





[1985]






*     *     *



Mauro Gama
O poeta e crítico literário Mauro Gama nasceu em 1938, no Rio de Janeiro. Estudou letras clássicas e ciências sociais, em que se licenciou pela UERJ. Estreou em livro com os poemas de Corpo verbal (1964). Ganhou a vida como redator de editoras e obras de referência, entre as quais cinco enciclopédias, como a Barsa 1, a Mirador internacional (onde foi assessor editorial de Otto Maria Carpeaux e Antônio Houaiss) e Barsa 3. Trabalhou na primeira fase do Dicionário Houaiss e colaborou na imprensa carioca, sobretudo em revistas da Bloch, no Jornal do Brasil e O Globo. Auto-exilado de sua grande e violenta cidade, vive hoje  em sua Quinta da Janaína, em Mendes/RJ. Outros livros publicados: Anticorpo (1969), poemas, Expresso na noite (1982), poemas, Zoozona seguido de Marcas na Noite (2008), poemas; José Maurício, o padre-compositor (1983), ensaio; Michelangelo – cinqüenta poemas(2007: tradução para o português coetâneo e estudo crítico; Prêmio Paulo Rónai da Fundação Biblioteca Nacional).






Através do Anjo mais selvagem POEMA Vicente Franz Cecim

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http://diariodoolivroinvisivel.blogspot.com.br/2013/11/atraves-do-anjo-mais-selvagem-poema_29.html

A INCAPACIDADE DAS PALAVRAS

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/Helena Figueiredo/


Saber definir um homem
produzir um juízo sobre as situações
manter uma conversa banal
onde o abstrato se materializa
ter na ponta da língua a resposta
a todas as questões.

Sepultadas um pouco abaixo da garganta
as palavras recusam o movimento ascendente
a vibração das cordas
o impacto surdo no semblante dos outros

recusam desfazer-se na boca como podres cogumelos.
*

E olhamos uma enxada
um monte de feno
o regador zincado

talvez eles nos façam cócegas 
nos arranhem a emoção
e aprendamos de novo a falar
como a criança saída do berço.




*Verso baseado numa passagem da Carta de Lorde Chandos (carta ficcional endereçada por Philip Chandos, jovem e promissor poeta da Inglaterra do século XVI, a Francis Bacon)



Pintura de Iman Maleki

6 poemas de Jandira Zanchi

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Oferenda com chifres de rena por um xamã Koryak.
Foto de Waldemar Jochelson.

UMBIGO

fumava fumaças
de charutos rútilos
desejava desvios
de prantos e pratas
nádegas de defuntos
esquálida e vibrante
essa face nódoa
amante do umbigo
fertilizadora de silêncios.

*Gume de Gueixa (Patuá-2013).


NOVILHA NA REDE

Rudeza de rios que não se banham
Fronteiras de Frontes que não se vencem
Primaveras de Lírios que não fenecem
                             Bombardeios? Bombásticas
                            Terras de resolução
Fulminantes Virgens no acostamento.
                            Nos elos o élan e a maresia
Revolutas
Revoltas
Redondas
Roendo
Ralos
de amor.
Estonteantes apostas e fúrias fulminantes
ao largo largadas nos femininos opúsculos
crepúsculos que carregam-se como
luz da manhã incerta e purificadora...
   (te farão bem
      os ventos e os barcos
      as velas e as sendas
      os poemas de três passos
      as estórias sem enlaces)
Novilha na Rede...
antes que te voltes, Mulher,
a mão do bárbaro é novamente tua
beija-lhe em cada uma das três faces
o olho do centro
o amálgama do medo esquecido
em suas poeiras vagas vagabundas
de ilusões e cortejos
nua e na rua redime a forma e sua
discutível planificação de outras redes.

*Gume de Gueixa (Patuá-2013).



MASSACRE

verme vomitado
no ventre
a mulher esvai
no sangue
o bater dos tambores é
macho e massacre.


*Gume de Gueixa (Patuá-2013).



ENTREGA

ciente do invisível
espectadora do possível

sem trégua e lástima
o timo e o rumo ao léu

as sentenças são chaves azuis
espumadas à 1ª luz do dia
alvo e frio escorrido da noite
de ventosas e neblina em
estrelas que se entreolham
e novamente silenciam para
os acordos do solo feitos
em blocos sem sedimentos
movimentos esparsos e caros
lentos ou perfurados em suas conchas


iniciou-se no milagre
avança-se a esmo e bagre

rezas são ofensas à meia voz
entrecortadas de suspiros
e música entre dois goles
quase impuros do néctar
dos sábios alfarrábios
alfabetos discretos
discrepantes e ondulantes
na nau dos tempos
contratempos em teus sonhos

avançamos cá e lá na surdina
da entrega esfrega esfrega
esfrega esfrega esfrega
entrega......

*A Janela dos Ventos (Emooby-2012).



VÍRGULAS

Coisificada vida
ao redor dos
Objetos
inevitáveis
vínculos
sólida realidade.

Criatura originada
na fumaça
névoa cristalina
das nuvens vertidas
em véus
e ases
ao redor da Lâmina
disco girado
tempo assumido

em teus dias
diafragmas
domados com vigor
evacuado
por entre rugidos
espremidos ....

assim nos fizemos
entre dois goles
- suspiros da natureza –
que por aqui
deu-se à reverência
de encrespar-se
e interrogar, em suas vírgulas,
nossas vozes.

*Balão de Ensaio (Protexto-2007).



SENHORA

Foi na última noite.
A primeira tempestade da madrugada
Anunciava a chegada do alvorecer
E todos os raios que partiram
Em viagens ignoradas
Voltarão em um clarão de lucidez.

Eu só me ria, só me ria
correntes e grilhões desabando
nem barreiras nem segredos
como vivemos por tantos anos
agrilhoados obstinados.
Mas, tem a primeira madrugada.

Antes de adormecer grande despertar
palavras e conceitos
– não refaço não repiso não teorizo.
Prática pré-praxis teoria depois
sonho agora nessa madrugada.


castigos e fetiches
coração eterno coração
detive incansável
que ronda teus passos

deve estar na poeira dos teus pés
o segredo da minha paz.


Jandira Zanchié poeta, ficcionista e educadora. Licenciada em Matemática em 1979 pela Universidade Federal do Paraná , fez cursos de pós-graduação em astronomia e educação e tem experiência em ensino superior, médio e preparatório. Entre os muitos colégios e faculdades que trabalhou, está na Universidade Agostinho Neto, Luanda – Angola, entre 1985 a 1987, como cooperante, ministrando aulas na Faculdade de Ciências. Como poeta publicou Gume de Gueixa (Patuá--2013). O livro virtual A Janela dos Ventos (Emooby-2012) e Balão de Ensaio (Protexto- 2007). Participou das antologias virtuais de Blocos Online Poesia para mudar o mundo (2013) e Saciedade dos Poetas Vivos (vol. 1). É colunista e colaboradora da revista virtual Letras et cetera e atualiza suas poesias aqui.




Reza Interior

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Fatima Ronquillo


L: Os olhos estão abertos. Eles foram colocados nesta posição. Dos olhos abertos salta um séquito de detalhes. O espelho da raridade incutida em pacto, ressecado em folha de aviso de tinta fresca. O preto dos olhos abertos em pedras vidradas. O calor do corpo parece ter sido também colocado nesta posição. Talvez isso seja estar morta.


W: Nas molduras estáticas as portas e as janelas. Nas páginas perto do fim apertos de mão sem passagem. Cortejos gotejantes acordam, mas as entradas melódicas estão fechadas no espelho didascálico. E os limites públicos das paisagens elétricas são modalidades sem parede. E os limites lívidos entre olheira e olhar são modalidades sem parênteses. E os limites latejantes sem modalidades de pele.


L: Pode ter morrido hoje ou talvez tenha sido assassinada no dia da estreia. Hoje notaram que o colorido na pálpebra era cola e não cólera empalidecida. Despertaram a escuta cotejando a letargia organoléptica.


W: O artista diz que essas são as evidências de aparições veladas pelo tempo sem se dar conta de que ele apenas investigou através de uma câmera escondida os registros daquela cena brutal. E quanto mais parênteses ele colocasse ao redor do componente sádico, deixava em aberto uma variedade de interesses entre aspas.


L: Isso expandia a visibilidade das suas ações. Isso expandia a visibilidade das suas ações. Isso expandia a visibilidade das suas ações.



*palavra: Límerson Morales - parte da performance Árvore-Tipo III, que será encenada em Bauru/SP pelo Outro Núcleo de Espetacularidades*.



*Justaposições, rompimentos e extensões das fronteiras entre Performance, Música e Poesia. Com Walace Brassero, Marcos Tamamati e Límerson Morales. O Núcleo de Espetacularidades é um grupo de teatro fundado em 2006 e encerrado em 2013 em Curitiba, ESSE É OUTRO.





"Árvore-tipo é uma reza interior. Flora do tempo e do templo pra fora. Você está vendo de dentro o que está vindo deflora. Árvore-tipo é uma reza interior que deflora."



Cinco Poemas de Ana Maria Vasconcelos

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Marc Chagall


Amor


Amor, pedra selvagem. Ou um nome – o teu:


Um grito forja a primeira luz na pureza negra e desavessa o abismo: eu tocara o âmago. Desde então rasga-se colericamente o mundo num devir visceral – e vê que lindas ao vento as crinas dos que desabrigadamente buscam; ondeiam revoltas como carpas no cio saltando indóceis contra a correnteza: um desespero cru por liberdade; um canto. Ouve. Respira comigo a foz ensandecida dos peixes. (Varar as ruas com incandescente felicidade, estourar as coxas do mundo, corroer como larvas o solo desta comédia triste. Não é isso?) Dá-me as tuas mãos e enlaça em mim o que tens por dentro (vitral iluminado nas costelas, nascemos sob o candelabro de um quarto atrás do tempo; somos bois encantados no pasto matinal – eles não desconfiam de nós, do nosso quilate guardado). Observa com os meus olhos a aleluia de eternidade deste céu sobre o nosso mesquinho desastre de borrar cotidianamente a vida, que infinitude esplendorosa, que beleza insuportável! A atingir (é que também olho com os teus): meu coração explode à impetuosidade dos que escolhem viver – morrer; não, não há contradição –, morder o invólucro asséptico desta dor. Ouço um coro profético de ruína e sigo, pois é podre também a branquíssima maravilha, e fétida, e amarga na sua doçura incompreensível. Vão meus pés já nesse desterritório; eu toda. Ponho portanto na boca o fruto e violando meus sentidos dança uma miríade de cores lancinantes, me varando completamente, tecendo o emaranhado sagrado no qual a minha vertigem se embala de uma compreensão profunda: com a ponta da língua toco finalmente o segredo. Sei. E conhecer é no travo majestoso: experimento alegria talhada às agonias vitais de uma queda (imploro por todas). Gozo nos tendões desta voltagem que me tritura – o teu raio. Mas é macia a tarde nesta tempestade: leitura escura do mistério; um bicho milagroso abre os olhos na grande noite e compreende Deus sem linguagem. Era parar aí, mas: com a inquieta mediocridade de ter dois olhos, olho; percorro cada aresta, cada frêmito que, descontrolado, crava calabouços na pele deste colo secreto de onde o fascínio iça chagas ensolaradas. Desentendo. Quaro à dor.


Amassando o peito a pedra,

teu nome, isto que não se explica;

ou: ferida – aquela porta nunca fechou.






Intro



[quebrávamos um caule de chuva para beber liberdade indócil: lavar-nos do azeite lento e (baba dopada) maquínico dos dias dias dias – resplandecíamos então sem pedir desculpas, já nus completamente, heróis tresmalhados de um horizonte sem verniz]



 
Ryan Mcginley


Liberdade



"(...) A brutalidade sufocante e dilacerante penetrava-a já, enquanto o desfalecimento lhe triturava as vísceras e os ossos, Tudo nela se abria e despedaçava, eram milhares de agulhas que a picavam, facas que a rasgavam, colunas que a enchiam, cataratas que a afogavam, chamas que ardiam sobre águas luminosas, cantantes, e pousavam como fogos-fátuos pelo corpo dela. (...) [Ela] inundou-se de uma ardência cristalina, que se esvaía no seu âmago, lá onde a Presença, enchendo-a, martelava os limites dissolvidos da carne. A luz atingiu um brilho insuportável, a música atroava tudo, sentiu-se viscosamente banhada de clamores e apelos que lhe mordiam... E, na treva e no silêncio súbitos, sentiu, nas costas, na nuca e nas pernas, a dureza violenta e fria das lajes em que, do ar, caíra. (...)"

(Jorge de Sena)



[Branco


o espanto que rebentou o que eu          era.]



Fazia os teus olhos, e o teu mistério, e a tua voz, dia vívido – ai, já era tanta a claridade na minha pausa! –  fazia tu nos meus poros, e eu quis verter: engolir. Pus os dois pés e um elo secreto se quebrou no perigo, espraiando frêmitos em algum lugar entre a página e o vestido. Abri. Soou a tua música, com força, e ela era epifânica: trazia-te, indócil, exclusivo – ai! Invadida de pura liberdade, aumentei a música e todas as coisas, arrastando o insólito furor dos teus verões para dentro. Irradiava viscoso o delírio, que não cessava: pássaros e mais pássaros, cada vez mais e mais rápidos, altos, e logo o céu dilacerado – inelutáveis as bicadas de tão bruto impulso de vida –;


não cessava, a claridade não cessava, nem a música nem o gozo nem as asas em fímbrias açuladas;


– coa, debandada dissolução!; arfa!; explode em júbilo sem tímpanos! –


cantava estridente e negra a vida, a vida, e foi a vida desde o seu nó mole e primitivo que berrou, insuportável, a nitidez do teu rosto. [          ] Quis levar à boca e já não havia. Boca, ventre, vulva, pés. A viragem em uníssono. Perdia-se, estilhaçada em vítrea aragem, a sentença primeva de morte – viver. Tudo desatava em despertencimento (o teu rosto, a nitidez do teu rosto). Faltava-me o ar e o perímetro e, dança estática com o inominável, transbordava escatológica a eternidade pelo meu corpo, o mundo inteiro estremecendo íntimo de puríssimo horror. Branco, um calor branco de – êxtase não é a palavra para aquela incandescente aleluia; aleluia também não é a palavra; brancas também as letras, os tremores e todos os significados.


Eu vira.


[Branquíssimo o gozo guardado; branquíssimo o pavor de: tocar; branca a branca sensação de morte na última brancura intolerável: a tua raridade.]


Calava, vibrando à presença-ausência de. A perturbação rupta que bagunçara os contornos cortou-me impotente a agonia desperdiçada, e era já com angustiada saudade que eu perguntava, e agora, o que fazer das minhas mãos de mais, depois de descobrir o fio e a face desde onde – as coisas?



Plena. Exausta.



 
Ashley Hope


Escritura



, separei um pouco mais as pernas; ainda um pouco mais – pra começar a falar (em carne) o teu nome, pra ver a tua letra viva, feita de mim, do meu desejo desde o movimento candeado dos ossos: duas arestas de falência oblíqua convergindo, pequeno vórtice – vem!; ainda mais: pra te inscrever por dentro, às ranhuras – um traço, outro, mais outro, mais três, ah!, uma flecha hirta de condensada tortura (escarlate já, aos golpes), mais unhas, um nome, o teu

(eu te disse: muito. muito. mui)

rosto

(aos gritos:)






Avesso


[Vai no teu peito a minha cabeça; ou será que era no meu a tua?]


Dir-se-ia: um útero. O mesmo. Para que no início fosse o avesso do verbo, e ao abrir os olhos pela primeira vez o espanto de um fosse a primeira coisa que o outro visse. E então calassem, compreendendo: puro afeto. Apenas corpos, um vertido no outro, sendo, indo, encharcados pelo gosto do mistério, roçando imortais nos dentes da grande noite. Amor. A origem real por eleição; inventada, por isso verdadeira. Gêmeos portanto desta mitologia ágrafa, reconstroem nus a dança genesíaca e continuam órgão tecendo placenta em lençóis seminais num rito interminável a gerar a própria permanência. A nascerem infinitamente de si mesmos: "tu de mim; eu de ti", era a jura. Bocas bifurcadas de um mesmo pomo visceral, à navalha sangrou esta dobra, que persiste: ainda um só ser (bastava olhar o sofrimento dos sexos, partidos, pingando, a procurarem-se).


Dir-se-ia carne, mas: o que se toca nos orgasmos é sem espessura, o oceano na veia, a gota de sede – o instante, paroxismo da carne. Então a queda para o mito: dois corpos sanguinolentos costurando o próprio passado esfacelam-se no ventre de pedra não para abrir a morte de um parto, mas para voltar (este tesão). Continuar, um no outro, rasgando-se em frenesi até negar o tempo, esquecer poros, morrer a linguagem – arroxear o diafragma cansado que diz: "eu"; "tu". Era tirar as linhas dos próprios contornos para unirem-se na pura perdição das margens, rompendo finalmente o precipício da fímbria perversa que avisa com inultrapassável crueldade onde termina uma mão e começa a outra, ainda que entrelaçadas (no mais cru desejo de ruína: desfazer-se, como terra, como pó, como água, como qualquer coisa que extrapole a si mesma e corrompa a mediocridade de carregar uma existência). Gozando, enfim. 


Diriam, então, com a terceira voz: para sempre. Porque antes. Porque atrás. Porque sim.


 
Roland Devolder




DESENHOS DE LUISA ALVES CONDÉ

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*    *    *



Sou Luisa Alves Condé. Nasci em minas, cresci em recife e cheguei no rio há cinco anos. Estudo design e vivo de arte, trabalho com estamparia numa marca experimental de casa, ilustrei poemas amigos e poetizo nos meus desenhos, pesquiso foto e video poema, pinto e faço restauro de santo. Tenho meu zine BARULHO, publicado em pequenas tiragens e alguma coisa esta no ar em "inorganicidade".



15 FRAGMENTOS DE "ALTAMIRA E ALEXANDRIA", DE IZACYL GUIMARÃES FERREIRA

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1.          


Um animal que sabe e vai morrer,
esse homem quer ficar na eternidade.
Na caverna desenha o que ele vê,
para durar num tempo sem idade.
Mostrando a caça ele prolonga a vida     
e é seu destino pintar Altamira.

O homem, esse animal que sobrevive
na imprecisa memória do futuro,
escreve e guarda o mundo que ele viu,
para fugir do silêncio e do escuro.
Contar a história é preservar a vida,
salvar do incêndio sua Alexandria.


2. 


Caminhar, caminhar e caminhar,
o faro mais atento que o de caça,
os ouvidos no chão para escutar,
os olhos dois farois além da mata
à procura de um pouso por abrigo
para a fuga, quando espreitam inimigos.

Procurar, procurar e procurar 
pelas paragens de guerra o alimento,
dentro do corpo a força elementar
dos músculos no impulso para a frente.
Só há combate e medo pelo mundo
e a vida é curta frente ao breu profundo.


3.


O murmúrio das águas e o cantar
dos pássaros, das feras o rugido,
o trovão sobre os pequenos vagidos
das crias, o assovio pelo ar
entre as folhas, os sussurros da chuva,
tudo isso pede o som humano, turvo

ainda, mas princípio de algo mais,
quase música, para além dos pés
e das mãos trabalhando a pele e a pedra
pelos ecos das grutas, e se esvai
entre as fagulhas das fogueiras altas,
já quase a ponto de tornar-se fala.


7.


O esquecimento é um inimigo à sombra,
pode matar-nos lento, devagar.
Torres altas de outrora são escombros
entre os arquivos mortos, nada mais.
Fotografias e papéis de ontem,
sem importância, sem quando nem onde.

Só se perde da vida o que se esquece
entre as coisas miúdas ou largadas.
E o pouco ou muito, se desaparece,
vai marcando de cinza nosso fado.
O outrora fogo ardente é essa cinza,
um pó sem cor soprando em noite fria.


8.  


A vida transparece no que é morto
e fica na aparência do que é ido.
Porque nada se perde sem socorro,
nada disso perece sem sentido
na hora ou para sempre, porque nada,
nada lembrado com ardor se acaba.

A vida, se é mistério, se é segredo
apenas pouco a pouco desvendado,
vai muito além do visível degredo.
É uma alegria transcendendo a lágrima,
amor infindo pelo tempo afora.
Só teme a vida a perda da memória.


9.


Cavernas, catedrais, a grande arte
monumental é anônima, glória
do homem, quando obscuro reparte  
a herança do trabalho feito e pode,    
na duração da matéria, vencer
a morte pessoal, permanecer.

A permanência, isso pede a vida.
Desfeito o corpo efêmero, um algo 
além da carne e que nos dá sentido
quer ficar. E é por causa dessa alma
coletiva que as mãos de tantas gentes
conservam seu passado e estão presentes.


11.


A mão mostrando o corpo do bisonte
se transforma na mão que escreve a letra.
A mente que transpunha o horizonte,
imaginando interpreta o planeta.
Fosse em desenho do som, densa imagem,
fosse um signo mental, eis a linguagem.

A mão que descrevia agora escreve.
A mente sonhadora agora lê.
O estreito mundo agreste e tão concreto
faz-se o universo aberto que se vê.
A mão e a mente do homem, eis a graça
dessa espécie, de pé domando o espaço.


13.   

     
Vou recompondo as marcas de meus passos.
Vou procurando as linhas ancestrais
em pergaminhos, papiros, murais.
Enquanto os deuses apertam seus laços
vou deixando em palavras o que é meu,
mínimo traço no imenso museu.

Estantes e paredes desta casa
conservam miniaturas pessoais,
uma herança de pedras e cristais
em meu pequeno rio de águas rasas.
Aqui vou protegendo Alexandrias,
reacendendo os fogos de Altamiras.


14.       


A morte teme apenas a memória,
o que parece perder-se no sopro
derradeiro do corpo e sempre volta
à lembrança dos vivos, seu retorno
amoroso saltando dos retratos,
nos ecos abafados das palavras.

A morte teme apenas a revolta
dos fatos e dos nomes que não somem
e retornam, capítulos da história
pequena e pessoal de cada morto,
um resíduo qualquer, qualquer vestígio,
que a morte ronda e espreita os seres vivos.


20.


Na pedra se congela o movimento
mas está solto o golpe, solta a vida.
O homem precisa gravar o momento
na duração anônima do dia.
Nas peles e nas ervas fluviais 
veio deixando a mão o seu sinal.

As marcas do combate e da passagem
se acumulam, são panos e são telas,
películas e fibras da linguagem
nas figuras e letras que revelam:
se o tempo seca o sangue em sua carne,
não seca o mar da alma onde ele arde.


21.


Não é possível enterrar as almas.
Insepultas transitam pelos ares
enquanto nossos corpos se desfazem.
Das covas incapazes de guardá-las
se libertam, e os nomes sobre as lápides
impedem ser deixadas para atrás.

Não é possível esquecer os mortos.
A natureza sempre os traz de volta,
no vento dispersando os restos frágeis,
no mar dos naufrágios, nos fogos fátuos
dos campos santos. Para lembrá-los mais,
fica a beleza da arte funerária.


22.


Se a vida continua mais além,
receba o morto o gozo do perdido,
ouro e caça, riquezas para sempre
suas, entre os prazeres de mil virgens.
Ou outro modo de manter-se vivo,
estendendo-se as margens do destino.

Embora a vida seja sangue e sopro,
haja matéria à mostra, pessoal,
indo com ela à morada final.
Porque é preciso não morrer de todo,
leva-se inteira toda uma bagagem,
bastasse embora preservar imagens.


38.


Todo museu começa em Altamira,
nesse painel infinito, mural
de luz noturna celebrando a vida.
Se a tinta nos retrata num Leonardo    
ou Cèzanne, a caverna é nossa pedra
inaugural, matriz que não se quebra. 

Toda palavra escrita é Alexandria,
infinito papel que não se queima.
Bíblias, Ilíadas, a fé e a queixa
da espécie humana inteira estão aqui.
No texto anônimo ou na assinatura
está gravada a mão da criatura.


47.


A gruta, a estante, a nuvem, um sinal
se eleva e me ilumina : nessa marca
da espécie vai meu rastro pessoal,
vai navegando nossa nova arca. 
Desde o toque das mãos e desde o abraço
avançamos no escuro, passo a passo.

Nos alfabetos e cálculos do ar,
por entre estrelas sobre a vida breve,
mágicas luzes traçam nosso andar.
Nos infinitos zeros e uns se escreve
o rumo em grávidas nuvens à espera,
guardando nosso espírito e matéria.


48.


O xis no chão para indicar a posse,
o xis da cruz, o xis da assinatura :
afirmações do homem frente à morte,
um mínimo sinal da criatura.
Se no começo o verbo era esse risco,
era também a marca de um princípio :

fazer por ser preciso dizer sim
ao não do esquecimento, ao não do nada.
E opondo o sim do sempre ao não do fim,
guardar, porque é da vida ser lembrada.
Pensar Alexandria como exemplo 
e cantar Altamira como um templo.







foto: Joan Miró e Josep Llorens visitando a caverna de Altamita em 1957



*    *    *






Izacyl Guimarães Ferreira (Rio de Janeiro, 1930) é poeta e tradutor. Em 2008, seu livro Discurso urbano (Scortecci, 2007) conquistou o Prêmio ABL de Poesia, da Academia Brasileira de Letras. A seleta mostrada acima é parte de último livro Altamira e Alexandria, lançado esse ano (2013). Leia mais poemas do autor aquiaqui e aquiEmail.





14 COQUETEIS LÍRICOS DE LUIS AUGUSTO CASSAS

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DEUS MIX: AS PARÁBOLAS PARABÓLICAS DE LUIS AUGUSTO CASSAS


NO REINO DO CONSUMO E DO FRANCHISING



A intimidade divina entre criador e criatura – nestes tempos pós-modernos – é atualizada pelo poeta Luis Augusto Cassas neste seu Deus Mix: Salmos Energéticos de Açaí c/ Guaraná e Cassis.


Tocando a sua harpa multienergética e compondo os salmos do mundo, a pedido do Rei Davi e sob a inspiração do açaí, nova fruta de salvação do paraíso, que tipo de relacionamento com a imagem de Deus pretende o poeta abordar: neo-projeções, idolatria do consumo  ou mais além do além?



“A poesia de Cassas é um out-door luminoso em meio à treva desses tempos sem Deus!”

legenda-lhe o compositor Zeca Baleiro.



Verta os seus sucos de pura graça e energia e embriague-se sentindo todos os efeitos colaterais da sua poesia.



Mas cuidado, caro leitor. O uso abusivo pode causar dependência espiritual.






*    *    *



SALMO COM MIX DE AÇAÍ

GUARANÁ E CASSIS

recolhe

a polpa dos fracassos

a poeira dos destroços

sargaços dos remorsos

deposita-os aqui



peneira

a semente das lembranças

raiz das vinganças

fragmentos de esperança

despeja-os aqui



depois mistura guaraná

1 cálice de cassis

ajunta ao açaí

bate no liquidificador

e deixa tudo implodir



o que morreu ou nasceu

após o mix consumir?

és o mesmo man

aqui ali e no taiti

é idêntico o açaí



o antigo mundo cherry

é que não está mais (c) aqui




SALMO DA REVELAÇÃO

eis que elevo a taça

e abençoo os dividendos

onde mora a graça

vive o investimento

ligue 0800




McSALMO

lady batata frita

mr. guardanapo

pousai as almas aflitas

sobre o olimpo do plástico

que a mostarda arde

mas não tarde



eis o magnificat:

o impacto do ketchup

no umbigo do big-mac

melhor leitura pra tese

a mais perfeita ascese

viajar na maionese



promoção super

a vossos big-eus:

o mcdeus








SALMO DO EXEMPLAR DE ASSINANTE

ó poema tu tens fé

e eu tenho obras

mostra-me a tua fé

sem cobras

que te servirei

as sobras do café

é vã a fé

que soçobra

como não há mais fã

para as obras sem fé

faz a obra

e mostra a nau

eu sou pau

pra toda cobra




SALMO DA IMAGEM E SEMELHANÇA

eu sou a tatuagem

o lifting

a ferida

faça a viagem

o piercing

a vida




SALMO BRONZEADO

senhor eu sou um

arrogante cabisbaixo

meu principal defeito

é olhar as nuvens

queixo abaixo

torna-me humilde

mas de nariz empinado

só assim perceberás

meu belo bronzeado







SALMO MALUCO

vós sois o louco perfeito

o modelo da paranoia total

ajudai senhor

os loucos de boutique

restaurai senhor

os loucos de boutique

dá-lhes porrada

de efeito real

economiza o rímel

dos seus olhos

dá-lhes a tragédia plena

em vez da comédia amena

e quem sabe transformados

possessos e desesperados

chegarão nas garupas das motos

ao hospício dos céus!




SALMO KUNDALINI

inútil separar

transcendência e sexo

verdade e inocência



toda água ao mar:

deus é sexo

à oitava potência




SALMO DEVEDOR

senhor: o que queres

ensinar-me agora?

sou bucha de provérbio

munição de parábola

ou oração pra vigário?

expulsaste-me os amigos

dispersaste-me as mulheres

deserdaste-me a prole

extraviaste-me a saúde

abandonaste-me à vaidade

empoeiraste-me o futuro

o que queres? amaldiçoar-me?

humilhar-me? santificar-me?

sou jó pós-moderno

sansão pelado

lot protestado

isaías calado

pedro excomungado

daniel enjaulado

tornaste-me saco de pancadas

profeta de répteis e formigas

mingau de alma

bode expiatório

jerusalém saqueada

mulher de malandro

masoquista de carteirinha

cinzeiro de multidão

mas quero que saibas

quanto mais te vingas

mais é teu meu coração!




SALMO PARANOICO

deus me perseguiu em carreatas

em longas noites de insônia

com o seu manifesto de amônia

à noite toda estava lá

o olhar fatal / neanderthal

de líder de comício

convocando-me ao precipício

do seu suave hospício

e desde o dia em que o avistei

o curei e o consagrei à nova lei

lexotan otan lex

eparex sed lex

sou o seu rei




SALMO CLONADO

dentes trincados de ódio

e baba nos caninos

um doberman

não é somente

um dobermann

dentes trincados de ódio

e baba nos caninos

é um man

olhos vermelhos

do cão




SALMO DA SAGRADA FAMÍLIA

família é boa

pra tirar retrato

chamar às quatro

lavar os pratos

brincar de gato e sapato

e no último ato

(após as vias de fato)

encher de deus o saco




SALMO PENITENCIAL

eu te perdoo senhor

por teres colocado

gente complicada

em meu elevador

às vezes ardo

tipo salsicha swift

em auschwitz

mas disfarço a cicatriz

com cara de meretriz







SALMO DAS LOCADORAS DE VÍDEO

no ar mais uma superprodução:

violência é a maior diversão



inesquecíveis

safáris urbanos:

caçava humanos



matou deus e foi ao cinema

foi ato transparente

só mata socialmente



não se iluda você

ligar alto a tv

é o álibi mais perfeito

pra não se ouvir o ser







Imagens do poeta Luis Augusto Cassas, na região do Maracanã,
em meio à floresta de açaí, São Luis do Maranhão.




*    *    *







Luis Augusto Cassas, 60, é autor de A Poesia Sou Eu, Poesia Reunida, Imago Editora, dezembro de 2012, 2 volumes encadernados, com aproximadamente 1400 páginas e alentada fortuna crítica. 











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