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CONTO DE DENISE RAVIZZONI

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Billy Corgan, O Martelo e O Vermelho



“Oh Lord I’m ready now / I’m ready, ready to know / Ready to learn...”
Os versos vinham de algum lugar perto, bem perto. A voz familiar, as palavras quase amigas. A canção de Billy Corgan saia de alguma janela do prédio em frente, atravessava a rua e abria caminho no ar para que eu a seguisse.
A tarde sufocava, não dava trégua, não permitia uma respiração tranquila. E eu ali, olhando e olhando. Parecia assistir a um cena de filme, uma imagem já bem conhecida. Isso produzia em mim uma sensação estranha, como se o filme em questão me deixasse soldada à poltrona de algum cinema hipotético enquanto aparecia na tela, cinema que só existia num canto de memória de anos e anos, um passado jogado num canto qualquer.
Imóvel, observo o fio colorido e espesso avançar pelo piso. É esta a cena em que reconheço o rosto que me assiste a uma distância curta. O homem de olhos estranhos inclina o rosto para a esquerda e sorri com candura, quase encantado. Parece hipnotizado por alguma cena de seu próprio cinema hipotético. A cena sou eu, ali deitada, incapaz de emitir um som sequer. Sei que me olha como nunca fez antes. Lembro bem agora. Muitas e muitas vezes ele pousou os olhos sobre mim, nunca os olhos de agora, nunca essa expressão. Estende a mão e, ainda sorrindo, passa os dedos de leve sobre minha testa, afastando uma mecha de cabelos que insiste em despencar pela face e balançar irritantemente sobre o nariz. Ele tem uma boca de lábios secos, mas macia, e dela ouço sair as palavras uma voz doce que diz:
- Calma, tudo vai ficar bem!
Não tento responder. Não tento gesto algum. Permaneço na cena, na minha e na dele. Dois filmes dividindo a mesma imagem, mas com interpretações diferentes. Agora estou ocupada em lembrar como cheguei ali, o que fiz para estar estendida no piso gelado, só as pernas sobre o tapete macio numa posição esquisita, a cabeça de um jeito desconfortável quase apoiada no ombro, braços estendidos para cima. Sei que está calor, um calor sufocante, porque estou com meu vestido leve, o que gosto de usar sem roupas de baixo quando fico em casa nas tardes de verão. Uma roupa fresquinha, gostosa, leve. E porque ele está só de jeans, nenhuma camiseta ou sapatos. Mas o engraçado é que não tenho a sensação física do calor. Não transpiro, embora sinta os cabelos molhados no início da nuca. Não saberia explicar o motivo, mas exatamente nesse momento sinto uma lágrima grossa se formando, depois escorrendo feito lava quente do meu olho para o chão. Vejo a gota larga se espalhar um pouco bem perto do fio colorido que agora aumenta a espessura e torna-se mais viscoso. Ele anda para um lado e para o outro. Carrega alguma coisa na mão direita, mas não identifico. Não sei se o dia está claro demais, mas a luz atrapalha minha visão. Ele percebe a lágrima e se aproxima. Fica de cócoras, bem perto, e diz:
- Não, não chora. Olha, você é tão linda... não quero que você chore. Sério. As coisas acontecem de um jeito estranho as vezes, perdemos o controle, mas não quero que você chore. Estou aqui com você. Vou ficar do seu lado até o fim, até o fim!
A voz é quase comovida, treme um pouco no final da frase. Está emocionado. Também estou, embora não seja capaz de explicar o motivo. Os pensamentos se misturam, não consigo ordenar as idéias de forma clara. Talvez se me levantasse, ou fizesse algumas perguntas, mas não posso. Ouço mais um trecho da canção, que conheço bem. Arriscaria dizer o número do apartamento de onde sai a tal música. Arriscaria até cantar umas frases se a situação fosse outra. Não agora. Agora não. Tento fechar os olhos e só então percebo a dor, oca como uma caverna, na parte de trás da cabeça perto da orelha esquerda. Dor quente. Entendo que a dor tem alguma relação com a desordem dos pensamentos e com o fato de eu não reunir forças suficientes para um gesto qualquer. Também sei que é a dor que produz este clarão nos meus olhos, e não o sol forte da tarde quente entrando pela janela. Fechar os olhos é impossível. Tentei, juro que tentei. A náusea foi forte demais e agora sinto o gosto amargo na boca e tomo consciência do líquido escorrendo da boca. Mesmo assim consigo cerrar um pouco as pálpebras e, por um segundo, recupero o foco. Pouco, mas o suficiente para identificar o que ele tem na mão. De olhos abertos, noto que as cores estão confusas, mas sem dúvida é o martelo, o mesmo que entreguei a ele pouco tempo antes para que colocasse na parede o quadro que eu havia terminado naquela manhã. Talvez ele tenha visto o movimento dos meus olhos, talvez tenha adivinhado o que passava agora pela minha cabeça. Endureceu um pouco a linha da boca e interrompeu novamente sua caminhada nervosa e incessante de um lado a outro da sala para chegar bem, bem perto. Dessa vez senta-se no chão, coloca a mão sobre o meu ombro e aproxima o rosto para falar ao meu ouvido.
- Meu bem, não me olhe assim. Eu juro que não queria, amor. Mas você não devia ter me pedido para colocar o quadro. Justo este quadro. Vi você ali, tão linda, tão excitada com o trabalho pronto, fazendo planos, dizendo que levaria a pintura para a galeria na manhã seguinte... Meu bem, o homem retratado ali não sou eu. Você não devia, não devia...
Ele começa a chorar como um bebê faminto, não em soluços, mas em uivos tristes. Um choro sentido, lamentoso. Consigo ver o telefone no chão, a poucos metros dele e de mim. Está caído, o fone fora do gancho. É inútil o meu esforço, sei que não vou alcança-lo. Penso na moça do filme, com o estômago cheio de comprimidos perguntando para alguém do outro lado da linha se acreditaria que espíritos poderiam usar telefones. O pensamento seguinte é um misto de horror e vazio. Vejo e reconheço o martelo, o meu martelo, agora muito perto dos meus olhos. A parte chata da peça de ferro tem um mix estranho de sangue, cabelos e pequenos cacos brancos que parecem ossos. Meus ossos? Meu sangue? Positivamente, meus cabelos. Fios longos castanho avermelhados empapados de sangue. Só então percebo que o fio colorido no piso à minha frente também é vermelho e engrossa a cada minuto formando uma poça de líquido grosso. Sangue, o meu sangue. Enquanto ele chora, ouço ainda a canção que vem ao meu encontro e me deixo levar pela melodia. Sei porque não posso me mover. Sei porque ele chora. Sei porque meus pensamentos estão desordenados e falhos. A náusea some e consigo fechar os olhos. A canção vai ficando distante, distante...
“Oh Lord I’m ready now…”




*    *    *





Denise Ravizzoni olha o mundo como quem espia do buraco de uma fechadura sob uma lente verde. Gosta de miniaturas, caleidoscópios, fotos em branco e preto e apartamentos antigos e amplos. Gaúcha, mais de 40, viu muitos filmes, leu muitos livros, escreveu uns poucos. Em 2009, lançou a coletânea de contos sobre mulheres, "As muitas que me habitam" (Multifoco, RJ). Dois romances na conta dos livros escritos, muitos e muitos e muitos textos aí pela rede. Email.







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