Antagônico
Prostituto e puro
sigo o verso
que ainda corre
na linha fina
do papel pautado,
em equilíbrio precário
entre o tombo e o passo.
Leopoldo Comitti
Leopoldo Comitti traz com este novo livro, A mordida do cordeiro, mais uma vez, seu estilo marcante. Em uma obra poética que pretende, além de cantar o que de mais presente temos na vida, ressaltar o seu eterno passar, caminhando constantemente para o fim; o poeta traz ao verso a preocupação com o pensar, desenvolvendo uma atenta dissecação das possibilidades que temos ao nos relacionarmos com o tempo, com o efêmero e com a existência. Primeiro porque o poeta sabe que, para habitarmos o mundo, é preciso entender a morte e aceitá-la em tudo, seja nas coisas ou nos seres. Em conseguinte, porque tece, com delicada construção imagética, um tempo atomizado que se prolonga noite a dentro, no qual participa de tudo ao fazer participar os que miram, por meio de seu olhar, o movimento vital, entre a luz e a sombra, imergindo-nos todos nas oposições próprias do viver.
A importância da figura da morte e das viscosidades da vida completam a lacuna que o poema constantemente dá nas suas repetidas imagens de tédio e nas cenas diminutas do cotidiano. Olhamos por este olhar que, sobretudo, percebe a morte diária, par da vida e que com ela caminha em tudo e para tudo.
Porém, há neste constante morrer uma preocupação com as pequenas formas de vida. Em alguns poemas de A mordida do cordeiro, há cenas de insetos em casa e na rua – a barata suja, as formigas sobre a mesa, as mariposas na luz, o verme no chão –, ou as flores que carregam feridas ou perfumes de vida e de morte, como tudo o mais que nos completa. Junto com os pequenos insetos, a sujeira humana, o vômito, a escatologia que nos faz vitais e imundos, sujos como tudo que é carregado de vida e como tudo o que eternamente está a morrer.
Neste mostrar a morte no todo dia, Leopoldo Comitti constrói um lugar de habitação, tendo na efemeridade a linha condutora, temática que sustenta o verso perseguido pelo poeta em seu papel pautado, chão onde se edificam os poemas. Esta efemeridade se percebe, acima de tudo, no e com o corpo.
Este, sempre ponto de partida para se pensar o co-habitar com a morte – seja no olhar especular do poema A Porta e o Espelho, que abre o livro; as mãos “sempre sem luvas” em Detergente; a carne rasgada pela palavra em 1970, a oração que emana do corpo em Prece – coloca-nos diante de um poeta que sabe que as experiências vitais estão, sobretudo, no corpo, em seu sentir e perceber tudo o que o rodeia.
Por meio do corpo e no corpo (humano e do poema), o eu lírico percebe e recebe os destroços do mundo, os elementos da construção de sua casa – “Talhei a casa / como quem confecciona / um terno, / nos detalhes doloridos de cada ponto.”, do poema Construção – (pois a morada, tal qual a roupa de todo poeta, é o poema). Faz, com isso, um retrato da Cidade antiga, na sua retórica muda, suas portas empenadas, imagem que surge em outros poemas com uma urbanidade recheada de um casario moribundo, como um imenso cemitério, permeado por todos os corpos que nela se encerram, nas rosas, nas bromélias, completando o espaço em branco da página com elementos imagéticos dispostos como um grande vitral.
Cantando os destroços, as viscosidades, Leopoldo Comitti cria uma rede que envolve o movimento da vida e seu constante caminhar em choque com aquilo que faz trombar o corpo contra o tempo e contra todos os múltiplos corpos que percebemos no mundo: nossa parcela mortal e efêmera. E tudo carrega um ar de podridão, de silencioso morrer, como a palavra que sangra blasfêmias e que sua fezes, que o poeta ousa apenas ouvir em Suores.
A palavra, então, elemento-tijolo na edificação do poema, agulha com a qual o poeta costura seu texto nas linhas do papel e dos sentidos, é onde ele trabalha de forma atenta e meticulosa a tessitura desta teia, externa ao som e extrema no arremedo, no arremate. A rede chega às sílabas, em alguns casos às letras (ou parte delas), no corpo da palavra que o poeta disseca, extrapolando a pele das aliterações. Produz outras imagens, como se em escada / esquina no já citado A Porta e o Espelho, criasse conexões com as partes das coisas, nas sílabas que as denominam, como se ambas – uma interna à casa e outra externa – partissem do mesmo lugar, que no poema é o espelho. O mesmo faz o poeta, ainda em A Porta e o Espelho com o “r” em rua / quarto / porta / verme.
Isso também acontece com a letra “b” que sustenta tanto a “borboleta” quanto o “bêbado”, uma como o eixo da noite que lhe gira em torno, e outro a girar em torno do poste, ambos do poema Vôo cego. A letra “b”, nas palavras iniciais das duas primeiras partes do poema,pilares internos às palavras, são também seu prolongamento: sai o bêbado da borboleta, porém inferior a ela, como a escada e a esquina são inferiores ao espelho que tudo inverte. De ambos, tanto da borboleta quanto do bêbado, parte o girar de tudo. Algo é sempre o centro de outro que gira em torno, e tudo acaba por girar em torno de outro elemento que gira, movimentando todo o texto e nos lembrando da circularidade de tudo, em seus movimentos e conexões. O movimento giratório de tudo sempre alheio ao que acontece, como as pessoas que não percebem as asas-pétalas que retornam ao pó, no chão da cidade, ao fim do poema. Assim, Leopoldo Comitti trabalha o elemento sonoro e a palavra como elo que interpenetra coisas e seres, conectando-os uns aos outros nesta teia / rede que é o co-habitar, fonte irradiadora de imagens.
Além disso, sabe-se o poeta parte de uma forte tradição literária, na sobriedade do verso cuidadosamente talhado, na invocação clara a Clarice Lispector no poema Entre Rosas e Baratas, a Cláudio Manuel da Costa em Labirinto, e a Carlos Drummond de Andrade em No meio do caminho, seja pelas imagens, pelas glosas ou pelos títulos por ele utilizados nestes textos. Desta maneira, o poeta edifica a irmandade compacta daquele que tem com seus predecessores mais que um respeito, pois percebe a necessidade de se conectar a eles pelo ofício que desempenha. Com esta busca, pretende dizer de forma única e particular, com “rabiscos pela superfície / da mesa redonda, dura e opaca” por meio de um verso que é sempre “sem sono”, como nos ensina em Insônia, edesenha imagens que nos remetem ao constante retornar ao nada que “se faz / prenhe de sentidos”, como nos diz na segunda parte do poema Epitáfio.
Outro elemento marcante neste livro é a presença da cor, demonstrando que o poeta pinta cenas, pensa em paisagens que nos provocam o pensamento, trazendo ao verso esta plasticidade emoldurada nas margens, no branco, nos silêncios. A leveza de uma pintura a que não escapa a importância da luz, sua constante luta e enfrentamento com a sombra, elementos indispensáveis e complementares na construção dos volumes e das densidades do que aqui é poetizado.
É a cor e o contraste entre luz e sombra que aparacem em versos como “É noite e dia / no clarão da noite seca.”, de Pela janela; “Vermelho de carne crua / meu dedo sangra em palavras / velhas. Calejada, a mão / ainda escreve sobre a linha.”, de Cardápio; “Depois de um verso rápido, / morrer um pouco pode ser / um bom começo / congelado em fotos / de mosaicos coloridos.”, de Sépia. A cor e os elementos de luz e sombra completam as imagens, como se também fizesse em seu livro um caderno de desenhos, um curso de pintura para os que desejam perceber as cores que, de fato, preenchem a vida, em muitas das vezes mais refletida que autêntica, seja na noite ou no dia.
O constante contato do corpo com as vicissitudes, em imagens plásticas carregadas de cor, luz e sombra, de momentos pequeninos plenos em poesia – “ou no vão vazio / de uma palavra / que se evaporou / no suspiro exíguo / da água corrente / / em ebulição.”; de Pró-epílogo–, dão aos textos imagens poéticas que refletem, do primeiro ao último poema, a construção de um olhar especular do mundo, seus duplos, opostos e interligados, como o cordeiro e o lobo no poema que dá nome ao livro. O poeta sente-se mordido pelo cordeiro, “manso e cordato”, sabe que este tem o lobo como par em meio a perenidade da multidão e dissolve a fábula, trazendo a carnificina do tempo que tudo devora, mostrando o quão somos todos presas deste animal que nos espera à espreita, armando o bote sangrento e silencioso.
Ao costurar este pensamento sobre o mundo com palavras que lhe escapam nas pautas, o poeta faz, enfim, um belo dissecar dos pares sempre presentes – vida e morte, luz e sombra, dia e noite, Deus e Diabo, anjo e demônio, ser e coisa, presente e eternidade. Assim, Leopoldo Comitti, em A mordida do cordeiro, refaz o “habitar”. Este habitar poético que Eduardo Lourenço percebeu como fundamental em seu Tempo e poesia, e que Heidegger entende como uma maneira de ter com o mundo uma relação de pertencimento[1]só possível poeticamente. É neste sentido que todo o livro, atento a tudo o que pode fazer o leitor sentir-se parte e sentir as partes deste todo sempre duplo, transmite a percepção lúcida da finitude, dos limites do corpo e do tempo, do olhar e da palavra.
[1] HEIDEGGER, Martin. Construir, Habitar, Pensar. In: Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão et alli. 5. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008. p. 125-141.
Danilo Barcelos é doutorando em Letras na Universidade Federal do Espírito Santo, poeta e escritor.