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Käthe Kollwitz (1867-1945), "Éramos uma família triste". |
Chegando em Casa
Chegando em casa
Abro a porta.
E, no escuro,
Permanecem estáticas:
A cadeira, a roupa,
Toda a extensão da sala,
Tudo o que anseia um futuro...
E repentinamente se escapa
Por entre os espaços do corpo.
Estão se Adiantando
Reviro os documentos na escrivaninha:
Bilhetes, registros e fotografias,
Todas as testemunhas de que estive
Presente em meu tempo.
Datas, carimbos e emolumentos,
Rodam assentes em meu sangue cartorial,
Enquanto lá fora o vento brinca
Com as folhas que rolam soltas
Por todo o quintal.
Entre um recorte e outro de jornal
A notícia de um desastre automobilístico,
A morte de uma bailarina, a internação do tísico,
Um ou outro caso banal.
O anúncio da morte de um conhecido
Que ganhou as feições de um arvoredo,
Devido ao papel tão amarelecido
Dispara em meu corpo o medo:
- Por que estão se adiantando, meus amigos?
Respondem:
“Em um tempo tão sombrio
Cumprimos
As ordens de se retirar
Da vida tão cedo."
Cena Familiar
Lá está minha mãe a catar feijão.
Meu pai, sombrio, lê as notícias
Sobre a crise no jornal.
Meu irmão acompanha uma série na televisão.
Minha irmã escova os cabelos da boneca.
Instalado na solidão, observo a cena,
Lembro do gesso na minha perna.
E sem um motivo qualquer
Arrisco escrever um poema.
Notícia
Atento, leio os jornais,
Na condução rumo ao Centro.
As notícias permanecem banais:
Desastres, mortes, o tempo.
Os homens parecem seguir iguais.
E tudo é desmentido.
Atravessa a avenida
Com zunido de projétil,
Estatela-se do prédio
Fincado está ao chão
Um homem com uma flor.
Um homem como uma flor.
Um homem como uma flor
Sem nenhum perfume.
Um homem como uma flor
De estrume.
Um homem como uma flor
Germinada do ciúme.
Ou como será noticiado:
Um homem que apenas se matou.
Procura-se
O amor desapareceu novamente.
Por descuido ou acidente ou desastre
Não está mais no quarto ou no sótão
Não adianta mais procurá-lo entre os trastes
De um passado ou escondido em um móvel
Como um relógio parado a procura de conserto.
O amor está desaparecido entre tantas urgências
Do pagamento da conta de luz, do gás e do aluguel,
E nenhuma técnica, nenhuma ciência
Poderá ressuscitá-lo como Jesus fez a Lázaro.
Procura-se notícia acerca do paradeiro do amor.
Está em um balneário ou no interior?
Evadiu-se para o estrangeiro?
Ou simplesmente evaporou?
Aquilo que vier primeiro.
*Dedico os poemas acima a Afonso Romano Sant'anna.
George Trackl
Tateamos a urna
Em que restam
As tuas cinzas,
Juntamo-la ao
Ouvido e nada...
Voz alguma
Levantou-se
Para resposta.
O anjo postou-se
À porta, calado;
O vento gelado
Trouxe os silvos
Dos mortos e o
Delírio inevitável
Tornou harpa
O silêncio petrificado.
As folhas bailam
Mortas e o relicário
Com tuas cinzas,
Indecifrável,
Estiola-se
Perfume vândalo
De campa ardente.
ALICE
Desmonta a noite,
Com suas mãos infantis.
Recolhe as estrelas,
E arruma-as em uma caixa
Forrada de veludo vermelho.
A lua, com certo tremor,
Pede minha ajuda para colocá-la
Na moldura do espelho.
Desprende o manto negro
Presos por alfinetes no espaço,
Dobra-o e o deposita no fundo
Da gaveta do dia, repleta de claridade.
Esgarça o algodão e o cola sobre o azul
Do forro do vestido.
E, como Alice, grávida de sol,
Abre as pernas
Para que o dia amanheça.
O dia de meus anos
Para W.J. Solha
É o dia em que faço anos.
Nenhuma ou pouca importância.
Lá, no quintal, estão as crianças
E eu, aqui, dentro do quarto,
Rabisco no caderno as lembranças.
É o dia em que faço anos.
E lá fora também o devem comemorar
As coisas com nascimento remoto
Com pouca ou nenhuma consciência
Que nasceram e nada sabem do ciclo
De crescer, amadurecer, ter filhos,
Morrer confinado em lembranças
De um distante domingo,
Com amigos na varanda. Discutíamos
Heráclito, Píndaro e Ovídio
E não nos molhávamos mais no mesmo rio
Que um dia nos banhara em nossa infância.
E não nos afligíamos.
É o dia em que faço anos.
Costuma-se celebrar o antigo,
Aquele que mais tempo leva a desgastar-se
Aquele que o tempo não tem como inimigo
E passa os dias a juntar-se do que foi vivido.
É um dia de celebração, enfatizam os filhos.
Cercado pelas fotografias amarelecidas,
Constato que outro me habitava tão diferente...
Mas será comigo reduzido a nada
Nesse tempo tão presente.
* * *
Mariel Reis (Rio de Janeiro, 1976) é originário do limítrofe bairro carioca da Pavuna (vizinho à baixada fluminense), graduou-se em letras pela UERJ e integrou os conselhos editoriais das Revistas Confraria do Vento e Paralelos. Seus livros lançados são "Linha de recuo e outras estórias" (2005), "John Fante trabalha no Esquimó" (2008), "Cosmorama" (Poesia, 2009) e "Vida cachorra" (2011), este último com prefácio de João Anzanello Carrascoza e quarta capa de Paulo Lins. E-mail: marielreis@ig.com.br