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A Porta e o Espelho - Leopoldo Comitti

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Opposing Angles/ HalTenny




A Porta e o Espelho

 

1.

O espelho do quarto exíguo

reflete não mais a imagem

do quarto. Nem da cama,

nem do homem que olha

um verme que devora a noite.

Pela plana e ruiva superfície,

enferrujada de suores vários,

ele desce uma escada tosca,

aqui e ali mal iluminada

por um foco de luz inquieta.

Trêmula. Postiça, talvez,

em sua fraca lâmpada frouxa

e pendente, e incauta, e fraca,

de um fio de pó ou pólen de vidro:

moído vidro de um relógio morto,

no pisotear de um tempo estrábico.




Entre o claro e o escuro disformes,

outro homem se interpõe e desce.

Tece a escada no espelho fosco

e transforma o quarto fechado

em aberta paisagem externa

e extrema. Pelos postigos da janela,

os espectros avenida se derretem,

na tortuosidade da ruela que verte

barroca e sinuosa paisagem artificial:

nas rugas, nos rostos, nas brechas

de uma falsa pátina aquarelada em verde.


2.

A escada vazia e tosca

divaga na sofreguidão

da lâmpada ainda acesa.

Passos rangem entre cupins

que o pé esmaga. Invisíveis

vítimas de uma noite tesa.

Rostos passeiam entre séculos

e os passos ainda largos

se dirigem a uma esquina:

quina pontiaguda e suspensa

que o relógio de vidro

encena num quarto de hotel.

De repente, da rachadura

do espelho, a casa se fragmenta

em lógico deslizar pelo penhasco.

Num lento quadro a quadro,

quarto e rua fundem-se novamente

em tapete e pedra, emaranhados.


 
3.

Há um degrau de morte

no desvão da escada.

Aranhas, aos montes,



o preenchem de tênues

dúvidas. Austeras, tecem

o sono, em lugar da espada,

em ingênuos arremedos

do arremesso final e inquieto.

Há luzes na calçada,

mas o espaço pouco entre

ela e a noite é interrogação.

Pergunta que paira

na irrespondível chegada

de uma insossa manhã

quase impossível e frágil.

Tão frágil que mal se ouve

os passos que rangem

na escada invisível

que se esconde e se mostra

por trás do espelho.




4.

No avesso do quarto

exíguo do hotel barato,

reflete a telha chã e vã

que reconstrói o dia pelo inverso.

Na luz que entra e se espalha

pela extensão da cama velha,

ainda se sente o soar dos passos,

a ecoar no brilho da lâmina

que os olhos então dispersos

registram ainda como estranha,

límpida e marmórea lápide. 



Leopoldo Commiti publicou os livros de poesia Fundo Falso,Por Mares Navegados, O Menino Debaixo da Mesa e o romance  Natureza Morta Além da produção poética, possui dois livros de ensaios, e extensa produção de artigos publicados em revistas especializadas. Em breve lançará o livro de poemas A Mordida do Cordeiro pela Editora Patuá.






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