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Imago Mundi

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A general map of the World or Terraqueous Golbe with all the new discoveries and marginal delineations, containig the most interesting particulars in the Solar, Starry and Mundane System Western Hemisphere or the New World by Mr. D'Anville With the New Discoveries and Several Aditions Eastern Hemisphere or the Old World by Mr. D'Anville With the New Discoveries and Several Aditions / Autoria: Dunn, Samuel - Ano:1787

I – Índias:
Terras, algum fio
suspende-as e elas
oscilam sobre dois rios,
sábios beduínos limam 
seus dias à procura do signo
que transponha o peso
de todos os estatuários, todos os jardins,
todos os palácios de ouro, de todos
os haréns, de todas as mesquitas
para esta folha. Na quadratura
circular, centro do mundo:
Jerusalém e seus ângulos vazios
à sombra de gólgotas e oliveiras.
Ainda há muros circundando
estas terras, neles figuras
em desespero choram o preço
de suas casas, de seus órfãos
e de suas viúvas. Uma voz clama,
autofalantes no deserto:
e o deserto é este leão,
nas quatro pontas da cidadela.
Há palavras intranquilas, rabiscos,
códigos de sangue neste pedaço
da carta: Chatila, Sabra, Nakba
e uma multidão, em transe,
na vala comum. Mastigam
massacres na feitura do périplo,
não há rotas seguras entre
os campos de refugiados, não
há fugas para a fome, para a dor
nos dentes das crianças, nos
tumores dos velhos sem dentaduras.
A estéril chora seus óvulos.
Derivando em vagas de veneno
o mar morto na madre da moça,
na espessura do sal, asfixia
todos os peixes que ainda resistem:
abre e fecha o maquinário das guelras
enquanto areia faz vidro nos olhos.
Mastigam massacres, e secou
para sempre a fome de especiarias.

II - Velho Mundo:
Cicatriz,
nas bordas do canal
desfilam fachadas,
carcomendo-as
algumas chuvas de um verão
sem calendário.
Há tremores nos bancos,
homens se engasgam com
taxas de câmbio
envoltas em teias de aranha,
poeira arde nos olhos
das freiras, das moças,
de uma orquestra inteira,
fica quase impossível o concerto
no museu de utensílios sacros,
o tempo passa com pressa,
dobra todas as esquinas
como os cães na força da lua,
mas o que ele tem de fúria
tem de fome, devora o que
se deixa tocar por sua língua
e o odor adocicado de suas areias
faz ranhuras. Se a chaga sarar
o corpo morre, por isso inflamam
a enorme praça e ela continua
exalando o perfume dos cadáveres
em seu profundo mausoléu
às margens da pia batismal.

III – África:
Corpo em retalhos,
cordão de vísceras, tribos
decepam-se, o incêndio não cessa,
homens carregam mãos albinas
junto aos lábios, amuletos,
objetos sagrados, de confecção
fácil. Há um novelo tão denso
de sombras, há gemidos
sob as vestes da savana. Elefantes
disputam as poças com sedentos,
crânios despencam das garras
do abutre. Um batuque trava
as trevas da noite, e mesmo
afundando na semente do Saara
é possível ouvir ondas bebendo
a pele das praias. Ilê, nossa casa,
nômades procuram tuas portas,
rastejam como a primeira serpente,
órfãos de teu leite amargo.
Dos peitos murchos da África
pendem muitos famintos, o som
de seus ossos atravessa poucos
hemisférios, se perde nas ilusões:
na verdura do Nilo.
Teu sorriso constrange o cartógrafo,
É o sorriso ébrio da fome,
enquanto não chega o cortejo de urubus.
Às pedras, aquelas que demarcam
teus túmulos, ruínas e setas,
apontando descaminhos,
brindamos taças do apocalipse.

IV – Novo Mundo:
O céu de São Paulo,
Ninho de nuvens turbulentas,
e a ruína das capitanias
hereditárias, talvez as
ruas do chile atravessem
esses mesmos podres
que sentimos aqui
pelas calles de Igaraçu e Recife,
à vista das colinas de Olinda,
das chaminés absurdas de Paulista,
do canavial cortando Goiana.
Tudo que circunda meu sono
fere as paredes de minha
artéria mais ávida, grafo o trecho
de poucas longitudes que ainda me
separa destas paragens, sei de minha
perdição, mesmo à lume de um mapa.
Ensaios de revolução chegam
no primeiro revoar dos alísios, onde
a mata que sazona outras guerrilhas?
As esquinas sustem projeteis,
andamos numa roleta russa, a cada
passo o cão se assanha,
e só nos resta esperar seu escarro
de aço. No pedaço de maior caos
escolhi permanecer, iludo-me não
imune, só esperando mais uma
temporada de peste
que nos chegue dos Andes.
Enquanto isso nas telas: desvairo
de rostos sob sombras, chagas
e rojões. Avenidas: rasuras
no asfalto, notas insanas, cartografias
de pandemônio. Temo que no fim
este maldito roteiro nos trague
e escapulindo pela planura
provemos que nunca estávamos
certos. Não há rota segura
numa terra quadrangular.

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