Cesário Verde (1855-1886), dos poetas lusos de mais influência no Simbolismo em Português, produziu, para além de sua poesia imagética, muitas vezes classificada como Romântica – mas de feição certamente nova para a sua época – uma obra com um teor social que se diferenciava do que já havia sido trabalhado no tema pelos Realistas: “Desastre”,publicado em 1875, no Jornal "O Porto", é de pungente descrição – tragicamente contemporânea -, e exatamente por ser tão atemporal, não se fixando somente nas descrições da época, mas do homem em seu tempo – que é o homem na agonia de todos os tempos -, vai bem além da descrição feita, até então, pela tradição Realista portuguesa.
E acerca da influência de Cesário no movimento simbolista, Antônio Austragésilo, poeta brasileiro da segunda camada simbolista, deixou claro, em seu texto “Os Portugueses”, que, além dos Simbolistas como Antônio Nobre, Eugênio de Castro, autores como Teixeira de Pascoais, Cesário Verde e Raul de Brandão se tornaram leituras obrigatórias para os autores nefelibatas brasileiros. O humour da poesia de Cesário teria ainda espelhamentos em Felipe d'Oliveira, Augusto dos Anjos e em muitos autores do Pós-Simbolismo. E nunca podemos nos esquecer que Cesário foi um dos poetas prediletos de Fernando Pessoa, que o considerava um dos mestres de seu tempo.
Retrato de Cesário Verde feito por Columbano Bordalo Pinheiro para 1ª edição de O Livro de Cesário Verde (Créditos da foto: Wikipédia) |
Mas, enfim, retornando à discussão do poema, Cesário Verde, em carta para o escritor Silva Pinto – um dos seus grandes amigos e que acabou por reunir os poemas de Cesário no póstumo Livro de Cesário Verde (1887) - escreveu:
"A poesia que eu hoje te mando é a minha última maneira. Vês por ela que eu não desprezo de modo algum o coração, que quando desprezado não deixa brotar nenhuma obra de arte. Mas o que eu desejo é aliar ao lirismo a ideia de justiça."
Provavelmente, Cesário se queixava, quando dizia, de certa forma defensiva, que não desprezava o coração, das críticas que recebera por seu hoje reconhecido poema “Esplêndida”, mas então recebido com críticas ferozes, em mais um exemplo do milagre da incompreensão da crônica literária da época.
“Desastre”, talvez um dos poemas mais desconhecidos do autor – além de ser, evidentemente, de ordem estética diferenciada - apresenta um Cesário que "abandona o discurso irônico", procurando "expressar e revestir-se de sentimentos nobres, para educar sentimental e moralmente o leitor", como definiu Mário Higa, organizador dos "Poemas Reunidos de Cesário Verde", da Ateliê Editorial (2010). A contradição, porém, é que o objetivo moral de um poema ia de encontro com o próprio padrão cesariano, pois, se por um lado a própria poética de Cesário já nos leva à ideia da liberação da poesia nas questões morais e éticas, do outro, é inegável que Baudelaire, a quem o poeta português leu e cultivou o nome, também exerceu influência nessa questão, fazendo com que a postura moralista de “Desastre” seja ainda mais curiosa e rara na poética do autor de Nós.
Mas proponho, para além da ótica da moral, a leitura do poema sob a visão social, bem mais condizente do que tão somente uma vã tentativa de moralização por parte do poeta. Mesmo que Cesário não tenha tido contato com as obras filosóficas e políticas que expõem questões como a luta de classes, é evidente que a interpretação acerca do poema pode cingir essa perspectiva. Vejamo-lo, enfim:
DESASTRE
Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,
Soltando fundos ais e trêmulos queixumes;
Caíra dum andaime e dera com o peito,
Pesada e secamente, em cima duns tapumes.
A brisa que balouça as árvores das praças,
Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,
Trazendo em sangue negro os membros ensopados.
Um preto, que sustinha o peso dum varal,
Chorava ao murmurar-lhe: "Homem não desfaleça!"
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça,
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.
Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes
Corriam char-à-bancs cheios de passageiros
E ouviam-se canções e estalos de chicotes,
Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.
Viam-se os quarteirões da Baixa: um bom poeta,
A rir e a conversar numa cervejaria,
Gritava para alguns: "Que cena tão faceta!
Reparem! Que episódio!" Ele já não gemia.
Findara honradamente. As lutas, afinal,
Deixavam repousar essa criança escrava,
E a gente da província, atônita, exclamava:
"Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!"
Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;
Mornas essências vêm duma perfumaria,
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,
Numa travessa escura em que não entra o dia!
Um fidalgote brada a duas prostitutas
"Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!"
Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas
E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.
Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer,
De bagas de suor tinha uma vida cheia;
Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,
Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.
Depois da sesta, um pouco estonteado e fraco
Sentira a exalação da tarde abafadiça;
Quebravam-lhe o corpinho o fumo do tabaco
E o fato remendado e sujo da caliça.
Gastara o seu salário - oito vinténs ou menos -,
Ao longe o mar, que abismo! e o sol, que labareda!
"Os vultos, lá em baixo, oh! como são pequenos!"
E estremeceu, rolou nas atrações da queda.
O mísero a doença, as privações cruéis
Soubera repelir - ataques desumanos!
Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos
Andara a apregoar diários de dez-réis.
Anoitecia então. O féretro sinistro
Cruzou com um coupé seguido dum correio,
E um democrata disse: "Aonde irás, ministro!
Comprar um eleitor? Adormecer num seio?"
E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,
- Conservador, que esmaga o povo com impostos -,
Mandava arremessar - que gozo! estar solteiro! -
Os filhos naturais à roda dos expostos...
Mas não, não pode ser... Deite-se um grande véu...
De resto, a dignidade e a corrupção... que sonhos!
Todos os figurões cortejam-no risonhos
E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.
E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa,
Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas:
Isto porque o patrão negou-lhes a licença,
O inverno estava à porta e as obras atrasadas.
E antes, ao soletrar a narração do fato,
Vinda numa local hipócrita e ligeira,
Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefato:
"Morreu!? Pois não caísse! Alguma bebedeira!"
É um poema impressionante em muitos sentidos. A musicalidade, um alexandrino sem muitas variações internas, é o que menos nos chama atenção. A questão, sobretudo, que se coloca é a temática. O evidente desdém de uma elite portuguesa – que se pode dizer de qualquer elite - sobre as classes economicamente inferiores e uma terrível cogitação de atenção das elites para com o povo, pois a única maneira de um burguês – se assim podemos definir – botar minimamente reparo na existência de uma classe inferior é diante do desastre, mesmo assim,cogitando negativamente as possibilidades que causaram tal acidente- sempre negando a humanidade do humilde trabalhador descrito no poema.
Diferentemente, por exemplo, do “Amigo Devotado”, de Oscar Wilde, em que a crítica social é desenvolvida em um ambiente campestre (não perdendo, porém, a atualidade dos questionamentos) a cena do poema é desenvolvida aparentemente em uma cidade grande, com o seu cotidiano perturbado, fazendo com que, enfim, todo o desastrerelatado no poemanos remeta ao nosso próprio tempo, à nossa própria vivência nas atuais metrópoles, especialmente no que se refere à convivência com a desigualdade, transformando-se num um evidente caso de atemporalidade devido ao tom contemporâneo que toma. E, talvez aí, como já citado no início deste pequeno estudo, acima de seus méritos imagéticos e de seu destaque dentro da obra do autor - já que não é o melhor poema de Cesário, claramente -, resida a referência maior sobre esse socialíssimo“Desastre”.