Georg Otte
Um dos poemas aqui reunidos (Sons de sinos) se deve a uma conversa que tive com a Bianka sobre o Fausto de Goethe. São esses “sons dos sinos” que soam exatamente no momento em que Fausto, desesperado, se prepara para tomar a poção venenosa e deixar uma vida, que, segundo ele, não merece esse nome. Procurando em um texto meu, também sobre o Fausto, a palavra “dor”, o mecanismo de busca me apresentou uma série de adjetivos: revelador, desorientador, mediador... Não imaginava que, antes de chegar à própria palavra dor, ela já estivesse contida numa série de “ocorrências” – e que um programa de computador tambémpudesse ser “revelador”, ao ponto de apresentar uma lista, que, por si só, apresenta o começo de um poema.
Lamento não ser linguista – não daqueles que se livram da questão dizendo que se trata de uma “mera coincidência”, mas daqueles que, como Walter Benjamin, acreditam na magia da língua e descobrem nesse sufixo vestígios de uma dor que qualquer verbo pode causar quando se transforma em adjetivo. Trata-se de um adjetivo que não apenas fala de uma ação, mas do impacto de um ato, seja ele desorientador, seja mediador. “Mera coincidência”, claro, mas quem disse que as coincidências, ao incidir, não causam a dor necessária para iniciar reflexões pertinentes?
Chego à dor, nas palavras do próprio Fausto:
O fio do pensamento rebentou.
Tenho asco de todo saber.
...
Que a dor e o prazer
O sucesso e o desgosto
Se revezem o quanto puderem –
É sem trégua que o homem se move.
(v. 1748 – 1759)
O quiasmo da dor e do prazer, por um lado, e do sucesso e do desgosto, por outro, conforme o manual, tem um caráter antitético. Mas ele também aponta para um revezamento dos seus componentes, que são intercambiáveis e não se excluem. São esses altos e baixos que Fausto procura e a verdadeira oposição não é aquela entre as vicissitudes da vida, mas aquela entre a vida e o “asco do saber”, do saber sem sabor. Fugindo do asco, Fausto deseja a dor para, finalmente, retornar à vida, essa “árvore verde”, que, como Mefistófeles explica, se opõe à “teoria cinzenta” do saber.
É nesse sentido também que os poemas de Bianka de Andrade vão à procura da dor, fugindo da mediocridade da vidinha qualquer de um “mundo quadrado” (Aporia) que se esgota em sua funcionalidade. Por mais que o primeiro poema (Sangue) lembre atos de automutilação – uma impressão que fica ainda reforçada em Amanheceu–, a possível relação com o Faustodeixa claro que, por trás do aparente transtorno psicológico, há o mal de uma modernidade funcionalizada, o “mal-estar na cultura”, como diria Freud, causado pela repressão não apenas da sexualidade, mas da sensibilidade física em geral.
As totalidades fechadas, ao quebrá-las, são desmascaradas como “pretensiosas unidades” (Dispersão), deixando cacos que fazem o corpo sangrar. Esse quadro da destruição e dos ferimentos é desejado por quem procura se comunicar com este mundo das paredes lisas e fechadas. Para que o corpo e o mundo se tornem dois espaços que se comunicam, é necessário quebrar as unidades fechadas e cortar o corpo com os cacos. Só então aparecem os sinais da convergência, mesmo que seja apenas por um momento (amor Ideal) – ou da fartura, tampouco duradoura, pois ela carrega em si a fratura (Fartura).
Felizmente, o corpo do poema pode fazer as vezes do nosso corpo e sua porosidade perturbadora pode substituir os ferimentos. Não é mais o “eu lírico” que se expressa através do poema, mas é o poema-eu que, graças às suas feridas, se abre ao mundo, ao contrário daquela moça melancólica do “coração farpado” (Farpado), que, com sua blindagem perfeita, se mantém à distânciaem relaçãoao mundo e aos outros. Ela até deve participar das conversações, mas não se comunica, não se abre transformando o próprio corpo em um vaso comunicante.
Fartura e fratura – o que, a primeira vista pode aparecer um jogo de palavras – é um jogo muito real com as dores do excesso e da falta, do enjoo e da ferida aberta, os extremos que têm que percorrer para voltar a si, para ser (Ser). Não posso deixar de evocar novamente o Fausto, tanto do primeiro monólogo, quando diz estar farto da vida de erudito, quanto do momento em que se mistura ao povo e assiste ao despertar da primavera: “Aqui sou homem, aqui o posso ser.” São os sinos (Sons de sinos) que o fizeram desistir do suicídio, não por alguma mensagem religiosa, mas pela ação do que Proust denominava de “memória involuntária”.
Para ser humano, o ser humano não pode permanecer no estado vegetativo, nem fugir para as alturas cinzentas da erudição, mas tem que saborear as margens de uma vida multifacetada e experimentar as suas dores (Ambivalência). A surpreendente variedade formal dos poemas de Bianka não deixa dúvida de que o prazer de experimentar está onipresente.
Georg Otte é Professor Associado nas áreas de Língua e Literatura Alemãs e Literatura Comparada na Faculdade de Letras da UFMG. É doutor em Literatura Comparada com uma tese sobre Walter Benjamin, tendo publicado vários trabalhos sobre o autor.