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"Na ausência de espelhos..." - Vinicius Bandera

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Clara Lieu


O TETO

O teto vinha baixando. Durante muito tempo não percebera. Depois, começou a sentir que tinha menos espaço acima de sua cabeça. Pulou, pulou, pulou... Deu vários saltos, o mais alto que podia. Não conseguia alcançar o teto com as mãos. Ainda havia muita distância, mas ele tinha uma intuição de que algum espaço se  encolhera. Cinco anos depois, ao dar os seus saltos de sempre, verificou que indubitavelmente ele vinha sendo comprimido. Malgrado tal convicção, não se deixou desesperar, considerando que ainda tinha muito ar para cima. Um dia, olhando o firmamento de seu cubículo, pois era o que lhe restava  fazer na ausência de janelas, teve uma ideia que passaria a controlar  sua existência. Acabara de cozinhar no fogão de lenha. As brasas ainda estavam acesas, à mercê da morte inexorável. Pegou uma  que se transformara em carvão. Era o momento de dar os saltos cotidianos. O carvão na mão direita, a cada pulo uma marca aonde mais longe pudesse riscar. O teto ainda era uma meta inalcançável. Mas as marcas ficaram nas quatro paredes. Então conseguira imprimir um referencial matemático ao qual não poderia haver contestação. As marcas equivaliam à descoberta da luneta por Galileu. Se elas fossem ultrapassadas, seria uma indicação matemática – e parece não haver nada mais claro na natureza do que este saber – de que ele estava certo. Não saberia dizer quanto tempo se passou, mas um dia percebeu que algumas marcas, as mais altas, não mais estavam onde as colocara. Um novo rebaixamento as cobrira. Ainda podia pular sem tocar o teto. Com o carvão, cujo estoque de lenha estava acabando, fez novos riscos. Encontrara, com esse método, o relógio que lhe faltava. Estava, assim, marcando a sua existência. Na ausência de espelhos, ou algo em que se pudesse refletir, não podia verificar o tempo em seu rosto. No entanto, no corpo e na alma começaram a aparecer marcas, que, ao contrário das de carvão, não saíam. Mais e mais ficavam. Iam-no entrevando. Curvavam-no. Já não podia dar aqueles saltos. Mesmo assim marcava como podia. Subia na mesa e rondava as paredes a deixar sinais de sua vida. Um dia, não sabe quando, mas foi um marco em sua trajetória, um grande acontecimento: quase tocou o teto, de cima da mesa, erguido sobre a ponta dos pés. Foi uma espécie de terra à vista dos antigos conquistadores. A sorte estava lançada, como diria César. Não havia mais como escapar. Mas nunca houve tal possibilidade. Deixou de fazer marcas quando compreendeu a total inutilidade dessa sua iniciativa, tomada em um passado no qual ainda nutria alguma esperança. Coincidiu que por essa época não mais lhe colocavam lenha. Passaram a deixar em uma vasilha a comida para dois dias, três... Ele já não tinha o trabalho de fazer a comida. Também já não estava com forças para mais nada nos últimos tempos. Não raramente, nem tocava na vasilha. Às vezes, deixavam-na e a levavam sem que ele soubesse o que continha dentro. Não ficou nem um pouco surpreso quando um dia, após grande esforço, subiu à mesa e tocou o teto com a cabeça. Esse grande feito poderia ser comemorado em grande estilo. Conseguira algo por que se empenhara durante toda a vida. Desceu e deitou-se. Na cama ficou por muito tempo. Não tinha como precisar se três, quatro, cinco... ou quantos dias. As suas marcas de carvão somente lhe davam indicação de um extenso período de tempo: anos, décadas. Nem elas mais havia. O quarto foi ficando escuro à medida  que o teto descia, porquanto era da parte de cima que brotavam raios luminosos, através de alguns orifícios nas paredes. A única luminosidade que sobrara vinha por onde introduziam a comida.


Vinicius Bandera: Pós-doutorando em  História Social (USP). Doutorado em Sociologia (UFRJ). Mestrado em Ciência Política (UNICAMP). Autor do livro Liberalismo e cientificismo: conflito de paradigmas na proteção /correção de menores na virada do século XIX para o XX (Ed. UFRJ, no prelo). Autor de 5 contos publicados e 43 não publicados. Autor de 2 romances não publicados.




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