Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Poema de Roberto Bozzetti

$
0
0

OS MELHORES AMIGOS

Por que cuidarei do cão?
O que fará ele por mim
quando de fato eu precisar?

Por que há de seguir meus passos
que não seja por seguir-me
a ver-me exasperar? 

E o que fará ele por mim quando
por fim me faltar o ar, quando
me vierem buscar aqueles

que me levam daqui longe
a um lugar onde a noite
é  curva do silêncio,  a não ser

pelo adejo  e os  passos miúdos
de pequenas mandíbulas
a me devorarem as órbitas?

Sem sentido e destino, meus
dentes sorrirão chocalhos guizos
e grilos insones – mas e o cão?

O que fará por mim este cão?
Por que devo alimentá-lo?
Por que lhe dar um nome
e chamá-lo junto a mim
meu fedido companheiro
meu querido companheiro?
E tê-lo  em seu ir e vir
sob meus portais?

Por acaso a sua cauda
a me espanar me daria
alguma alegria peregrina
e infantil? Por quê?

Que sentido faria o cão
que não me levaria consigo
se da noite para o dia
enriquecesse? Que amigo
seria capaz de jurar que ele
fosse?  Fosse capaz de me
abrigar, fosse para onde
fosse, e o que dele seria matéria
da concretude a que se chama
amizade?  Nada fará por
mim este cão, não subirá
comigo no trem que cruzará
o pantanal ou os Andes
ou no vapor que
descerá o Mississipi

E quando  pelo ânus
meu corpo fendido
for suspenso por ganchos
rente às paredes do ergástulo
gotejante, o que fará
o estúpido animal
que não seja sacudir
o sorriso felpudo
a meu carrasco?
 
(ou à linda mulher que passe
e perfumosa seja, seja
lírio ou açucena, sonhando
obscenidades canhestras)

A todos sorrirá este cão
e muito se comprazerá
a inalar o odor de passos iguais
pelas calçadas encardidas
de Copacabana ou Tókio
 
Quem diz que nessa hora
se lembrará ele de mim?
Ou ao soltar seu rebanho
na campina verdejante?
Ou a voar em seus jatos,
inspecionando suas reses?
Ou a desprezar alertas
e devastar os mananciais?
 
É hora de voltar-lhe as costas
ignorá-lo, partir, deixá-lo
aqui por estas plagas,
que se vire nos monturos
beba o chorume dos latões,
cuspo entre dentes
nada lhe digo, resoluto
olho seu terno semblante
a luz de seu olhar tão lânguido
e doce, melhor não, melhor será
tomá-lo ainda uma vez
em mãos, assoviar-lhe,
sussurrar-lhe o nome
carinhosamente, e só então
enforcá-lo, como se diz
que se deve fazer
a um cachorro.


Ilustração de Talarico

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Trending Articles