OS MELHORES AMIGOS
Por que cuidarei do cão?
O que fará ele por mimPor que cuidarei do cão?
quando de fato eu precisar?
Por que há de seguir meus passos
que não seja por seguir-mea ver-me exasperar?
E o que fará ele por mim quando
por fim me faltar o ar, quando me vierem buscar aqueles
que me levam daqui longe
a um lugar onde a noiteé curva do silêncio, a não ser
pelo adejo e os passos miúdos
de pequenas mandíbulas a me devorarem as órbitas?
Sem sentido e destino, meus
dentes sorrirão chocalhos guizose grilos insones – mas e o cão?
O que fará por mim este cão?
Por que devo alimentá-lo?Por que lhe dar um nome
e chamá-lo junto a mim
meu fedido companheiro
meu querido companheiro?
E tê-lo em seu ir e vir
sob meus portais?
Por acaso a sua cauda
a me espanar me dariaalguma alegria peregrina
e infantil? Por quê?
Que sentido faria o cão
que não me levaria consigose da noite para o dia
enriquecesse? Que amigo
seria capaz de jurar que ele
fosse? Fosse capaz de me
abrigar, fosse para onde
fosse, e o que dele seria matéria
da concretude a que se chama
amizade? Nada fará por
mim este cão, não subirá
comigo no trem que cruzará
o pantanal ou os Andes
ou no vapor que
descerá o Mississipi
E quando pelo ânus
meu corpo fendido for suspenso por ganchos
rente às paredes do ergástulo
gotejante, o que fará
o estúpido animal
que não seja sacudir
o sorriso felpudo
a meu carrasco?
(ou à linda mulher que passe
e perfumosa seja, seja
lírio ou açucena, sonhando
obscenidades canhestras)
A todos sorrirá este cão
e muito se comprazeráa inalar o odor de passos iguais
pelas calçadas encardidas
de Copacabana ou Tókio
Quem diz que nessa hora
se lembrará ele de mim?
Ou ao soltar seu rebanho
na campina verdejante?
Ou a voar em seus jatos,
inspecionando suas reses?
Ou a desprezar alertas
e devastar os mananciais?
É hora de voltar-lhe as costas
ignorá-lo, partir, deixá-lo
aqui por estas plagas,
que se vire nos monturos
beba o chorume dos latões,
cuspo entre dentes
nada lhe digo, resoluto
olho seu terno semblante
a luz de seu olhar tão lânguido
e doce, melhor não, melhor será
tomá-lo ainda uma vez
em mãos, assoviar-lhe,
sussurrar-lhe o nome
carinhosamente, e só então
enforcá-lo, como se diz
que se deve fazer
a um cachorro.
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Ilustração de Talarico |