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Algumas Semelhanças entre Cruz e Sousa e Antero de Quental

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As perspectivas comparativas comuns, diante dos nomes de Cruz e Sousa (1861-1898) e do português Antero de Quental (1842-1891), trazem-nos, quase sempre, a confrontação da poesia cruziana com a do francês Baudelaire, e a de Antero com a de Florbela Espanca, a grande poetisa portuguesa. São comparações válidas, por certo óbvias, já que Baudelaire, assim como Mallarmé e Verlaine, tiveram indescritível influência literária e ideológica para a decisão de Cruz e Sousa optar pelo Simbolismo em detrimento ao Parnasianismo, muito mais conveniente a quem queria a glória literária; Florbela Espanca, apesar de ter sido uma poeta de amor melhor que Quental, tem os mesmos conflitos do Ideal – o Bem procurado que nunca é alcançado - e, formalmente, escreveu sonetos de estrutura e ritmo quase semelhantes a Antero – mas tais comparações não abrangem, é possível, uma das mais pulsantes confluências poéticas e filosóficas da literatura em Português. Antero de Quental e Cruz e Sousa compartilharam ideais políticos, uma constante procura pelos mistérios do ser e da existência – numa metafísica que será a grande tonalidade do final da vida de ambos os poetas -, ritmos, renúncias, mas, sobretudo, o posto de melhores poetas de seus tempos.

(Foto: Antero de Quental, em 1887;
Créditos: Wikipédia)
Cruz e Sousa e Antero de Quental fizeram parte, em primeira análise, de movimentos literários diferentes. Se formos analisar as obras iniciais de Quental, veremos um romantismo ingênuo, ao qual o próprio chamaria posteriormente de "Heine de segunda categoria" (em Sonetos Completos e Poemas Escolhidos; Edições Ouro, organizado por Manuel Bandeira). A partir de suas "Odes Modernas" (que também seriam rejeitadas pelo autor, por causa de seu tom excessivamente épico), começamos a ver momentos de absoluta genialidade. Inspiradas pelos ideais socialistas à Proudhon, são cânticos longos e cheios de subjetividades, apesar do tom grandioso. Mas foi em seus "Sonetos Completos" que o seu feitio essencial e mais maduro apareceu: o do poeta metafísico. Cruz e Sousa, por sua vez, fez parte da fase ortodoxa do Simbolismo no Brasil, sendo que, por exemplo, o seu primeiro livro de versos no estilo – Broquéis -, lançado em 1893, lembra-nos muito mais o estilo Decadentista Francês do que o Simbolismo singular – muitas vezes filosófico – que foi desenvolvido em suas obras seguintes.

Foi Antero de Quental, de certa forma, um poeta da morte, como definiu Manuel Bandeira. Mas, antes de tudo, um poeta metafísico, um perscrutador da "essência das cousas". Segundo o próprio Bandeira, essa busca pelo universo que o cercava o levou a uma degradação do ser que se tornou irreversível. Foi nessa época - em que ele ficava horas deitado em "cruel divagação" - a primavera criativa em que ele escreveu obras-primas da literatura em Português, como nesse magnífico "Lacrimae Rerum":

LACRIMAE RERUM - Antero de Quental

(A Tommaso Cannizzaro)

Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,
Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Confidente e intérprete da Sorte!

Aonde vão teus sóis, como coorte
De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o homem porque vaga desolado
E em vão busca a certeza, que o conforte?

Mas, na pompa de imenso funeral,
Muda, a noite, sinistra e triunfal,
Passa volvendo as horas vagarosas...

É tudo, em torno a mim, dúvida e luto;
E, perdido num sonho imenso, escuto
O suspiro das cousas tenebrosas...


Nesse soneto, assim como em outros do autor (por exemplo, em "Contemplação"), Antero de Quental mostra-se um exímio poeta metafísico, que às vezes deixa de lado o poeta para cantar o filósofo que é o seu todo em suas correspondências e em sua autobiografia. Tomemos, por exemplo, um trecho de uma carta sua para Anselmo de Andrade:

"Ou o Universo é o delírio dum demônio, ébrio de sua maldade; ou para além do extremo arco da ponte da vida nos espera o seio vasto duma Bondade, a quem não esquece um ai, um suspiro só... Sem este equilíbrio de além-túmulo o mundo moral inclina-se sob o peso de suas ruínas acumuladas de séculos, e tomba e rola desamparado nos abismos do nada! Quando num prato da balança eterna se lança toda essa massa espantosa das desgraças humanas, tamanho peso só se compensa, pondo no outro o amor infinito - Deus. Sim, Deus! Espírito, Força, Princípio, Essência, Jeová ou Brama, que me importa um nome? Eu chamo a Deus justiça! Na queda e triste ruína das ilusões antigas, das velhas crenças das gerações, fica-nos eterna essa grande palavra. - E que está gravada no coração. Só arrancando-o a poderão tirar de lá. E nem assim. No deserto das alturas a água que o empolgasse leria justiça nas carnes palpitantes... e cairia assombrada!"

Há de se dizer que Antero de Quental divagava Deus de uma forma extremamente complexa; às vezes, dando a Ele um feitio humano e concedendo à mentalidade divina os mesmos questionamentos de um homem, como, por exemplo, à inquietude de buscar-se a si e não encontrar-se, mas também concebendo a Deus o poder de saber todo o destino da humanidade (em Disputa em Família). Mas, constantemente, a figura de um Deus católico torna aos versos de Quental. Ele próprio chegou a declarar que "pouco a pouco, convencia-se mais com o Catolicismo", mas com algumas ressalvas, pois o seu pensamento ia ao encontro de um panteísmo ao qual a crença católica não abraça. No caso de uma face humana de Deus, eis Ignotus:

IGNOTUS – Antero de Quental

(A Salomão Sáragga)

Onde te escondes? Eis que em vão clamamos,
Suspirando e erguendo as mãos em vão!
Já a voz enrouquece e o coração
Está cansado — e já desesperamos...

Por céu, por mar e terras procuramos
O Espírito que enche a solidão,
E só a própria voz na imensidão
Fatigada nos volve... e não te achamos!

Céus e terra, clamai, aonde? aonde? —
Mas o Espírito antigo só responde,
Em tom de grande tédio e de pesar:

Não vos queixeis, ó filhos da ansiedade,
Que eu mesmo, desde toda a eternidade,
Também me busco a mim... sem me encontrar!

(Foto: Cruz e Sousa, em sua juventude;
Créditos: Sacrário das Plangências)
E é a partir desses pontos que começarei a comparar Antero a Cruz e Sousa. O Dante Negro, como Cruz era chamado por seus colegas, segundo Andrade Muricy, em seu Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, foi leitor de Antero, com quem "se identificava com o espírito rebelde". É compreensível, pois, essa observação de Muricy, já que Cruz e Sousa era, assim como Quental, um socialista - apesar de ter uma visão diferente do português acerca da importância da política na Arte. Quental não se detinha de utilizar claramente argumentos políticos em sua obra; Cruz e Sousa, apesar de ter poemas como "Escravocratas" ou o pungente "Emparedado", cria que uma página de arte era pura demais para que se pusesse a política sem a depuração dos símbolos e dos mistérios nela.

Mas, tal qual Antero, Cruz e Sousa, acima de tudo, foi um poeta metafísico, um perscrutador do ser. Ivan Teixeira, em seu prefácio para a edição fac-similar de Faróis da Ateliê Editoral (1998), colocou a metafísica de Cruz e Sousa como "uma elevada concentração de significado poético na investigação existencial do indivíduo".
No sentido rítmico, Cruz e Sousa foi um poeta maior que Antero de Quental e, em uma análise simples, isso se deve por um deságue natural da estética simbolista em comparação ao soneto clássico que era praticado pelo poeta português. Bastava a Quental o decassílabo e um ritmo sereno, equilibradíssimo; a Cruz e Sousa, cuja métrica também se baseava em decassílabos nos sonetos (mas que, de quando em quando, perambulava em alexandrinos), o tom declamatório e alucinatório das palavras eram tão importantes quanto o sentido stricto sensu delas.

Acerca da metafísica, que é a grande base convergente com a poética de Antero de Quental, há duas obras de Cruz e Sousa – ambas em Últimos Sonetos (1905)- que atingem níveis assombrosos de análise e investigação desse “ser que é ser”, o indivíduo em si, sendo um deles (o “Sorriso Interior”), que é, sem dúvida, uma das mais nobres criações da poesia brasileira Ei-los:

SORRISO INTERIOR - Cruz e Sousa

O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo esse brasão augusto
Do grande amor, da nobre fé tranquila.

Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem ânsias e sem custo...
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!


Acerca desse belo soneto – que foi o último escrito por Cruz e Sousa, já em vésperas de morte -, vale transcrever o que, para o crítico e poeta pós-simbolista Tasso da Silveira (em ensaio de nome O Ser que é Ser), apontava que a grande característica dos Simbolistas é buscar a transcendência e a metafísica:

“O que, antes de tudo, caracteriza os simbolistas, é que eles, instintivamente, inconscientemente, muitas vezes, abandonam o terreno da concepção naturalista da vida. Começam a pressentir o transcendente. E aguilhoados pela necessidade nascente de conhecimento do sentido último da vida, iniciaram as sondagens da sensibilidade e da inteligência no seio do mistério (…).”

Ou seja, assim como para Antero de Quental o que importará, em grande parte, são essas “sondagens da sensibilidade e da inteligência no seio do mistério”, para os Simbolistas – principalmente Cruz e Sousa, em sua derradeira fase - também. Não à toa, contemporaneamente, Quental tem sido chamado de “pré-simbolista” por alguns acadêmicos. Quental só não foi um Simbolista porque o seu símbolo não continha uma alegoria tácita, sugestiva, que beira o infinito interpretativo. Conservadorismo formal por conservadorismo formal, o paranaense Silveira Neto, em seus sonetos, foi um dos mais clássicos no Brasil; Augusto dos Anjos, idem. Alphonsus de Guimaraens, com a sua preferência pela métrica ímpar e vária (à lá Verlaine) e com ocasionais assonâncias, perto de um Quental, foi um revolucionário estético. Mas isso só expõe como, dentro do Simbolismo – mesmo o ortodoxo ou um pós-simbolismo, que é o caso de Augusto dos Anjos -, a forma não foi determinante para a posição do autor no movimento, mas, sim, o símbolo e a sua profundidade alegórica, musical, sugestiva, declamatória, etc..

Vejamos o outro soneto referenciado de Cruz e Sousa com grande perspectiva metafísica:
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CAVADOR DO INFINITO - Cruz e Sousa


Com a lâmpada do Sonho desce aflito
E sobe aos mundos mais imponderáveis,
Vai abafando as queixas implacáveis,
Da alma o profundo e soluçado grito.

Ânsias, Desejos, tudo a fogo escrito
Sente, em redor, nos astros inefáveis.
Cava nas fundas eras insondáveis
O cavador do trágico Infinito.

E quanto mais pelo Infinito cava
mais o Infinito se transforma em lava
E o cavador se perde nas distâncias...

Alto levanta a lâmpada do Sonho.
E como seu vulto pálido e tristonho
Cava os abismos das eternas ânsias!


Para Cruz e Sousa, a religião católica estava envelhecida - pensamento congruente ao de Quental -, e não era suficiente para a sua sede de absoluto. Tanto ele quanto Antero encontraram no Budismo algumas das respostas para essa ânsia. Daí a utilização, em ambos os autores, de termos como "Nirvanismo", "Nirvana" ou até, em Cruz e Sousa, de um transcendente "êxtase búdico". Posso afirmar que, se a ânsia de infinito, se a sede pela essência universal eram características do Simbolismo, também o eram da fase madura de Antero de Quental. Quem o negará neste soneto?

NIRVANA - Antero de Quental

Para além do Universo luminoso,
Creio de formas, de rumor, de lido,
De forças, de desejos e de vida,
Abre-se como um vácuo tenebroso.

A onda desse mar tumultuoso
Vem ali expirar, esmaecida...
Numa imobilidade indefinida
Termina ali o ser, inerte, ocioso...

E quando o pensamento, assim absorto,
Emerge a custo desse mundo morto
E torna a olhar as cousas naturais,

À bela luz da vida, ampla, infinita,
Só vê com tédio, em tudo quanto fita,
A ilusão e o vazio universais.

Antero, cantor da morte, desejava a aniquilação do ser, enquanto Cruz e Sousa ansiava o ser em sua essência, mas em um soneto como "Consolo Amargo" (em Últimos Sonetos), também visualizava como a morte como um "feral letargo" e que, para os vivos, restava o esquecimento - que é, em terra, o consolo amargo. Vejamo-lo:

CONSOLO AMARGO – Cruz e Sousa

Mortos e mortos, tudo vai passando,
Tudo pelos abismos se sumindo...
Enquanto sobre a Terra ficam rindo
Uns, e já outros, pálidos, chorando...

Todos vão trêmulos finalizando,
Para os gelados túmulos partindo,
Descendo ao tremedal eterno, infindo,
Mortos e mortos, num sinistro bando.

Tudo passa espectral e doloroso,
Pulverulentamente nebuloso
Como num sonho, num fatal letargo...

Mas, de quem chora os mortos, entretanto,
O Esquecimento vem e enxuga o pranto,
E é esse apenas o consolo amargo!

Antero de Quental, ao excluir quase que totalmente a temática do tédio causado pela decepção no amor (tema Romântico) e desenvolver a temática do tédio metafísico, por não alcançar as respostas existenciais às quais, talvez, só a morte responderia - um tema recorrente no Simbolismo, aproximou-se da escola de Cruz e Sousa e, consequentemente, influenciou muitos de seus autores. Talvez a fortíssima influência, no Brasil - entre os Simbolistas -, de seu soneto "À Virgem Santíssima" demonstre de certa forma mais concreta esse deságue, inclusive fazendo com que a poética marial – mesmo em poetas anti-clericais – se tornasse comum entre nós.

Em uma perspectiva cogitativa de influências, na França, à ocasião dessa fase mais madura das obras de Quental, o Decadentismo estava criando corpo e fama. Além do mais, As Flores do Mal (1857)já eram lidas na Europa e já tinham grande frêmito popular (e polêmico) por lá quando, nove anos depois do lançamento da obra de Baudelaire, o poeta português morou em Paris. Não há por que descrer que Quental tenha sido influenciado minimamente pela poética Decadista, ao menos pelos seus temas anti-naturalistas, anti-positivistas... Há de se lembrar que Eugênio de Castro e Antônio Nobre, dois dos maiores representantes do Simbolismo lusitano, só lançaram as suas obras simbolistas na aurora da década de 1890; , de Antônio Nobre, em 1892; Oaristos, de Eugênio de Castro, em 1890. Ou seja, em Portugal, Antero foi um precursor do pensamento simbolista, mas, evidentemente, como já deixei claro, não fazendo parte da escola literária.

E, finalizando, acerca de uma postura muito significativa de ambos: segundo Nestor Vítor, maior amigo do simbolista catarinense, Cruz e Sousa só acreditava em poetas quevivessem a poesia e que a encarassem como "um monge enclausurado em seu ofício". Quem mais, portanto, além de Antero, para ocupar esse posto de "poeta de fato" - à visão do Cisne Negro? Como Antero cantou, talvez em um dos momentos em que os seus espíritos poéticos mais se afluíram, mesmo o mar - o mar que também foi uma das grandes musas espirituais de Cruz e Sousa - não era tão somente um vaivém das águas:

OCEANO NOX – Antero de Quental

(A A. de Azevedo Castelo Branco)

Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo dum pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das cousas, vagamente...

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais? -

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...

E somente quem tem para si que o sentimento poético eleva o espírito para as coisas que o cotidiano nos oculta sob a marcha dos segundos é que, diante de um mar - que para muitos, não passa dessa terrestre característica -, busca o mistério universal que inquietou toda uma geração literária. 




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