Dos casos mais flagrantes de esquecimento de poetas com estética circundantes ao Simbolismo, o do carioca Pádua de Almeida surge-nos de forma fulgurante. Dono de um dos mais sociais cantos de sua época (o seu Instante Universal, de 1934, chegou a ser traduzido para o espanhol, saindo em 1936, em Buenos Aires, traduzido por Lillo Catalán, sob o título de El Instante Universal), também foi um exímio poeta lírico, dono de um estro elegante, ao qual Andrade Muricy definiria de “impressionista”, principalmente pela fluidez e vaga subjetividade das sensoriais definições de sua poesia. Nascido em 1899, não consegui averiguar a data de morte do autor.
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(O Luar de Outros Caminhos assinado por Pádua de Almeida; Créditos: Cardoso Tardelli) |
Das duas obras de conteúdo lírico do autor, O Luar de Outros Caminhos, lançado em 1961 foi a mais importante. É uma obra pequenina – não chegando a cem páginas de versos – mas de grandiosa importância literária. Toda ela é de uma sensibilidade ímpar e de uma visão fantasiosa embebida em certas melodias que só grandes poetas concebem. Pádua de Almeida, sim, foi um grande poeta. Comprove-se isso por meio do número de críticas positivas sobre as outras obras do autor presentes na edição do Luar de Outros Caminhos: trinta análises de grandes pensadores e críticos de sua época – de Tasso da Silveira a Andrade Muricy, Nestor Vítor, Murillo Araújo, Júlio Dantas e, naturalmente (já que a sua poesia foi traduzida e divulgada na Europa), os estrangeiros Anibal Vaz de Melo e Giuseppe Alpi.
A sua forma, que é definitivamente moderna, não nega também a influência clássica de que inevitavelmente a sua poesia bebeu. Não foi como o seu irmão – Moacir de Almeida – que em seus Gritos Bárbaros perambulou entre a trava parnasiana e certa liberdade simbolista, quase sempre em finos sonetos ou em alexandrinos quartetos; apesar de se utilizar dos sonetos com constância, Pádua tinha uma grande variedade de forma e, quando não raramente, utilizava-se de versos assonantes, e com uma musicalidade vibrante.
A influência simbolista perambula claramente na obra de Pádua de Almeida. Em seu livro de estreia, Minha Sombra (1929), há um taciturno canto que faz jus aos grandes imaginistas da morte de nossa literatura. Ei-lo:
CANTO À MORTE (em Minha Sombra)
Ó Cidade da Morte!
Quem há de, sendo vivo, ao teu mistério aporte
com sua nau, Cidade Horrenda?
No entanto, eu te venci, burgo da Morte.
Com minhas longas naus, as minhas doze harpias,
eu, o corsário das dores frias,
cheguei às tuas torres desgrenhadas,
emaranhadas
e torturadas
como uma cabeleira às ventanias.
E os teus milhões de torres ululantes,
vortilhantes
e crepitantes,
fizeram-se minúsculas, tranquilas,
em tão serenas e inclinadas filas
que as venci quase inocentemente,
como a lua que beija o sol ao fim do poente.
Subi às tuas rocas altas,
da altura do Silêncio e do Destino:
E, ah! nos teus becos retorcidos, quantas maltas
de cães iam chorando ao lume vespertino!
Quantos mendigos iam blasfemando!
E os teus lampiões de azeite... e, em cada rua, um sino
gretado e morno e um crente a orar, de quando em quando...
Depois, a noite te envolveu, burgo da Morte...
Então, deixei-te... Há, pois, quem te compreenda,
há que, sorrindo, ao teu mistério aporte:
sou eu, Cidade Horrenda,
ó Cidade da Morte!
Muito curiosa é a constante presença das letras maiúsculas nesse poema, muito comum ao Simbolismo. Considerado por Andrade Muricy um “pós-simbolista”, Pádua de Almeida, nesse “Canto à Morte”, reúne alguns temas – como a superstição e a morte – que foram caríssimos ao movimento de Cruz e Sousa.
Há, na poesia do autor do Luar de Outros Caminhos, um grande sentido filosófico, atemporal, daí, talvez, o grande frenesi acerca de seu nome à medida que as suas publicações vinham a lume. Era de uma poesia filosófica diferente de Raul de Leoni – o grande sereno, talvez o mais importante estoicista de nossos versos -, pois em Pádua pulsava a tragédia contemporânea, as cimas da solidão dos tempos das grandes metrópoles. Vejamos um exemplo:
CERTOS SILÊNCIOS (no Luar de Outros Caminhos)
Certos silêncios... O silêncio
das vidraças que cismam, quando a noite
desce aos beirais antigos;
das cercas tristes que penderam;
do chão que os vagos pés das bailarinas
tocaram;
das mãos dos órfãos pequeninos, que se estendem
para as mães invisíveis,
num frio adeus;
das penas de andorinhas
soltas ao vento;
dos tanques esquecidos,
entre os portões que nunca mais se abriram, nunca mais;
das cordas solitárias dos navios;
das candeias que, outrora, iluminaram
os corredores
dos hospitais e dos museus...
...dos lances das escadas
que se gastaram e parecem
revoadas de asas mortas de granito...
… dos crucifixos e das velas dos altares
diante dos quais apenas se curvou, durante séculos,
o manto retorcido
dos fariseus...
...das balanças imóveis;
dos alfarrábios que ninguém consulta;
dos lajedos que dormem nos conventos;
dos relógios que param;
das salas de aula abandonadas, entre os muros
dos velhos ateneus;
das rodas imprestáveis e dos sinos
atirados a um canto...
Eu sinto um coração nesses silêncios...
Eles têm vida, além do mundo...
uma vida sutil... como a de Deus...
A poesia de Pádua de Almeida tem, por vezes, o alcance ilusional de alguns pintores surrealistas. Não raramente, nos versos de Pádua nos deparamos com voos imagéticos que vão muito além de uma realidade empírica, como, por exemplo, nos iniciais versos de “Ânfora de Luar”:
A tua alma, em sonho,
é uma ânfora de luar que Deus encheu de estrelas.
(…)
Aliás, ao mesmo tempo que a sua poética se aproximava da grande criação mental, de grandes alegorias quiméricas, aproximava-se também de certa teologia própria, de um certo catolicismo singelo evidenciado, por exemplo, no poema “Ninguém mais Sofreria” - de feição cristã óbvia. E sobre também essa percepção do além, muito comum aos simbolistas (que quando não raramente tinham muitas influências católicas em suas poesias), vejamos um dos seus mais profundos sonetos, cuja musicalidade dá tons de renovação à forma:
SEMENTEIRA DE CÉUS (no Luar de Outros Caminhos)
O Homem, sozinho, é um precipício aberto
para as trevas ou para a claridade.
Turbilhão sem destino, abismo incerto,
que um mar de praias negras cinge e invade.
A própria terra e a própria imensidade
pesam-lhe, em frias solidões, decerto;
e em vez do azul, o azul de Deus, sempre há de
levar nas mãos a areia de um deserto.
Mas, se ele busca a perfeição divina,
além da carne e todas as estrelas,
cada grão dessa areia se ilumina,
e, fecundando, em sonho, a Humanidade,
enche de azul as almas, para erguê-las...
Sementeiras de céus. Eternidade.
À cultura geral das letras no Brasil, Pádua de Almeida deu grande contribuição ao trazer, adaptados ao Português, poemas asiáticos de importante valor. Alphonsus de Guimaraens e Da Costa e Silva já tinham feito o mesmo em alguns de seus livros; no Simbolismo português, destacou-se, para o caso, Camilo Pessanha, que, ao morar em Macau, trabalhou em traduções de poemas chineses (que, infelizmente, perderam-se em grande parte após a morte do poeta). O encantamento pelo verso asiático – principalmente pela melodia excêntrica aos nossos ouvidos latinos -, ambientou uma das áreas de interesse do Simbolismo e de seus deságues contemporâneos. Eis aqui um exemplos das adaptações de Pádua de Almeida, que, no caso, é da poetisa chinesa Pan Tié Tsu:
O LEQUE DE PAN TIE TSU (no Luar de Outros Caminhos)
Aceitai este leque, meu senhor.
É a pobre Pan Tié Tsu quem vos envia:
quando se move docemente,
guarda o silêncio de uma flor.
Talvez que a sua forma e a sua alvura
quase infinita
vos lembrem (que saudade!) a lua-cheia
daquela última noite em que passeamos,
extasiados de amor.
Trazei bem junto ao peito este meu leque triste:
seus eflúvios de sândalo não morrem.
Que ele refresque o vosso pensamento,
nas horas de calor.
Mas, passado o verão,
quando chegar o outono,
a sua imagem leve
será por vós abandonada:
esquecereis o seu frescor.
Lanterna que se queima, asa partida,
a sua alma de seda
se fechará na dor.
E ele terá, então, o meu destino:
o desta humilde Pan Tié Tsu que desprezastes,
ó meu senhor!
Como já dito, o grande destaque da poesia lírica de Pádua de Almeida era a capacidade imaginativa. Um pouco de sua essência criativa residia em uma influência pós-romântica, mas personalíssima. O amor – muitas vezes tratado como impossível carnalmente, mas absolutamente possível emocional e astralmente -, foi um dos temas mais cultuados por Pádua, que tratava do romance com uma leveza espiritual elísia, contemplativamente alegre. Observemos um exemplo:
OS MESMOS PASSOS (no Luar de Outros Caminhos)
Não quero que me fujas de repente,
como a neblina que se esvai pelo ar:
teu vulto em mim sempre há de estar presente,
onde eu viver sempre haverás de estar.
Embora sejas quase inexistente,
pois o teu ser é todo imerso em luar,
fica... fica a meu lado eternamente
e nunca deixes de me iluminar.
Que a tua luz me siga, noite e dia,
e me faça mais puro, como os astros
que, em silêncio, caminham para Deus.
E que, ao ver os teus rastros na ardentia
que ascendes na penumbra dos meus rastros,
eu sonhe que os meus passos vêm dos teus...
A eternização de um instante, a perpetuidade do ultra-sensorial – que foram também características do Simbolismo “ortodoxo” - evidenciam-se nos melhores poemas de Pádua. Ao menos em sua lírica, entre o tempo e o ser há uma certa compreensão, talvez pela influência teológica em sua poesia. De um colorido etéreo, a poesia do autor de Minha Sombraé igualmente de uma finura expressional poucas vezes vista em seus contemporâneos. Eis aqui um de seus sonetos mais sensíveis – e que cingem a temática desse “eterno-momento”:
GESTO INFINO (em Luar de Outros Caminhos)
Teu gesto frio, lânguido, indolente,
- galho de madressilvas orvalhadas
que estremessem no alto das ramadas -
perfumou-me toda a alma, de repente...
E ficou em meu ser, tão suavemente,
tão tranquilo como o ar das madrugadas;
foi um sonho de pétalas molhadas
tremendo à luz, na hora do sol-nascente.
O teu gesto passou, distante e leve,
como o traço de um flóculo de neve
que cai e se desfaz no alvor das geadas.
Mas, para mim, foi longo, foi infindo,
pois minha alma ficou toda florindo,
toda! de madressilvas orvalhadas!
A aparição de “flóculo de neve” e “geadas”, em plena década de 1960, só nos traz a evidente influência do Simbolismo sobre a obra de Pádua de Almeida – além de uma relativa vitória sobre os argumentos positivistas contra o movimento simbolista, à época de seu aparecimento – pois muito se dizia que jamais uma escola literária que escrevesse sobre “neve”, “névoa” e “frio”, em um país tropical (mesmo que saibamos que ele não o seja totalmente!,) teria êxito e longa vida. Eis, entre outras várias, uma resposta.
O poema que encerra O Luar de Outros Caminhos é, segundo Andrade Muricy, “uma das mais belas transubstanciações impressionistas de nossa lírica”. E, de fato, é uma obra de alcance criativo formidável. Em Pádua, a etérea essência é tão real quanto o que é palpável. É um dos poemas mais belos de sua época. Vejamo-lo:
O LUAR DE OUTROS CAMINHOS
Em ti há um luar de outros caminhos
que não se estendem mais,
de caminhos extintos noutros tempos
e que hoje estão dormindo
em regiões imortais.
Caminhos que repousam
nos vales siderais.
As estradas não mais existem sobre a terra.
No entanto, o luar ficou em ti...
Percebi seu clarão naquela noite
em que, de olhos fechados,
eu, sozinho, escrevendo, te senti...
Eu te senti naquele instante
como se Deus baixasse ali.
Naquela noite em que eu te imaginava
sob o azul de outro céu longe do meu,
naquela noite
em que eu fazia uns versos para a tua alma,
ele desceu...
Desceu de um mundo
em que meu sonho se perdeu.
Clareou meus dedos.
As minhas frases veio iluminar...
E, quando terminei o que escrevia,
meu poema em luz se desfizera...
Sobre o papel somente havia luar...
Um luar de outros caminhos
que nunca mais hão de voltar.
Pádua de Almeida ainda publicou, em 1972, Alma, Sangue, Aço (livro de versos sociais), que ganhou o Grande Prêmio de Poesia do Governo da Guanabara. Deixou por publicar contos e crônicas.
O nome de Pádua, mesmo na era da internet, praticamente não é conhecido, sendo raríssimas informações sobre o autor na web. Se alguma há alguma citação, é para colocá-lo como irmão de Moacir de Almeida, ou em meros cadastros eventuais de bibliotecas que tenham os seus livros. Este pequenino estudo – que merece mais o título de amostragem – traz, pela primeira vez, ao ciclo digital alguns dos poemas de Pádua de Almeida, que, em sua época, foi um autor extremamente celebrado. O motivo que levou um poeta tão louvado ao total esquecimento é um tema de pesquisa; e não estamos tratando aqui de uma arte feita para ser efêmera, à moda de um gosto breve e raso; tratamos de uma poesia de alta qualidade, com feições sociais, líricas, pós-simbolistas, impressionistas, e com uma tonalidade pitoresca raramente vista! Que se faça justiça, de agora em diante, então, à produção poética desse autor do imortal Luar de Outros Caminhos.