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O homem inacabado - 5 poemas de Donizete Galvão

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Tango


Tens aqui
o oratório, os sacrários
de minúsculas pedras
escolhidas no leito do rio.

Tens aqui
o âmbar, as pratas
dos amuletos
comprados nos antiquários.

Tens aqui
os livros, as letras
daquelas músicas
ouvidas na madrugada.

Tens aqui
minha carne, os vestígios
dos anos insalubres
gastos em minha companhia.



Saturação

No círculo que a xícara de café
deixa desenhado no pires,
o grão amargo do equívoco.
O olhar preso, a vida presa.
Ânsia que confrange os ossos.
Ninguém atura o risco do cerco.
Ninguém sai dele de mãos vazias.



Night windows
                        
O quarto está deserto.
Uma das janelas está aberta.
O vento suga a cortina branca para fora da casa.
Alguém está por um fio.
Alguém aposta sua última ficha.
Um corpo cairá no negrume da noite.



A preparação do próximo dia

                                             
O próximo dia,
ainda que não esteja pronto,
já lateja nas têmporas
depois do vinho de domingo.
Sua saturação de ruídos
antecipa-se naquelas vozes
que vazam das tvs dos vizinhos.
Mesmo que seu nódulo
de sólida amargura
ainda não esteja concluído,
o ganir dos cães na noite
anuncia suas dilatações.
Prova que, embora indesejada,
a segunda-feira virá
nos cegar como havia prometido.



Urge to going

                         
Numa segunda-feira de abril,
sem sombra de nuvens,
o sol 
a queimar a fronte,
você desiste de caminhar nas ruas
e busca refúgio no quarto
com o ventilador ligado ao máximo.
Esperança de chuva no horizonte.
O verão insiste em sua permanência.
Não há trabalho, amigos ou planos.
Só a “inexprimível tristeza das coisas”.
Você busca consolo na voz de Joni Mitchell,
na lembrança de um tempo
em que as canções faziam sentido
e os sonhos mentiam 
que iam ganhar altitude.
Embora ninguém note o esforço,
como é trabalhoso permanecer à tona,
quando tudo na cadeia dos dias
aponta a hora da partida.



Donizete Galvão nasceu em Borda da Mata, Minas Gerais. Além de poeta, é jornalista e publicitário. Publicou 10 livros, entre poesia e ficção infanto-juvenil: “Azul navalha” (prêmio APCA de autor revelação e indicação para o prêmio Jabuti), “As faces do rio”, “Do silêncio da pedra”, “A carne e o tempo” (indicação ao prêmio Jabuti e prêmio Ciudad de Madrid), “Ruminações”, “Pelo corpo” (em parceria com Ronald Polito), “Mundo mudo” (indicado ao Prêmio Portugal Telecom), “Mania de Bicho”, “O sapo apaixonado” e “O homem inacabado”, finalista do Prêmio Portugal Telecom.




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