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15 FRAGMENTOS DE "ALTAMIRA E ALEXANDRIA", DE IZACYL GUIMARÃES FERREIRA

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1.          


Um animal que sabe e vai morrer,
esse homem quer ficar na eternidade.
Na caverna desenha o que ele vê,
para durar num tempo sem idade.
Mostrando a caça ele prolonga a vida     
e é seu destino pintar Altamira.

O homem, esse animal que sobrevive
na imprecisa memória do futuro,
escreve e guarda o mundo que ele viu,
para fugir do silêncio e do escuro.
Contar a história é preservar a vida,
salvar do incêndio sua Alexandria.


2. 


Caminhar, caminhar e caminhar,
o faro mais atento que o de caça,
os ouvidos no chão para escutar,
os olhos dois farois além da mata
à procura de um pouso por abrigo
para a fuga, quando espreitam inimigos.

Procurar, procurar e procurar 
pelas paragens de guerra o alimento,
dentro do corpo a força elementar
dos músculos no impulso para a frente.
Só há combate e medo pelo mundo
e a vida é curta frente ao breu profundo.


3.


O murmúrio das águas e o cantar
dos pássaros, das feras o rugido,
o trovão sobre os pequenos vagidos
das crias, o assovio pelo ar
entre as folhas, os sussurros da chuva,
tudo isso pede o som humano, turvo

ainda, mas princípio de algo mais,
quase música, para além dos pés
e das mãos trabalhando a pele e a pedra
pelos ecos das grutas, e se esvai
entre as fagulhas das fogueiras altas,
já quase a ponto de tornar-se fala.


7.


O esquecimento é um inimigo à sombra,
pode matar-nos lento, devagar.
Torres altas de outrora são escombros
entre os arquivos mortos, nada mais.
Fotografias e papéis de ontem,
sem importância, sem quando nem onde.

Só se perde da vida o que se esquece
entre as coisas miúdas ou largadas.
E o pouco ou muito, se desaparece,
vai marcando de cinza nosso fado.
O outrora fogo ardente é essa cinza,
um pó sem cor soprando em noite fria.


8.  


A vida transparece no que é morto
e fica na aparência do que é ido.
Porque nada se perde sem socorro,
nada disso perece sem sentido
na hora ou para sempre, porque nada,
nada lembrado com ardor se acaba.

A vida, se é mistério, se é segredo
apenas pouco a pouco desvendado,
vai muito além do visível degredo.
É uma alegria transcendendo a lágrima,
amor infindo pelo tempo afora.
Só teme a vida a perda da memória.


9.


Cavernas, catedrais, a grande arte
monumental é anônima, glória
do homem, quando obscuro reparte  
a herança do trabalho feito e pode,    
na duração da matéria, vencer
a morte pessoal, permanecer.

A permanência, isso pede a vida.
Desfeito o corpo efêmero, um algo 
além da carne e que nos dá sentido
quer ficar. E é por causa dessa alma
coletiva que as mãos de tantas gentes
conservam seu passado e estão presentes.


11.


A mão mostrando o corpo do bisonte
se transforma na mão que escreve a letra.
A mente que transpunha o horizonte,
imaginando interpreta o planeta.
Fosse em desenho do som, densa imagem,
fosse um signo mental, eis a linguagem.

A mão que descrevia agora escreve.
A mente sonhadora agora lê.
O estreito mundo agreste e tão concreto
faz-se o universo aberto que se vê.
A mão e a mente do homem, eis a graça
dessa espécie, de pé domando o espaço.


13.   

     
Vou recompondo as marcas de meus passos.
Vou procurando as linhas ancestrais
em pergaminhos, papiros, murais.
Enquanto os deuses apertam seus laços
vou deixando em palavras o que é meu,
mínimo traço no imenso museu.

Estantes e paredes desta casa
conservam miniaturas pessoais,
uma herança de pedras e cristais
em meu pequeno rio de águas rasas.
Aqui vou protegendo Alexandrias,
reacendendo os fogos de Altamiras.


14.       


A morte teme apenas a memória,
o que parece perder-se no sopro
derradeiro do corpo e sempre volta
à lembrança dos vivos, seu retorno
amoroso saltando dos retratos,
nos ecos abafados das palavras.

A morte teme apenas a revolta
dos fatos e dos nomes que não somem
e retornam, capítulos da história
pequena e pessoal de cada morto,
um resíduo qualquer, qualquer vestígio,
que a morte ronda e espreita os seres vivos.


20.


Na pedra se congela o movimento
mas está solto o golpe, solta a vida.
O homem precisa gravar o momento
na duração anônima do dia.
Nas peles e nas ervas fluviais 
veio deixando a mão o seu sinal.

As marcas do combate e da passagem
se acumulam, são panos e são telas,
películas e fibras da linguagem
nas figuras e letras que revelam:
se o tempo seca o sangue em sua carne,
não seca o mar da alma onde ele arde.


21.


Não é possível enterrar as almas.
Insepultas transitam pelos ares
enquanto nossos corpos se desfazem.
Das covas incapazes de guardá-las
se libertam, e os nomes sobre as lápides
impedem ser deixadas para atrás.

Não é possível esquecer os mortos.
A natureza sempre os traz de volta,
no vento dispersando os restos frágeis,
no mar dos naufrágios, nos fogos fátuos
dos campos santos. Para lembrá-los mais,
fica a beleza da arte funerária.


22.


Se a vida continua mais além,
receba o morto o gozo do perdido,
ouro e caça, riquezas para sempre
suas, entre os prazeres de mil virgens.
Ou outro modo de manter-se vivo,
estendendo-se as margens do destino.

Embora a vida seja sangue e sopro,
haja matéria à mostra, pessoal,
indo com ela à morada final.
Porque é preciso não morrer de todo,
leva-se inteira toda uma bagagem,
bastasse embora preservar imagens.


38.


Todo museu começa em Altamira,
nesse painel infinito, mural
de luz noturna celebrando a vida.
Se a tinta nos retrata num Leonardo    
ou Cèzanne, a caverna é nossa pedra
inaugural, matriz que não se quebra. 

Toda palavra escrita é Alexandria,
infinito papel que não se queima.
Bíblias, Ilíadas, a fé e a queixa
da espécie humana inteira estão aqui.
No texto anônimo ou na assinatura
está gravada a mão da criatura.


47.


A gruta, a estante, a nuvem, um sinal
se eleva e me ilumina : nessa marca
da espécie vai meu rastro pessoal,
vai navegando nossa nova arca. 
Desde o toque das mãos e desde o abraço
avançamos no escuro, passo a passo.

Nos alfabetos e cálculos do ar,
por entre estrelas sobre a vida breve,
mágicas luzes traçam nosso andar.
Nos infinitos zeros e uns se escreve
o rumo em grávidas nuvens à espera,
guardando nosso espírito e matéria.


48.


O xis no chão para indicar a posse,
o xis da cruz, o xis da assinatura :
afirmações do homem frente à morte,
um mínimo sinal da criatura.
Se no começo o verbo era esse risco,
era também a marca de um princípio :

fazer por ser preciso dizer sim
ao não do esquecimento, ao não do nada.
E opondo o sim do sempre ao não do fim,
guardar, porque é da vida ser lembrada.
Pensar Alexandria como exemplo 
e cantar Altamira como um templo.







foto: Joan Miró e Josep Llorens visitando a caverna de Altamita em 1957



*    *    *






Izacyl Guimarães Ferreira (Rio de Janeiro, 1930) é poeta e tradutor. Em 2008, seu livro Discurso urbano (Scortecci, 2007) conquistou o Prêmio ABL de Poesia, da Academia Brasileira de Letras. A seleta mostrada acima é parte de último livro Altamira e Alexandria, lançado esse ano (2013). Leia mais poemas do autor aquiaqui e aquiEmail.






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