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Marc Chagall |
Amor
Amor, pedra selvagem. Ou um nome – o teu:
Um grito forja a primeira luz na pureza negra e desavessa o abismo: eu tocara o âmago. Desde então rasga-se colericamente o mundo num devir visceral – e vê que lindas ao vento as crinas dos que desabrigadamente buscam; ondeiam revoltas como carpas no cio saltando indóceis contra a correnteza: um desespero cru por liberdade; um canto. Ouve. Respira comigo a foz ensandecida dos peixes. (Varar as ruas com incandescente felicidade, estourar as coxas do mundo, corroer como larvas o solo desta comédia triste. Não é isso?) Dá-me as tuas mãos e enlaça em mim o que tens por dentro (vitral iluminado nas costelas, nascemos sob o candelabro de um quarto atrás do tempo; somos bois encantados no pasto matinal – eles não desconfiam de nós, do nosso quilate guardado). Observa com os meus olhos a aleluia de eternidade deste céu sobre o nosso mesquinho desastre de borrar cotidianamente a vida, que infinitude esplendorosa, que beleza insuportável! A atingir (é que também olho com os teus): meu coração explode à impetuosidade dos que escolhem viver – morrer; não, não há contradição –, morder o invólucro asséptico desta dor. Ouço um coro profético de ruína e sigo, pois é podre também a branquíssima maravilha, e fétida, e amarga na sua doçura incompreensível. Vão meus pés já nesse desterritório; eu toda. Ponho portanto na boca o fruto e violando meus sentidos dança uma miríade de cores lancinantes, me varando completamente, tecendo o emaranhado sagrado no qual a minha vertigem se embala de uma compreensão profunda: com a ponta da língua toco finalmente o segredo. Sei. E conhecer é no travo majestoso: experimento alegria talhada às agonias vitais de uma queda (imploro por todas). Gozo nos tendões desta voltagem que me tritura – o teu raio. Mas é macia a tarde nesta tempestade: leitura escura do mistério; um bicho milagroso abre os olhos na grande noite e compreende Deus sem linguagem. Era parar aí, mas: com a inquieta mediocridade de ter dois olhos, olho; percorro cada aresta, cada frêmito que, descontrolado, crava calabouços na pele deste colo secreto de onde o fascínio iça chagas ensolaradas. Desentendo. Quaro à dor.
Amassando o peito a pedra,
teu nome, isto que não se explica;
ou: ferida – aquela porta nunca fechou.
Intro
[quebrávamos um caule de chuva para beber liberdade indócil: lavar-nos do azeite lento e (baba dopada) maquínico dos dias dias dias – resplandecíamos então sem pedir desculpas, já nus completamente, heróis tresmalhados de um horizonte sem verniz]
Liberdade
"(...) A brutalidade sufocante e dilacerante penetrava-a já, enquanto o desfalecimento lhe triturava as vísceras e os ossos, Tudo nela se abria e despedaçava, eram milhares de agulhas que a picavam, facas que a rasgavam, colunas que a enchiam, cataratas que a afogavam, chamas que ardiam sobre águas luminosas, cantantes, e pousavam como fogos-fátuos pelo corpo dela. (...) [Ela] inundou-se de uma ardência cristalina, que se esvaía no seu âmago, lá onde a Presença, enchendo-a, martelava os limites dissolvidos da carne. A luz atingiu um brilho insuportável, a música atroava tudo, sentiu-se viscosamente banhada de clamores e apelos que lhe mordiam... E, na treva e no silêncio súbitos, sentiu, nas costas, na nuca e nas pernas, a dureza violenta e fria das lajes em que, do ar, caíra. (...)"
(Jorge de Sena)
[Branco
o espanto que rebentou o que eu era.]
Fazia os teus olhos, e o teu mistério, e a tua voz, dia vívido – ai, já era tanta a claridade na minha pausa! – fazia tu nos meus poros, e eu quis verter: engolir. Pus os dois pés e um elo secreto se quebrou no perigo, espraiando frêmitos em algum lugar entre a página e o vestido. Abri. Soou a tua música, com força, e ela era epifânica: trazia-te, indócil, exclusivo – ai! Invadida de pura liberdade, aumentei a música e todas as coisas, arrastando o insólito furor dos teus verões para dentro. Irradiava viscoso o delírio, que não cessava: pássaros e mais pássaros, cada vez mais e mais rápidos, altos, e logo o céu dilacerado – inelutáveis as bicadas de tão bruto impulso de vida –;
não cessava, a claridade não cessava, nem a música nem o gozo nem as asas em fímbrias açuladas;
– coa, debandada dissolução!; arfa!; explode em júbilo sem tímpanos! –
cantava estridente e negra a vida, a vida, e foi a vida desde o seu nó mole e primitivo que berrou, insuportável, a nitidez do teu rosto. [ ] Quis levar à boca e já não havia. Boca, ventre, vulva, pés. A viragem em uníssono. Perdia-se, estilhaçada em vítrea aragem, a sentença primeva de morte – viver. Tudo desatava em despertencimento (o teu rosto, a nitidez do teu rosto). Faltava-me o ar e o perímetro e, dança estática com o inominável, transbordava escatológica a eternidade pelo meu corpo, o mundo inteiro estremecendo íntimo de puríssimo horror. Branco, um calor branco de – êxtase não é a palavra para aquela incandescente aleluia; aleluia também não é a palavra; brancas também as letras, os tremores e todos os significados.
Eu vira.
[Branquíssimo o gozo guardado; branquíssimo o pavor de: tocar; branca a branca sensação de morte na última brancura intolerável: a tua raridade.]
Calava, vibrando à presença-ausência de. A perturbação rupta que bagunçara os contornos cortou-me impotente a agonia desperdiçada, e era já com angustiada saudade que eu perguntava, e agora, o que fazer das minhas mãos de mais, depois de descobrir o fio e a face desde onde – as coisas?
Plena. Exausta.
Escritura
, separei um pouco mais as pernas; ainda um pouco mais – pra começar a falar (em carne) o teu nome, pra ver a tua letra viva, feita de mim, do meu desejo desde o movimento candeado dos ossos: duas arestas de falência oblíqua convergindo, pequeno vórtice – vem!; ainda mais: pra te inscrever por dentro, às ranhuras – um traço, outro, mais outro, mais três, ah!, uma flecha hirta de condensada tortura (escarlate já, aos golpes), mais unhas, um nome, o teu
(eu te disse: muito. muito. mui)
rosto
(aos gritos:)
Avesso
[Vai no teu peito a minha cabeça; ou será que era no meu a tua?]
Dir-se-ia: um útero. O mesmo. Para que no início fosse o avesso do verbo, e ao abrir os olhos pela primeira vez o espanto de um fosse a primeira coisa que o outro visse. E então calassem, compreendendo: puro afeto. Apenas corpos, um vertido no outro, sendo, indo, encharcados pelo gosto do mistério, roçando imortais nos dentes da grande noite. Amor. A origem real por eleição; inventada, por isso verdadeira. Gêmeos portanto desta mitologia ágrafa, reconstroem nus a dança genesíaca e continuam órgão tecendo placenta em lençóis seminais num rito interminável a gerar a própria permanência. A nascerem infinitamente de si mesmos: "tu de mim; eu de ti", era a jura. Bocas bifurcadas de um mesmo pomo visceral, à navalha sangrou esta dobra, que persiste: ainda um só ser (bastava olhar o sofrimento dos sexos, partidos, pingando, a procurarem-se).
Dir-se-ia carne, mas: o que se toca nos orgasmos é sem espessura, o oceano na veia, a gota de sede – o instante, paroxismo da carne. Então a queda para o mito: dois corpos sanguinolentos costurando o próprio passado esfacelam-se no ventre de pedra não para abrir a morte de um parto, mas para voltar (este tesão). Continuar, um no outro, rasgando-se em frenesi até negar o tempo, esquecer poros, morrer a linguagem – arroxear o diafragma cansado que diz: "eu"; "tu". Era tirar as linhas dos próprios contornos para unirem-se na pura perdição das margens, rompendo finalmente o precipício da fímbria perversa que avisa com inultrapassável crueldade onde termina uma mão e começa a outra, ainda que entrelaçadas (no mais cru desejo de ruína: desfazer-se, como terra, como pó, como água, como qualquer coisa que extrapole a si mesma e corrompa a mediocridade de carregar uma existência). Gozando, enfim.
Diriam, então, com a terceira voz: para sempre. Porque antes. Porque atrás. Porque sim.
Mais emlivrivências.