A Borboleta e a Morte do Imperador
Do jardim central do Palácio Imperial, nasciam o dia e a noite. De um poço profundíssimo no Jardim de Inverno, nasciam os ventos, dos suavemente mornos aos de vidro frio. Da torre mais alta, nascia o canto dos pássaros. E das mãos da fiandeira mais velha, nasciam todas as cores, numa dança de tons que só com muito custo o observador mais arguto indicaria com precisão tratar-se mesmo de cores e não de música. Os visitantes de outros países espantavam-se com a exuberância do Palácio Imperial, mas era natural que fosse daquele modo, pois lá habitava o Imperador.
O Imperador era pouco mais que uma criança quando recebeu o manto azul-turquesa que pertencera ao avô e o último hálito do pai: seus lábios e fôlegos e almas se confundindo naquela cerimônia de coroação. E, então, permaneceu criança por toda a vida, como todos os grandes imperadores que o precederam. Como o pai. E antes de dele o avô. E ainda antes outro e outro avô.
E como qualquer criança enchia de beleza tudo que o cercava.
Nos salões do Palácio, guardava o que de belo e bom havia ganho como prendas em sua vida. No Salão Leste, guardava uma língua antiga e sagrada que lhe fora dada pela amante de pele de marfim. Os sons sagrados pairavam sobre as cabeças sob a forma de asas dos anjos do Senhor. A amante de pele de marfim se fora, que é da constituição de todo amante partir, mas a língua ficara e isso era o bastante para ter o amor de volta a qualquer momento.
No Salão Oeste, os livros eram jogos luminosos, que brilhavam ao mínimo toque. Refinados, possuíam um gozo humano, aceso por olhos, dedos, pela úmida boca que recitasse qualquer versículo de qualquer um deles.
No Salão Norte, a mulher de ébano havia deixado os seus cheiros, sândalo, vetiver, muscari, mirra. Toda variedade de óleos, unguentos, todos os licores do corpo.
No Salão Sul, ainda não havia nada e foi para ele que o Imperador se dirigiu ao sentir uma dor muito forte e aguda dilacerando o seu corpo. A filha, de mãos longas e finas e de olhos azuis como o seu manto, quis acompanhá-lo e ampará-lo. Mas, nobre e corajoso, o Imperador declinou delicadamente o auxílio da menina e trancou-se no Salão Sul, que logo se encheu das areias de todos os desertos como uma ampulheta.
O Imperador ardeu de febre e sol. Os cabelos longos dos maus ventos fustigaram sua pele. Leoas famintas surgiam do nada e disputavam sua carne. O riso de uma lua cruel derramava nele suores de gelo. Vozes de beduínos misturavam-se ao som dos címbalos e ciganas vaticinavam sobre o fim dos séculos.
Entre a dor e o desespero, o Imperador via sua fé e força se exaurirem e já se deixava morrer, o que lhe causou certo desespero. Foi quando um poema principiou a tomar forma e a arquitetura desse poema traçou um círculo de luz em torno do Imperador e da raiz do seu umbigo uma borboleta amarela surgiu e varreu com suas asas as areias, o pó do deserto.
Quarenta dias haviam passado e quando as portas do Salão Sul se abriram, o Imperador retornou mais jovem e mais belo. E o Salão Sul, repleto de borboletas multicoloridas, guardava agora em si todos os mitos, fábulas e parábolas da humanidade e era aprazível e luminoso como um dia de verão.
Micheliny Verunschk
[conto publicado originalmente na revista Etecétera]