Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Tarde De Chuva

$
0
0

Road Trip, Albano Ruela, 2010


O rio corre dentro de mim, porque há um poder da palavra e porque toda a reformulação literária da existência é um pranto no tempo. O rio corre e passa, e passa a correr dentro de mim e depois são as palavras como água a vestir-me da miragem da eternidade. Confundem-se as lágrimas da terra com a palavra lágrima e todo o meu pranto abandona a dor, para ser este caudal na página.
Tenho um rio dentro de mim, este que corre a meus pés, pelo mesmo encantamento mágico que faz chuva no entardecer eterno da minha alma. O rio detém-se um pouco, porque um entardecer eterno é um quadro idílico, um instante imóvel, paradoxo erguido no tear da linguagem. Na sua pantalha negra e rápida o rio começa a pensar, torna-se vago, troca de lugar com a noite meditabunda.
As águas de baixo, as águas de cima, tudo confundido, o antes do Génesis, do mundo e da alma. Importa tanto aos passantes distinguir a chuva de cima da chuva de baixo, meter ordem no mundo, não esquecer o guarda chuva e ser pontual nos encontros, com as mesas dos cafés a tornarem-se a promessa de uma porta aberta quando a cidade apaga as luzes, mas o poeta é uma criatura sem abrigo, devorado pelo dilúvio, com a beleza de um rio estendido debaixo da chuva a fechar todos os caminhos.
Aqui sento-me na mesa que não há, com um guarda chuva de palavras, no júbilo cruel de não estar nunca onde me esperam. O rio corre dentro de mim, e agora chove mais, assim que pára de chover.

Jesus Carlos

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Trending Articles