O arrebatamento
Em seu encontro com a árvore, macaco e árvore são natureza. Ele come seus frutos, sobe em seus galhos, abriga-se, mas não há nenhum divórcio em seu gesto: experimenta uma unidade eterna, participa, com a árvore, de um mesmo plasma imemorial, de antes do macaco e da árvore. São dados.
O homem, ao contrário, é antinatural, é ruptura em seu encontro com a árvore. Sua capacidade abstrata submete-lhe a natureza da raiz, do tronco e dos galhos, que ele passa a encarar como caso particular de um gênero do qual se apropria como cultura. O tronco não será somente um elemento do fluxo vivo do qual o próprio homem teria um dia sido uma parte, mas se tornará objeto. E a experiência desta cisão se constituirá em especificidade, inaugurando a tensão que o condena ao seu movimento: o homem TEM de ser! É arrancado da natureza como do ventre de sua mãe, e tem de aprender o esfacelamento que sua consciência significa: só ele dá nome ao limbo.
Entretanto, ao fazer da árvore conceito, tornar-se sujeito, ele resiste improvavelmente ao massacre e encontra a saída inexistente: pode simbolizar. Ganha a chance de amadurecer e de aprender que a aceitar só há o inaceitável: mesa, cadeira, ponte, poesia. Pintura, rito e navio: é na capacidade que terá de fazê-lo que ele se humanizará.
Assim, a sua natureza é a violência inexorável da impossibilidade do usufruto uno e irresponsável do mundo. A obrigação olímpica, tão além das suas frouxas possibilidades humanas, de entender que está só e que tem de se esforçar para viver: visão do impossível, pensamento do impensável: vertigem abismal do oceano-deus...
A despossessão
Como nosso destino é dominar a fome e outros rigores da natureza, nós conhecemos, nós nos inclinamos a produzir e a experimentar o conhecimento como controle. O que a gente conhece, a gente conhece para controlar. Controle de que, exatamente, eu não sei, mas constroem-se pontes, desenvolvem-se curas, produzem-se safras. Não fosse o pedinte esfaimado que vem à porta do restaurante caro onde estou comendo, talvez eu soubesse. Mas a presença dele excetua a abrangência do conhecimento, e a imperfeição do controle, da fome no caso, é a imperfeição do conhecimento... pontes que levam à mesma margem.
Este traço estranho e formidável está em toda a parte. Não é possível conhecer verdadeiramente, só avizinhar. Esta impossibilidade de possuir fez procurar outro modo de entendimento, um que levasse mais rápido ao ponto, incorporando a humildade de reconhecer-me incapaz: o objeto só é meu se não for capturado! Num movimento aparentemente inverso, o que se vê é que a primeira impressão é mais clara e abrangente, e que a refração aumenta à medida da reflexão. Chamei esta aproximação de despossessão, pois consiste em livrar-me de uma tensão infecunda e afastar-me cada vez mais do objeto, como a mãe que engendra o filho em seu ventre mas só pode talvez compreendê-lo a vê-lo separar-se.
Aliás, não tenho pudor em dizer, creio mesmo que a possibilidade desta experiência simbólica “uterina”, em oposição à fálica do domínio, constitua a base deste modo de conhecimento, um papel estruturante da feminidade, consoante à substituição do objeto que se quer possuir por uma representação, pois só se pode despossuir o que já foi simbolizado.
imagem: litogravura, "bond of union" (1956), M.C. Escher
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Renato Aguiar trabalha com obras literárias em inglês e francês há 15 anos. Já traduziu, entre outros, D. H. Lawrence, Camille Paglia e Stephenie Meyer. Aguiar já foi duas vezes indicado ao Prêmio Jabuti de Tradução Literária.