Já passa da meia-noite. Um menino de 12 anos se descobre no interior da sala de sua casa. O ambiente está escuro. A pouca luminosidade provém da iluminação pública que penetra pela janela, parcialmente coberta pela cortina. Ele caminha a passos lentos, pondo os pés descalços com cuidado no piso frio e acinzentado, segura com as duas mãos uma pistola ponto 40 - com um projétil na câmara, pronto para ser disparado. Mantém a arma totalmente destravada e os olhos fixos no seu alvo : um homem deitado de bruços sobre um colchão forrado por lençol branco e coberto por outro da mesma cor e com listras azuis. O menino aproxima, e posiciona a arma atrás da orelha esquerda do homem sobre o colchão, evitando encostar o cano da pistola. Aperta o gatilho. Um clarão seguido de um estrondo lhe assusta o fazendo recuar. Alguém se aproxima o menino se afasta da vítima se escondendo na escuridão enquanto uma pessoa de cabelos compridos se ajoelha ao lado da primeira vítima, gritando palavras incompreensíveis para o menino. Ela a qualifica como o seu 2º alvo. O jovem assassino se aproxima da futura vítima ajoelhada no solo, que aos prantos, ignora a sua presença. E atira. Á queima-roupa, de cima para baixo, atingindo a nuca. Um único disparo que faz aquela pessoa cair sem vida sob o olhar inexpressivo do menino.
O jovem assassino fica por uns dois minutos parado na sala. Na sua cabeça existem mais dois alvos a serem eliminados. Caminha. Fica tudo escuro na sua mente. De repente se encontra abrindo uma porta de metal. Entra numa sala, que apesar da escuridão local, consegue ver os vultos de duas poltronas. Um assassino é sorrateiro e não faz nenhum barulho, pensou o jovem ao entrar num quarto com duas camas de solteiro. A primeira, à sua esquerda, e a segunda, à sua frente. Duas pessoas, cobertas com lençóis brancos, dormem. Indo para esquerda encara o seu alvo, rapidamente encosta a pistola na sua boca e um estrondo enche o ambiente. O menino sabe que deve agir rápido, pois há outro alvo. Pode estar acordado, se vira para direita, dá um passo e atira mais duas vezes.
O menino não se lembra do ocorrido na madrugada, ignora a existência de corpos na sala de casa, está diante do espelho do seu banheiro, a pistola esquecida sobre a pia. Ele passa com a mão direita um pente nos seus cabelos castanhos claros, encara o seu rosto redondo refletido. Sério. Sabe que deve ir para escola. Com o uniforme, casaco e calças da cor cinza. Camisa e azul tênis preto. Caminha para a sala, agora mais clara por ação da luz do dia. Sobre a poltrona preta da sala está a sua mochila, que é também cinza com duas faixas verticais pretas. Abre a parte inferior. De lá retira um pequeno revólver, uma faca e rolos de papel higiênico. Recoloca tudo no lugar. Abre parte anterior, retirando a chave de um carro e trezentos cinqüenta reais, que coloca junto com a arma e os outros itens.
Apesar de ser menor, o pai o ensinou a dirigir e com um sorriso no rosto conduz o sedan cinza pelas ruas da cidade. Estaciona numa rua anterior da escola, pega o controle remoto do portão de sua casa e o coloca no bolso direito do casaco. Sai caminhando com a mochila nas costas. É mais uma manhã comum. Cruza com a menina que o chamou de maluco e evita encará-la. Só percebe um vulto de roupa similar a dele e se indaga como ela quis sair do seu grupo de mercenários. Ela surtou quando ele falou que para ser um verdadeiro mercenário é necessário matar os pais. Sente vontade de dar um tiro na cabeça dela. Enquanto anda, leva a mochila para frente do corpo e passa a mão esquerda procurando o revólver. Logo desiste desta intenção, há muitas testemunhas.
O menino chega à sala de aula. Senta no canto, próximo a janela. O ambiente ainda está vazio. Entra o seu melhor amigo, que está vestido como ele, tem cabelos castanhos escuros, rosto fino e um sorriso espontâneo.
- Fala amigão!
- Tudo bem – disse o jovem sério.
- O que houve? Você está esquisito!
- Eu matei os meus pais. Vamos fugir, tenho dinheiro e o cartão de crédito da vovó.
- Cê tá brincando? Você não fez o que disse que iria fazer? Matar os seus pais e virar assassino de aluguel. Isso aqui é o mundo real e não um jogo.
O menino não responde. Fica com o olhar perdido adiante. O amigo assustado tem os olhos arregalados.
- Me responde. É tudo brincadeira?
- Deixa isso para lá. A aula já vai começar.
O resto da manhã o menino fica em silêncio. Monossilábico.
O amigo pergunta:
- Você quer carona para casa?
- Sim.
Um carro hatch preto para diante do portão da casa do jovem assassino. Ele no banco de trás, e o melhor amigo no banco do carona.
- A sua avó não veio lhe receber hoje? – indagou o pai.
- Ela está dormindo – disse o jovem assassino, saindo rapidamente do carro e pegando o controle remoto do portão, o abrindo e desaparecendo.
No carro o melhor amigo começou a chorar.
- O que você tem meu filho?
- Pai. Eu vou perder o meu amigo.
- Acalme-se, ele só deve estar chateado – disse o pai, dando a partida no carro.
O menino entra na sua casa, larga a mochila sobre a poltrona, olha para a mãe caída, se ajoelha ao lado dela, passa as mãos nos cabelos negros dela e começa a chorar.
- Não! O que eu fiz!
O menino sente remorso, está extremamente deprimido. A sua cabeça começa a rodar.
Ele se levanta e vai até o banheiro. Pega pistola e se certifica que ela está pronta para disparar, avaliando as travas e o ferrolho. Ao lado do corpo da mãe, segurando a arma com a mão esquerda, encosta o cano na frente da orelha, aperta o gatilho. Ouve um estrondo. Sente um calor intenso no local em que a pistola está em contato com a pele. Tudo fica escuro.
foto: Margarito Perez Retana/ Reuters
* * *
Jardel do Amaral Junioré médico e escritor. É autor de dois romances: Aconteceu em Monte Castelo e Mudança de Rota. Vive no Rio de Janeiro. Email.