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OS GORILAS DE SUMATRA

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para meu amigo Paulo de Tharso


Ah! meu caríssimo Barletta, você tinha logo que começar com uma pergunta dessas? Nem sei se tomo por excesso de zelo ou deboche. Oquei, entendo que a entrevista é algo para consumo próprio, nosso consumo. Ninguém vai ficar sabendo, combinado. Mas precisava ter sido tão condescendente? Ah, José Carlos Barletta, você é um grande filho da puta!
Lembra daquela vez que o peguei com dois paralelepípedos nas mãos? Eu pensava comigo mesmo: como é que posso ser amigo desse maluco? Sinceramente, eu acho que a nossa amizade é a esquisitice mais improvável que podia ter acontecido na Praça dom José Gaspar, desde que ressuscitaram o Paribar. Da minha parte, sempre fiquei na dúvida entre levá-lo a sério ou chamar o corpo de bombeiros. Você deve pensar o mesmo, né? Às vezes, porém, você me surpreende, e eu desconfio que essa fanfarronice toda é um disfarce; às vezes, juro por James Douglas Morrison (olha a amizade aqui, quem diria, eu jurando por Jim Morrison...), quase acredito que somos mesmo dois fodões. Mas isso passa, viu? E se eu não chegasse naquele instante, me diz, você ia mesmo encarar os três carecas?
Caralho, Barletta. Tem certeza que quer começar com essa pergunta? Prefere uma resposta longa ou curta? 
Então tá. Vou tentar ser econômico. 
Meu conselho é: desista. Se você for um escritor de verdade, desista. A derrota é um bom começo e provavelmente será o seu fim mais açucarado... ou irremediável (entenda como quiser). Caso contrário, existem o SESC e o Senac e uma infinidade de cursos profissionalizantes por aí. Inclusive tem uns que oferecem — oh, Deus... — oficinas para escritores. 
Houve um tempo, Barletta, que acreditei em expurgos. Também acreditava no amor e nas mulheres. Faz tempo, uns vinte anos. Era uma época em que “oficinas” eram as mecânicas. Os carburadores viviam entupidos, e caminhávamos sobre ruas explosivas. “La beauté est dans la rue”, lembra? Você, sempre exagerado, querendo me ensinar o francês das guilhotinas. Nem o xarope do Danton, nem o vermezinho de Robespierre. Na esquina da Augusta com a Caio Prado, você acabou me convencendo que Camille Desmoulins era o cara. Mas isso foi bem no começo, antes de a Internet transformar nossos paralelepípedos em isopor, antes de eu escrever meu primeiro livro. O mais irregular, e talvez o melhor de todos: porque eu estava lá pra valer. Limpo. Foi tão legal a primeira vez que vi o livro exposto na Livraria Belas Artes. Fiquei todo orgulhoso, e convidei minha mãe para ir conferir. Ela queria saber: “é livro do quê?”.
Ah, dona Marietta.
Não consigo entender: como é que ela foi com as suas fuças? Logo ela, logo você. Até hoje, dona Marietta é só elogios quando fala do “Barletta, seu amigo cabeludo”. Ao contrário de mim, você sempre foi cativante, né? Livro do quê? Que tal trinta anos de silêncio, medo e travamento? Não sei se gosto ou desgosto da capa. Eu queria algo pornográfico, e melancólico. E aí me aparecem com aquele cortiço. Tudo bem, tem alguma coisa de melancólico ali, vá lá, mas aquela imagem — de alguma forma — prenunciava a merda que estava por vir. Era tanta gente me puxando o saco, buzinando na minha orelha. Que eu cheguei a acreditar, meu amigo, que a literatura tivesse me curado de um monte de coisas. Inclusive da dona Marietta, que sabiamente não foi à livraria conferir de que desgraça era feito meu livro. Mas não é assim. A literatura não me curou de porra nenhuma. O tempo passou e a Belas Artes virou lan house. É engraçado, Barletta. A falecida livraria me fez lembrar do começo do “Aleph”, um conto de J. L. Borges, quando, depois da morte de Beatriz Viterbo, os painéis de ferro da Plaza Constitución haviam renovado um anúncio de cigarros — acho que Borges queria falar do Marlboro, acho que sim, se não me engano tem uma referência a “cigarros vermelhos”. A vida mesquinha, enfim, segue seu curso. A vida sim, a literatura não. Imagina um garçom, meu caro Barletta: 
Se ele der uma boa engraxada nos sapatos e se souber entortar a gravata borboleta um pouquinho pro lado direito, também — por que não? — poderia expurgar seus fantasmas trabalhando honestamente; com a vantagem de ter os seus 10% garantidos em lei e de não precisar administrar o ego dos comensais por mais de 35 minutos (em média). Em se tratando de expurgos, meu caro, existem passatempos e profissões mais seguras. Sim! Profissionais “qualificados” que cobram por hora. Sem falar que o expurgo eventualmente (já ouviu falar em milagres?) pode acontecer a céu aberto. Se eu pudesse escolher, velejaria. Em se tratando de literatura, acho difícil, senão impossível, qualquer tipo de expurgo. E mais! Se for literatura, e da boa, servirá apenas para acrescentar novos problemas na vida do autor. Não só problemas de ordem social, de convívio esquizofrênico com o próprio duplo (Cortázar sofria disso...) ou de expectativas não correspondidas; não se trata apenas de brochar com as fãs nem de questões éticas, morais ou até mais triviais, como aquelas que têm de ser administradas de dentro para fora e de fora para dentro, a começar pelo conflito entre a primeira pessoa do singular e as demais: tão chatas “essas pessoas”... sobretudo aquelas que ostentam comendas e galardões. Por isso que escrevo na primeira, Barletta. Pra começo de conversa, porque gosto de subversão e de confusão (de onde você acha que vem nossa amizade?) e, depois, objetivamente, não preciso ser plural. Não nasci pra ser general da banda nem coleguinha da Nélida Piñon, e finalmente porque não sei fazer de outro jeito. Assim, na falta de alternativas — se me permite e já que não tem “outro jeito” — tomemos o meu exemplo; eu jamais me atreveria a “falar” na primeira pessoa. Preferiria latir se fosse o caso. As palavras e as pessoas estão aí para serem usadas, e não faladas. Sim, é cruel. Mas é assim que funciona: fazer o quê? Pois bem, Barletta. Você não é nenhum ingênuo, e sabe que eu não sou 100% confiável. Ou melhor. Uns 80% confiável, os outros 20% (ou seria o contrário...?) eu minto mesmo, viajo na maionese. Normal. Haja vista que ninguém, muito menos você, é 20% confiável. Lembra aquela vez que você me fez pagar um mico danado na Santa Casa? Já o chamei de filho de uma puta? Praxe. Do que eu falava? Ah, sim... sobre o pêndulo. Pensando bem, meu caro Barletta, esse pêndulo maluco é que é o meu segredo: às vezes 20% prum lado, às vezes 80% pro outro; até aí tudo bem. Ocorre que, às vezes, como é que eu posso dizer?, bem, às vezes “perco o controle” do lado negro. Não, nem fudendo. Isso não quer dizer que eu perca o controle da situação: isso jamais, pois é de lá, desse lugar lamacento, que garimpo meus diamantes. Ora, Barletta! Se eu me deixasse levar... como é que conseguiria voltar para contar a história? Seria mais ou menos como se eu encarasse os três carecas nazistas e alguém me dissuadisse na hora “h”... entende? Como se eu estivesse atrelado à uma realidade bundona, porém soubesse que os paralelepípedos continuam lá à minha disposição. Dane-se que são de isopor! Dane-se! Não é incomum, meu chapa, que esses “surtos” aconteçam no início do inverno, não sei por quê, talvez a alimentação pesada, o vinho tinto; não importa, nessas ocasiões, a ficção e a realidade se misturam tanto, mas tanto, que nem eu sei se estou sendo 100% sincero ou 100% canalha. Nesse ponto, como diriam os sacanas dos místicos — fico até constrangido em confessar —, “transcendo”. Fernando Pessoa fazia isso o tempo inteiro, mas ele era poeta, e não conta. Se não for assim, meu caro Barletta, vira diário, exibicionismo, autoindulgência, confissão, blogue com fundo de oncinha. Você havia me perguntado sobre expurgos, né? Pode ter certeza de uma coisa, se a literatura for da boa, quero dizer, se não for essa coisa rasteira que os despachantes fazem para garantir afagos, prêmios (dinheirinho fácil, muito dinheirinho), colunas sociais, traslados e tíquetes refeição, bem, se for literatura de verdade, o cara só vai se lascar,e a literatura ou a arte que lhe couber — a parte dele no latifúndio... — é cova rasa, provavelmente será uma fonte de problemas gravíssimos relacionados a entraves que nada tem a ver com expurgos, muito pelo contrário!; eu falo de problemas relacionados a voos tonitruantes sobre abismos infernais, sim, problemas de depressão antes, durante e depois do parto... nós, digo, nós os bons e os otários, somos acometidos por essas viadagens e, geralmente, temos dois aluguéis atrasados e vários condomínios pendentes; e tem mais, às vezes a mente do escritor — sou forçado a admitir — é um pouco feminina; no sentido de que comemos quando estamos sendo comidos, capisce? Tô querendo dizer que, a cada livro concluído, há que se reinventar a carne e o sangue, o suor e as lágrimas — veja só — para que todas essas coisas, incluídos os lugares- comuns e a gravatinha borboleta do garçom levemente torta para o lado direito, caibam nesse treco que insistimos em carregar para baixo e para cima, apesar dos pesares. Que treco é esse? Chame de carcaça, consciência, tanto faz. Trata-se de um exercício cruel rumo ao fim da picada, um dia depois do outro: além de mentir e enganar a nós mesmos e de mentir para a distração e o consumo alheio, ainda temos que amarrar os sapatos antes de sair de casa, o velho Buk, a propósito dos malditos sapatos, é que se perguntava “até quando?”. Até quando, Barletta? Já que citei Bukowski e até agora passei meio que batido por Fernando Pessoa, vou falar em filosofia, porque — você sabe — sou um cara que lê qualquer merda. Não me lembro quem foi que disse, Platão?, sei lá meu caro Barletta, mas tanto faz se foi Sócrates, Platão ou o Neguinho da Beija-Flor, não me importa quem, mas o puto ajambrou uma sentença que atravessa os séculos, e que diz o seguinte: “o corpo é o arcabouço da alma”. Não, Barletta! Não é assim! Eu penso que é exatamente o contrário. A alma é que é a grande prisão! Estamos condenados à eternidade (de onde você acha que vêm o sorrisinho cínico de Bento XVI?) e, não bastassem todos as criancinhas violentadas e todos os fardos físicos e metafísicos, ainda temos o inconveniente de amarrar os sapatos e olhar para os dois lados antes de atravessar as ruas, não é fácil. Merda, grande merda. Vou lhe dizer uma coisa, Barletta. Já amarrei os cadarços com mais dedicação: hoje, porém — depois de constatar que o mundo é dos despachantes —, dei uma brochada, e resolvi optar pelo entorpecimento, natural que seja assim, não acha? Entre tantas ruas para atravessar e tantos cadarços para amarrar e desamarrar, escolhi não sentir minha própria dor (cada um se desumaniza conforme suas possibilidades, né?...); ah, meu caro, perdi a elegância. E junto perdi a paciência com as viúvas & franquias do Leminski. De modo que o ideal seria expurgar a literatura da minha vida, mas acho que não conseguirei chegar a tanto, nem depois do próximo pé na bunda, nem depois de morto. Não tem expurgo, meu caro. Não tem cura. O que é que você quer saber do Rio de Janeiro? O Rio de Janeiro é uma paisagem na memória do paulista — essa frase é do Reinaldão Moraes. Acho que é por aí. Uma paisagem besta. Outro dia tive uma emergência erótica e fui parar numa quebrada pros lados de Inhaúma, perto da Via Dutra. Ouve isso. Eram umas duas horas da manhã quando subi num táxi clandestino perto da praça do Cimento Branco, não me pergunte como cheguei a essa praça, e nem que diabo de putaria foi a que rolou no Motel Comodoro. Nesse momento, Barletta, tive a certeza de que a Zona Sul, Tom Jobim e o “Samba do Avião” não passavam de reminiscências de uma doce e fugidia paisagem perdida na memória, nostalgia besta. A Zona Sul é um presépio. Eu arriscaria dizer, meu caro Barletta, que até o Oceano Atlântico e as ondas que quebram no Arpoador não passam de truques. Ah, Barletta, é tão lindo ser enganado nos dias de ressaca. Paisagens, miragens, ondas que se erguem do mar, tanto faz, essas melecas que só existem na mente dos estrangeiros, e dos paulistas deslumbrados como você e eu. Nada disso existe. Em 60 minutos de metrô, o Rio deixa de ser a Cidade Partida para se transformar numa cidade engolida pelo caos urbano, social e demográfico. O que existe, hoje, é o espelho d’água da Rodrigo de Freitas, que ainda me engana. Sim, Barletta, eu odeio rimas e sei que essa imagem não é muito boa. Mas o que você queria? Que eu dissesse que Copacabana me engana? Nem fudendo, depois que eternizaram Dorival Caymmi feito uma tartaruga ninja no Posto 6, não engana a mais ninguém. Só o Chico Buarque continua sodomizando seus negrinhos balbinos e enganando a Casa-Grande e a Senzala, mas esse é outro papo. Ainda assim, acrescento à sua e à minha idealização uma argamassa frágil que se percorre em 1 hora de metrô (Cantagalo-Pavuna); tudo muito rápido; o que era paisagem vira realidade, quero dizer que essa argamassa atoladinha e semiabandonada à beira da exaustão não reparte nem divide coisa nenhuma e nem tampouco sustenta a si mesma, não serve nem para cheirar porque já foi batizada e rebatizada, muito menos serve como matéria de ficção. O horror!, Barletta, o horror! Mas se quiser pode chamar de paisagem. Afinal, temos o ar que sopra do oceano e revigora os fantasmas mais malandros e simpáticos do planeta, sejamos otimistas: quantas biografias o Ruy Castro ainda tem por escrever, né? Isso que eu chamo de pesca submarina: garoupas, sargaço, sol, sal, Alzheimer e pilequinhos eternos dessa juventude dourada que não acaba nunca mais... então chamemos de paisagem, oquei, eu também prefiro assim, mesmo porque a qualquer momento eu posso me encher dela, e ela pode se encher de mim, isso já aconteceu comigo várias vezes e com outras paisagens bem menos arrombadas; chega um dia, meu caro, que o feitiço acaba, a gente faz as trouxas e vai embora para morrer outra vez noutro lugar cada vez “menos encantado”, entende? Aí você me pergunta do Rio de Janeiro. Tanto faz. Pode ser no Rio de Janeiro ou na Vila Sônia a caminho do Estádio do Morumbi. Mas é claro que as pessoas fazem parte dessas paisagens!, sob o efeito da babaquice, todas elas procuram o amor e acabam encontrando os seus subprodutos (o Nilo Oliveira já havia cantado essa bola...), o amor, ah, o amor é o primeiro a nos abandonar na barraca de pastéis, comigo invariavelmente acontece assim, sabe, Barletta, eu mesmo me transformei num subproduto do amor, então, ao invés da paisagem tenho que me virar com a neblina. Um treco meio brega, também acho. Sofro uma espécie de catarata espiritual. A cada dia que passa, quanto mais procuro o amor, menos amo; pode chamar como quiser, chame de melancolia se não quiser chamar de tristeza, para mim tanto faz; pode chamar de fracasso também, essa neblina é só um nome bonito que arrumei pra trazer o fracasso para mais perto de mim, só assim posso lhe dizer com segurança que toda a fúria e as promessas do amor de ontem, embora tenhamos a consciência da orfandade, tudo isso vem a reboque junto com a paisagem e outra ilusão, é aquela velha história: mudamos mas não nos livramos de nós mesmos, isso parece óbvio, meu caro, e é assim que trazemos conosco a cegueira, a ilusão do amor e o ímpeto de amar. Eis a inhaca: — que no meu caso — curioso... — sempre teve lugar num apartamento vazio; minha alma só é eterna nesses lugares de classe média baixa, geralmente em muquifos ajeitadinhos e longe do mar. Não seria diferente se fosse num sobrado na Vila Sônia, numa quitinete na praça Roosevelt ou na puta que me pariu, tanto faz, o apartamento vazio sempre está lá, me esperando, eu, o eterno inquilino fantasma. O fato de ser Rio de Janeiro é apenas uma contingência, só isso, dessa vez o apartamento vazio fica no Grajaú, aqui estou, meu caro Barletta!; perdido na zona norte do Rio de Janeiro, deslocado no meio das cunhadas suculentas de um Nelson Rodrigues inviável porque inevitável: as mesmas que eram desejadas pelos enteados há cinquenta anos e que, hoje, saem suadinhas das academias de fitness, as mesmas! Podia ser no José Menino, em Santos, podia ser em qualquer época e lugar. O apartamento vazio é eterno, as almas de classe média idem, e a perplexidade ibidem. Aqui estou, meu caro. Eu e uma samambaia cabeluda. A planta foi presente dela, e veio junto com uma recomendação: “Pra você cuidar de alguma coisa na vida, vai servir como um exercício”. Parece que sim, Barletta. Acho que existe uma diferença entre melancolia e nostalgia, li isso em algum lugar, se bem me lembro, segundo a definição de algum sabichão, a melancolia é a falta que sentimos de algo que não vivemos ou de algo que poderíamos ter vivido, acho que sim, e a nostalgia, segundo o mesmo cara (do qual discordo por acumulação), é algo mais prosaico, mecânico, e se parece com a falta de algo vivido e irrecuperável; se for isso, acho que sinto as duas coisas, e ainda tenho uma samambaia para regar, “vai ser um bom exercício...”, aliás, não sei se você sabia, Barletta, mas parece até que existe um estudo sobre gorilas nostálgicos (ou melancólicos?) da Ilha de Sumatra; ah, esses gorilas e chimpanzés sempre ridicularizando a gente, né? Às vezes, Barletta, essa condição mamífera me joga na lona, e somadas a esse nocaute, ainda vêm as samambaias, a melancolia e a nostalgia juntas, dose fatal, dose fatal demais, posso lhe garantir que existe um nome p’ressa meleca que não é matemática — pelo menos pra mim e pra Marina Lima —, o nome é alguma coisa parecida com festa no outro apartamento. Eu gosto disso. Chame como quiser, desamparo, tristeza, uma samambaia para regar um dia sim e outro não. Eu penso, meu caro Barletta, que todo mundo devia ser triste, não deixaria de ser uma resposta aos gorilas da Ilha de Sumatra. Porque a tristeza, em tese, seria um atestado da derrota, da incapacidade diante da paisagem, ou seja, do entendimento dos cadarços, aquilo que nos faz amarrá-los e desamarrá-los, os sapatos, a tristeza, ela mesma, sabida e deselegante (e aí prescindiríamos definitivamente das viúvas do Leminski), ela mesma, a tristeza, que nos obriga a olhar para os dois lados antes de atravessar as ruas... até quando? Ah, Barletta... os gorilas da Ilha de Sumatra são uns putos. Sabia que tem um estudo — caralho, será que os cientistas não tem mais nada pra fazer? — que diz que os gorilas de Sumatra também são tristes?! Uma deprê essa ilha. Nossa única vantagem — até agora — é que lá, nos arquipélagos de Sumatra, não existem padarias, nem esquinas. Até quando, meu caro, ninguém sabe. Meu amigo Nilo (aquele mesmo que cantou a bola do amor e dos subprodutos, sempre ele...) voltou de Paris, e me jogou essa bomba nas fuças: “Um dia” — ele me disse — “Paris foi uma várzea”. Os gorilas da Ilha de Sumatra que se cuidem... Então, Barletta, senti as duas coisas aqui no Rio, nostalgia e melancolia, ao mesmo tempo. Será possível? Será que um gorila da Ilha de Sumatra, além de dar conta dos cadarços, chegaria a tanto? Deixe de ser um pouco o entrevistador e seja mais meu amigo. Veja só o que aconteceu; logo que cheguei ao Rio, e isso foi antes de me mudar para o Grajaú, eu estava profundamente incomodado com o fato de que não possuía uma... como é que eu vou dizer?... uma “identidade carioca”, isso mesmo: não tinha a porra da identidade carioca, e sem a qual, eu acreditava, seria impossível atravessar as ruas. Ora bolas, Barletta, seja para o bem ou para o mal, a gente precisa atravessar as merdas das ruas e dobrar as porras das esquinas! O que eu podia fazer? Cazzo! Fui atrás da tal de identidade. Nem vou falar da rabada no Pavão Azul, lá na Hilário de Gouveia. Tampouco do chope do Serafim. Seria muito fácil. Não foi nem num lugar, nem no outro, que me senti em casa. Foi quase. Todavia, eu sabia que em algum momento o sotaque ia bater. Se eu tivesse que apostar comigo mesmo, apostaria meu batismo carioca na Help, até mesmo pela urgência do caso. Taí um lugar que devia ser preservado pelo patrimônio histórico nacional. Vão fechar a boate e enfiar um Museu da Imagem e do Som no lugar. Muito triste isso, Barletta. Você acha que os gringos viriam ao Brasil para visitar o MIS? Será que eles trocariam o Musée d’Orsay pelos bumbos do AfroReggae? Quanta insensatez. Imagine o contrário. Imagine, Barletta, se destruíssem o Louvre para colocar um puteiro no lugar. A Help é nosso Louvre! Vocação, Barletta, é disso que falo, eu estava à procura da minha vocação. Infelizmente era alta temporada, meu dinheiro não deu e desisti da Help; mas não desisti da vocação, enfim, eu tinha que achar meu sotaque carioca (sem os erres e os esses arrastados; não me zoa, hein?); procurava a baía triste que Lima Barreto vislumbrava de sua cela no hospício, cheguei a desconfiar que a rua Riachuelo, antiga Mata-Cavalos, me bastaria; esse sotaque, Barletta — no meu caso — nada tem a ver com traslado, pacote de seis dias e seis noites. Tem gente que sobe o Corcovado. Outros fazem turismo nas favelas. Se o cara quiser tem a opção de nadar no meio dos cocôs de Copacabana, e depois tirar uma foto com o poeta de bronze, no Posto 6, depende do gosto do incauto... exatamente: cada um se vira como pode, né? Vou lhe dizer uma coisa, quase consigo minha cidadania no Jardim Botânico — se não fossem as jaqueiras obsessivamente catalogadas, acho que conseguiria. Tive a impressão de que as pobres árvores “mãos ao alto” haviam sido rendidas. O Jardim Botânico é uma obsessão, Barletta! As plantas estão todas apavoradas. A gente sabe que uma jaqueira ao lado de outra jaqueira é mais uma jaqueira. Uma plaquinha basta. Orquídeas são diferentes, e justificam o cuidado. Sobretudo porque não são jaqueiras. Vou lhe dizer outra coisa, Barletta, por muito pouco não virei carioca depois de ter comprado o jornal O Globo na entrada do Parque Guinle. Fiquei entre essa experiência, uma dedada no rabo e dois tiroteios no Pavão-Pavãozinho, de modo que só me faltava — para entrar no hospício de Lima Barreto — acompanhar o debate entre Fernando Gabeira e Eduardo Paes na televisão, era época de eleição no Rio e o Gabeira perdeu por pouco, mas não é de política que quero lhe falar, vamos adiante. Olha só que esquisito, quase me senti em casa no Rio de Janeiro quando comprei mariola de um ambulante na Cinelândia. Aliás, fui eu quem identificou, pechinchou e solicitou o bagulho (ia escrever “iguaria”) — sem saber o que era e de onde vinha. Nunca havia experimentado uma mariola na minha vida e, no entanto, adivinhei o gosto e as reminiscências que o doce de banana iria me provocar antes mesmo de prová-lo. Curioso, né? Como se eu tivesse vivido um déjà vu de outra pessoa. Só mesmo dona Zíbia Gasparetto para explicar o ocorrido... eu acredito no sobrenatural e até andei frequentando um Candomblé no Jabaquara, Barletta, e também acre dito que a morte — como disse o professor Antonio Candido — não faz muito bem para o estilo. Não, não gosto do que vem desse povo da academia. Mas nesse caso sou obrigado a concordar. Veja só. Não só a morte, mas sobretudo a mariola me trouxe para mais perto da cidade — embora no começo tivesse certeza de que a bendita mariola era feita de goiabada. Quanto ao meu estilo? Não sei, Barletta... mas eu sabia que ainda não tinha chegado lá. Como assim, “lá aonde?”? Cazzo! Eu ainda não havia “adquirido” desespero sufi ciente... não para atravessar as ruas às cegas, ainda não, porém estava muito perto do “lugar carioca” e da liberdade para atravessar as ruas sem precisar olhar para os dois lados, com a devida tristeza, mais um bocado de culpa e sem a elegância do cara que — será que dá pra perceber? — murchou, do cara que se entregou e que está aqui na sua frente, completamente dilacerado. Os gringos foram embora, o verão acabou. Era minha chance! Fui pra Help. Descolei uma mulata-baixa-temporada... e brochei; depois disso fui tentar alguma coisa nas pedras do Arpoador. Não consegui nada. Sei lá, meu. Acho que o Cazuza já havia usado, revirado e zerado aquele lugar com sua poesia, e eu me senti um condenado irremediável ao Largo da Batata, até que — surpresa das surpresas, viadagem das viadagens! — o sotaque tilintou. Sim, e levava farinha de trigo e ovos. Parece brincadeira, mas um biscoitinho prosaico da minha infância que eu imaginava extinto, e que não era nenhuma madeleine, foi o responsável por minha reconciliação com o cartão postal. Depois disso, meu caro Barletta, se, no lugar do Cristo, o King Kong me abençoasse do alto do Corcovado, daria na mesma. Eu estava em casa. A partir daí consegui me livrar do Homem da Quitinete de Marfim, que — para quem não sabe — sou eu mesmo no centro de São Paulo, durante sete anos da minha vida, na praça Roosevelt (incorporado ao ambiente). Jamais criei raízes em lugar algum, Barletta. Na hora que a vida está boa, eu dou o pinote; carrego sodoma e gomorra comigo, porém nunca corri o risco de virar estátua de sal. “A lombra é que dá o dom”, palavras sábias do Ricardinho Carlaccio. Sempre foi assim, entende Barletta? Jamais — até chegar à praça Roosevelt — eu havia corrido o risco de virar estátua de sal: eu iria me extinguir se não extinguisse os animais da praça em mim. Portanto saí fora, se é isso o que você quer saber. O problema é que não sou mais nenhum moleque, e continuo o mesmo romântico incorrigível; ou seja, tenho saudades de mim mesmo e não sei se vou aguentar uma nova solidão aqui no Rio de Janeiro. A gente não devia nascer de novo tantas vezes, e tantas vezes ser assassinado pelas coisas que mais amamos. Sinto falta das minhas cabritas, das conversas com o Bactéria, e dos meus amigos paulistanos, gente que — depois de tudo e por incrível que pareça — ficou grudada na minha memória carioca. E que agora se transformou em paisagem. Ou melhor, neblina. Tava aqui pensando, Barletta Se um dia eu for uma alma penada, acho que vou bater ponto aí na praça Roosevelt. Mas se dei o pinote — diz pros manos aí — foi por instinto de sobrevivência. Só isso. E quer saber de uma coisa? Aquele lugar estava fazendo mal pro meu estilo. Eu havia morrido, vai me dizer que não percebeu? Ora, você acompanhou os cortejos, e é testemunha: eu estava virado num oráculo, e até de vidente dei meus pitacos, e o pior, acertava todas as profecias. Diga, algum vaticínio meu não se cumpriu? Só pra sua informação, foi ela sim, foi nossa querida Marisa quem ajustou o ponto de interrogação no meu laptop, interprete isso como quiser. Claro que sinto saudades, sobretudo porque — nos seus últimos dias — ela confiou em mim. Nunca ninguém tinha confiado a esse ponto. E eu não soube fazer nada, não podia fazer nada, além de dar acolhida e pagar um bife à parmegiana. Lembra? Antes de toda aquela cagada ela passou um dia inteirinho na minha quitinete, sob minha proteção. Veja só que responsabilidade a minha, logo eu! Nessas horas penso na dona Marietta, que queria saber “é livro do quê?”. De merda nenhuma, mãe. Não serve pra nada. Se eu fosse um garçom daria na mesma: iria servir a última refeição à Marisa. Não pude fazer nada além disso. Não, não quero mais lembrar daquela história triste, apenas desejo as flores amarelas do Noel Rosa para ela, seja lá onde ela estiver. Para você também, Barletta. Foda, né? As pessoas se agarram a qualquer porcaria que apareça na frente delas. E isso é perfeitamente compreensivo, e muito triste.
— Ela só tinha vinte e oito anos.
A mentira é a âncora mais segura, Barletta. E, agora, independentemente das necessidades das “pessoas”, eu preciso de um copo d’água. E você, maluco...? Porra meu, daqui a pouco você faz cinquenta anos! Se liga! Eu sei que o fato de eu ter chegado na hora desviou sua atenção, mas eram três e você era (ainda é, apesar de tudo) apenas um tampinha metido a besta. Três carecas? Também tem uma coisa que não consigo entender: de onde você arrancou aqueles paralelepípedos se a rua da Consolação é toda asfaltada? Outra coisa: é verdade que você não comeu o cu da Gretchen porque era comunista na época? Porra, Barletta, era o cu mais cobiçado do Brasil! Peraí, meu. Deixa eu perguntar um pouco, cazzo! Sua excêntrica figura é cercada de lendas e mitos, e antes de conhecê-lo, foi o Wiltão quem nos apresentou, lembra?, pois então, antes de conhecê-lo, eu jamais poderia imaginar que você — cabeludo do jeito que é e elegantemente mal-encarado — havia recebido a mesma educação adventista que eu, lá nos idos dos 70’s. Achei que aquela fase da minha vida fosse um pesadelo particular e ultrassigiloso, mas eis que você, Barletta, irrompe feito um íncubo do nada glacial, e me diz que passou anos e anos trancado naquela prisão chamada Luzwell! Não acredito! Ou melhor, vou fingir que acredito. Só não vai me dizer que sua mãe também gostava de chupar um grelo e que você, também, foi “convidado a se retirar” — a proposta é no mínimo curiosa: do inferno pra onde? — daquele inferno? Porra, meu! Tá querendo me deixar maluco? Eram três carecas! Neonazistas, cada um devia ter três vezes o seu tamanho. Aonde? Ah, tá. Isso eu não posso contestar porque realmente você estava com os paralelepípedos nas mãos, e se você me dissesse que os trouxe de maio de 68 eu teria de acreditar da mesma for ma, afi nal fui eu quem chegou naquele instante, né? Cazzo, eu vi! O pior é que eu vi, e tenho de acreditar. O que mais gostaria de saber? Merda, merde, shit. Uma hora esses dois iam atravessar a linha. Não tinha como escapar, eu mesmo dei a brecha. Fante e Bukowski, ah, esses dois... não, a mim nunca causaram nenhum tipo de embaraço. Nem o mais óbvio que seria o da influência. Não vou ser arrogante e dizer que os superei. Literatura no é corrida de cem metros rasos, para minha infelicidade. Mas se fosse... já pensou Barletta? As coisas seriam mais fáceis, né? Ia ter muito estorno bancário, muito picaretinha ia ter de me devolver o dinheiro de uns prêmios gatunados por aí. Nem Fante, nem Bukowski, muito menos Dostoiévski. Digamos que achei meu caminho. Talvez aos leitores desatentos, que ainda insistem em comparar meus livros com os livros deles, talvez a esses leitores cause algum tipo de embaraço ou confusão — sinceramente, esse tipo de gente não me interessa. E, afinal de contas, ir do “nada a lugar nenhum numa Transamazônica” — como você diz, Barletta — não é um privilégio somente meu; estamos todos o mesmo fim da picada. Pior é não ter comido o cuzão da Gretchen. Aleluia, Gretchen! Desculpe, Barletta. Não resisti. Machado de Assis? Teve a mesma influência da Márcia Denser. O li, da mesma forma que li os livros da Márcia, depois de ter escrito meus melhores livros. Depois, entendeu? Isso que foi minha salvação. A coisa é intrigante. Existem passagens na obra da Márcia e de Machado de Assis que são idênticas às minhas, as mesmas palavras, os mesmos períodos, a mesma situação. Antes da Márcia, descobri Machado de Assis, e achei que estava sofrendo de encosto. Quase entro na Universal pra resolver a questão. Na verdade, Márcia me livrou de Machado, porque ela está viva e eu descartei a hipótese de “encosto, obsessão” ou algo que o valha. Uma vez, no táxi, o dia quase amanhecendo com trinta anos de atraso, Márcia Denser me disse: “meu prazo de validade venceu”. Claro que devia tê-la beijado, mas sou um bundão, você me conhece, Barletta. Um bundão que escreve para se vingar, por acumulação e espanto; e se Deus existe, e não está do lado da Ivete Sangalo, eu gostaria de pedir a ele que me livrasse do suicídio, que me conservasse a ira, a acumulação e o espanto, e que Deus não permita que depois da reforma ortográfica acabem com o futuro do pretérito, porque se me tirarem o futuro do pretérito, eu peço a conta e vou embora. Caramba, Barletta! Verdade, eu deixei passar batido! Agora lembrei, assim, do nada, lembrei o nome do biscoitinho que me deu as ruas e as esquinas do Rio para que eu as atravessasse de olhos fechados, engraçado; cada um tem a madeleine e o Louvre que merece, uma merda de biscoito cujo sugestivo nome tem tudo a ver comigo e com os presépios aqui do Rio de Janeiro; se eu lhe dissesse que o nome do biscoito é mentirinha, você acreditaria?

*palavra: Marcelo Mirisola
*imagem: Troels Carlsen


Marcelo Mirisolaé autor de contos, crônicas e romances. Publicou, entre outros títulos, O heroi devolvido e O azul do filho morto (ambos de 2000), Joana a contragosto (2005), Proibidão (2008), Memórias da sauna finlandesa (2009) e Charque (2011).



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