A Pianista, Sandra Costa, 2008
Não têm fim, o ar calcinado, os detritos, a escória, as avenidas sempre iluminadas, da peste e da fome. Os edifícios, demasiado altos para o olhar, pétreos, metálicos, monstruosos, ciclopes cegos que vigiam a nossa morte anunciada, demasiado sem vida, demasiado sem morte, cruzes e lápides megalómanas que tanto ignoram os passantes como os glorificam, na sua vileza, na sua podridão, no seu desespero, canino e ululante, esparso na noite, qual sirene apocalíptica. Não tem fim a longa fila, sinuosa, serpeante, dos que pedem sem saber o que pedem, mas sabem que lhes nasceu uma mancha negra no corpo, ou verde, ou cor de cenoura de hipermercado, esta longa fila de leprosos tecnológicos, com sexos radioactivos, com cérebros devorados pelo cancro.
Em breve abrirão os portões e a multidão acéfala encontrará a felicidade perdida momentaneamente achada, na forma de avançados compostos electrónicos, o desejo cibernético ao alcance de um cartão de crédito, a inteira posse de um corpo imaginário, ou real, convertido a uma série de algarismos, de procedimentos, de protocolos capitalistas da posse. Vende-se. Agora com desconto. Agora com ofertas. Agora com direito a uma viagem. A um lugar paradisíaco onde se pode ter sexo com ninfas dopadas pelo preço de um hamburguer. Onde a droga não é crime. Onde o crime também é possível, por um simples câmbio super-sigiloso, veloz, eficaz. Aqui vende-se, e compra-se. Compra-se a alma dos teus antepassados por um diamante, os segredos de pichiché da bisavó do vizinho por uma pepita de ouro, e troca-se, uns seios mais jovens, uns dedos mais esguios, filmes de alcova da criada, pelos teus, ou a morte em directo com cursos rápidos de assassínio por mestres renomados. Tudo no anonimato, tudo sem teres de revelar a tua cara de bicho, tudo só e apenas a troco do teu dinheiro.
Pulsa com um coração de lixo a cidade satânica, as suas artérias estão sempre cheias de sangue, de pus, de fel, de baba. Barramos torradas com a gordura sabe-se lá de quê, de quem, lambemos os lábios à janela, felizes de não estarmos lá fora, na rua, embrulhados num cobertor, embrulhados na merda, e sorrimos, enquanto ouvimos os mil gritos de sofrimento que rasgam todos os megafones, todas as máquinas falantes, todos os satélites e telefones, todas as rádios e telégrafos de navios à beira do naufrágio e de aviões no vórtice da queda, e depois pensamos, ainda não é a minha vez, e esta noite espero uma visita, e comprei um perfume, e acendi uma vela na sala, e ouço aquela velha música de que gosto tanto.
Jesus Carlos