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"A ESCRITA É PRECISAMENTE ESSE COMPROMISSO ENTRE UMA LIBERDADE E UMA LEMBRANÇA."

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“A escrita é precisamente esse compromisso entre uma liberdade e uma lembrança.”[1]
            Suas rugas não escondiam a passagem do tempo.
            Traços marcavam que ali já havia existido outro rosto.
            Cecília vivera em outra época. Pouca curiosidade era despertada diante das modernidades quando comparada à curiosidade de sua neta em saber sobre a vida sem tais ferramentas. Muito curiosa, como era característico da neta, demorou a entender a fragilidade e a constante repetição de sua (bis)avó[2]quando lhe contava sua história antes de sua história com ela. Ria sempre na mesma vírgula, ao anunciar seu recorrente relato como uma grande novidade.
            Não havia mais texto.
            Passou muito tempo para que a menina percebesse que ela era velha. Que outrora já havia sido outra, já esquecida. Suas memórias acompanharam sua antiga fisionomia.
(...)
“É preciso escrever, driblar a malícia do tempo e perpetuar a história”, anunciava como solução a menina. Todavia, Cicília não lia. Seus olhos enfraquecidos recusavam qualquer papel. De que adiantaria, então, o registro de uma história de impossível leitura?
Ossos revestidos de pele marcavam a ausência de forma durante seus últimos dias. Ela morreu antes de seu corpo. A mais maldosa falta de sincronia.
Não havia mais texto. 








[1] Barthes, Roland. O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p.15.
[2] Não gostava de chama-la de “bisavó”, marcava uma distância ainda maior entre elas. Era apenas vó. Era sua única (bisa)vó. Embora existissem todas as outras.

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