I
meu verso é sangue
líquido quente que o corpo conserva
o verso se faz carne
da caligrafia torta do menino que tem fome]
Há um prato de porcelana branco
não há alimento físico
há uma folha de papel branca
onde se lê: via crucis
o menino escreve à lápis
tinta sugere que não há volta.
e não havia]
o gozo físico da boca conjuga o que antes era verbo
arroz branco
feijão preto
alface verde
tomate vermelho
os olhos
voltados para o céu azul
mastigam palavras-alimento.
os jornais anunciam a guerra
os homens dormem num sono profundo
enquanto eu respirava,
você segurava o ar.
a saliva decompôs a palavra
transformou a boca em riacho
para levar os corpos que morreram de fome]
-Mamãe, escreva a palavra "vinagre"!
irrompe a epiderme do lado esquerdo
antes falácia.
O menino faz uma oração antes de comer
a palavra-alimento
e o verbo se faz
II
E o verso
se fez carne.
tecido manchado de sangue.
E do silêncio
que habita o lábio seco da avó que teve febre]
se fez a chuva.
E do verso
se fez carne.
O boi está preso ao pasto verde.
não há mais manto escondendo a nudez
das montanhas de Minas Gerais]
O ouro ainda existe dentro do estômago.
O filho diz ao Pai:
III
-não existe título que defina a dor,
a vida caminhou depressa
pouco se viveu
pouco se ouviu
não esperou o joão crescer
não esperou me ver estudar
não esperou para comer o bolo da vó
não esperou a mãe terminar de estudar
não esperou o tempo passar
não esperou eu me tornar forte
não esperou nada.
apenas foi embora
levando-nos consigo
levando nossos sonhos
as vida se foram.
ninguém mais respira
ninguém está mais aqui.
estamos esperando o milagre acontecer
estamos esperando o deus ouvir nossas preces
estamos esperando a vida pulsar.