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"e nas árvores contei-lhe a estória da menina dos fósforos"

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Ao meu terceiro encontro com Liliana, voltávamos com Celeste do cinema. Aguardamos pelo autocarro no Montijo, debaixo da árvore, quase sem nos atrevermos a respirar, enquanto o Sol foi rastejando lentamente pelo céu branco. A beleza de Celeste era um farrapo, o seu rosto uma ruína. As pupilas queimavam. Viam. A tarde encontrava-se límpida e fria, com uma aspereza que sugeria o fim do dia. Partimos ao nascer da noite.
No dia seguinte dirigi-me à taberna, nervoso e excitado pela hora em que sabia que abandonando as aulas de condução Liliana absorveria ali o seu café. Era a primeira vez em longo tempo que me considerava detentor de um sentimento nobre o suficiente para merecer viver de verdade. A minha respiração misturava-se em nuvens de vapor no ar frio. Ela veio com o longo cabelo castanho a ondular ao vento e sentou-se solenemente na minha mesa, como se houvéssemos combinado. Descalçou as luvas e entregou-mas. Peguei nelas com ambas as mãos e ela contou-me o sonho que sonhara nessa noite, sem afastar os olhos. Eu trouxera um livro da minha autoria na qual escrevera uma dedicatória, retirei-o do banco e o sangue do meu peito borrifou-o, tão vermelho como o vinho do Verão. O vento caiu e também o Sol, mas havíamos combinado ela visitar-me na minha terra.

Liliana chegou ao café esguia, graciosa e ligeira. Eu esperava-a, silencioso e concentrado. Elogiei os seus anéis, ela deu-me os dedos e contou a história de cada um dos ornamentos. Conversamos longamente, depois levei-a ao arvoredo, as nossas botas levantando nuvens de poeira por onde passávamos. Enquanto caminhávamos eu pensava nos olhos de Liliana. Após algum tempo o som da M80 provindo do café atenuou-se e o campo ficou de novo silencioso. Estava tão embrenhado na memória dos olhos dela, a meu lado, que não escutei o que me dizia. Mas conversamos e nas árvores contei-lhe a estória da menina dos fósforos, uma menina que aquecia o lar alheio, em busca de esmola, e morrera no frio. Liliana perguntou-me dos meus deuses. Brincou depois e havia um arco em volta da Lua. Eu apontei para uma estrela. Ensinei-lhe como beber daquela estrela, e ficamos ambos sentados a vibrar a canção luminosa em harmonia.

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 *palavra: trecho do romance poético "O Verão nas Nossas Bocas", de André Consciência.
*imagem: Boyko Kolev 



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