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CONTO DE ALBERTO BRESCIANI

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SALTO POR UM FIO


"porque toda verdadeira iluminação deve emergir da mais profunda escuridão"
(Alexandre Guarnieri, "as guerras búdicas: o sutra do crisântemo de plástico")


E então o cubismo insípido da cidade. A geometria vazia. Pontos de luz múltiplos. Dentro, luz nenhuma. Ela, afirmando que ele era menos do que Gregor Samsa, um violador de espaços aéreos, intruso. Desde o nada, por acaso uma palavra e outra, um olho e outro e os dois.  Ela disse que peles são iguais. E isso nem era ideia sua. Ouviu de uma personagem no cinema. Disse tanto, contou histórias antigas e etruscas. Não houve resistência. As facas do curso de culinária estavam prontas, afiadas. Ele as comprou, algumas delas. Deu-as de presente. Afiadas. Cortes específicos para três dedos, baço, um rim, meio pulso, a carótida. A dele. As armas ofertadas ao próprio abate. Ela protagonizou o fim. E o responsabilizava. Há quem se pretenda imune a culpas. E aquele corpo, sua bélica conformação soprando ar a todo vento. Ela saía e ele a queria de volta. Queria vezes outras. Não pôde esperar desde o início. Bulas, quem as lê? Depois. Depois já não era o mesmo. Desencontros, destroços. Ele, acorrentado à parede, esperava o tiro diário. Os tiros vinham por nada. Atravessavam-lhe as cartilagens, perdiam-se nas pedras. Fuzilaria pontual. A porta destrancada, gavetas, o vaso de crisântemos no chão, a televisão ligada. Ninguém sabia para onde ela foi. E quem poderia saber? O dia em que as naus se desviaram para sempre. E se estilhaçaram nos arrecifes. O naufrágio "reloaded" em pesadelos. Os recortes da urbe pulsam. A sacada escura aconselha ao salto, mas entre o 16º e o 17º dentes superiores algo o irrita e paralisa. Trinta centímetros de fio dental extraídos da embalagem feita mística atam-no a uma outra hora. A clareira se abre no fundo da queda e a água quente do chuveiro condensa o refúgio.



Fotografia: Library of Congress/ USA



*    *    *








Alberto Bresciani é poeta, nasceu no Rio de Janeiro, mas vive em Brasília. Autor de “Incompleto movimento” (Editora José Olympio, 2011), escreve em Nóstres. “Táxon” e “Outubros” compõem seu livro inédito, “Margem de erro”.

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