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Fotografia: Evgen Bavcar |
anjo
as asas do teu desejo
são humanas
e não voam –
as tuas grandes asas urbanas
as asas do desespero
são bombas
e não plumas –
tuas asas de cinza e de chumbo
meu anjo
venha viver comigo
uma estação no inferno
um verão nesta cidade
seca
de aço silício
e quase nenhum
silêncio
***
aurora
deixei a tarde cair
por entre as coxas
da cidade
ela atravessou cruzamentos
escorreu pelo esqueleto
dos prédios
ela – a tarde – manchou
de vermelho
os lençóis brancos da metrópole
da necrópole onde
todos os dias
a luz do dia parte
mas
amanhã cedo
antes que chegue
o sol
virá buscá-la Aurora
a travesti
das unhas cor-de-rosa
***
drama em três atos
no primeiro ato
as tropas marcham
barulhentas
sobre o palco da cidade
(enquanto isso
o poeta espera
a um canto
sua entrada em cena)
no segundo ato
o poeta acende
o candelabro
numa mesa de madeira
(na ribalta
um soldado espirra
com a fumaça
que sobe das velas)
no terceiro ato
apenas cai o pano
incendiado
enquanto todo o teatro se consome entre as chamas
***
ocupação
às 146 famílias ocupantes do
Edifício Wilton Paes de Almeida
que pegou fogo e desabou
no centro de São Paulo
em abril de 2018
as tendas dos sem-
teto todas acesas
sob um céu sem estrelas
o ventre semi
aberto da igreja
sua abóbada sem anjos
um edifício sem
deuses o pó
um prédio após o incêndio
o sujeito sem país
o cidadão nu
na cidade do Paissandu
***
decreto
o poema está nas folhas
o poema está nos fatos
o poema sai da moita
o poema vai ao ato
o poema rouba carros
o poema lavra autos
vejam lá – é um poema
que sobe no cadafalso
o poema está nas ruas
o poema está às margens
o poema um hematoma
no pescoço da cidade
o poema criou a pólvora
incendiou a tua casa
só se vê pó de poema
no telhado e nas calhas
o poema está por dentro
o poema está por fora
o poema é bem o centro
de toda essa porra
um poema na estante
o poema no estandarte
sem poesia o poema
um poema sem ter arte
o poema não é isto
o poema não é aquilo
o poema – meu caro –
é o tiro
e o alvo
Este poema entra em vigor na data de sua publicação.
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Henrique Provinzano Amaral (1993 - ) é mestre em Letras Estrangeiras e Tradução pela USP, tendo estudado a obra do pensador martinicano Édouard Glissant. Foi editor da Cisma – revista de crítica literária e tradução; publicou poemas, textos críticos e traduções (do francês e do crioulo haitiano); organizou e traduziu a Estilhaços: antologia de poesia haitiana contemporânea (Selo Demônio Negro: no prelo). Atualmente, finaliza seu primeiro livro de poemas, intitulado Quatro cantos. Esta seleção apresenta cinco textos inéditos do “segundo canto: poemas do chão da cidade”.