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Cinco poemas de Henrique Amaral

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Fotografia: Evgen Bavcar



anjo


as asas do teu desejo
são humanas
e não voam –
as tuas grandes asas urbanas

as asas do desespero
são bombas
e não plumas –
tuas asas de cinza e de chumbo

meu anjo
venha viver comigo
uma estação no inferno
um verão nesta cidade
             seca
de aço silício
e quase nenhum
silêncio


***


aurora


deixei a tarde cair
por entre as coxas
da cidade
ela atravessou cruzamentos
escorreu pelo esqueleto
                        dos prédios
ela – a tarde – manchou
de vermelho
os lençóis brancos da metrópole
da necrópole onde
           todos os dias
a luz do dia parte

mas
amanhã cedo
antes que chegue
                        o sol
virá buscá-la Aurora
a travesti
das unhas cor-de-rosa


***


drama em três atos


no primeiro ato
as tropas marcham
barulhentas
sobre o palco da cidade

(enquanto isso
o poeta espera
a um canto
sua entrada em cena)

no segundo ato
o poeta acende
o candelabro
numa mesa de madeira

(na ribalta
um soldado espirra
com a fumaça
que sobe das velas)

no terceiro ato
apenas cai o pano
incendiado
enquanto todo o teatro se consome entre as chamas


***


ocupação


às 146 famílias ocupantes do
Edifício Wilton Paes de Almeida
que pegou fogo e desabou
no centro de São Paulo
em abril de 2018


as tendas dos sem-
           teto todas acesas
sob um céu sem estrelas

o ventre semi
            aberto da igreja
sua abóbada sem anjos

um edifício sem
             deuses o pó
um prédio após o incêndio

o sujeito sem país
            o cidadão nu
na cidade do Paissandu


***


decreto


o poema está nas folhas
o poema está nos fatos
o poema sai da moita
o poema vai ao ato

o poema rouba carros
o poema lavra autos
vejam lá – é um poema
que sobe no cadafalso

o poema está nas ruas
o poema está às margens
o poema um hematoma
no pescoço da cidade

o poema criou a pólvora
incendiou a tua casa
só se vê pó de poema
no telhado e nas calhas

o poema está por dentro
o poema está por fora
o poema é bem o centro
de toda essa porra

um poema na estante
o poema no estandarte
sem poesia o poema
um poema sem ter arte

o poema não é isto
o poema não é aquilo
o poema – meu caro –
é o tiro
                          e o alvo


Este poema entra em vigor na data de sua publicação.

________________________________

Henrique Provinzano Amaral (1993 - ) é mestre em Letras Estrangeiras e Tradução pela USP, tendo estudado a obra do pensador martinicano Édouard Glissant. Foi editor da Cisma – revista de crítica literária e tradução; publicou poemas, textos críticos e traduções (do francês e do crioulo haitiano); organizou e traduziu a Estilhaços: antologia de poesia haitiana contemporânea (Selo Demônio Negro: no prelo). Atualmente, finaliza seu primeiro livro de poemas, intitulado Quatro cantos. Esta seleção apresenta cinco textos inéditos do “segundo canto: poemas do chão da cidade”.


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