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Autorretrato - Vivian Maier |
PARTENOGÊNESE
Ainda que narre com glória,
que tenha clara oratória
e ore minhas aves marias;
ainda que conheça a história,
e ore minhas aves marias;
ainda que conheça a história,
que não lute como em Tróia
e não me sujem as sangrias;
como me orgulho da trajetória
se estende-se sob macieira frondosa,
e não me sujem as sangrias;
como me orgulho da trajetória
se estende-se sob macieira frondosa,
se é uma singela fração de memória
dum anjo fugidio?
Não há escapatória,
dum anjo fugidio?
Não há escapatória,
minha sina é ser
a resposta
duma pergunta
retórica.
a resposta
duma pergunta
retórica.
SORTILÉGIO
A sombra que persigo
acidentalmente se te vejo
é a vontade de transar contigo,
então transo, se há desejo.
Transo. Peco.
O meu ímpeto mais íntimo sigo
se recíproco for como o vejo.
“Sacrilégio!” Condena o clérigo,
mas o sinto, e sentir é o que almejo.
Se isto não reconheço, há perigo:
me torno a responsável por meu despejo;
me encontro enquanto conta e cobrador, crime e castigo.
Tê-lo como sentimento, sacra heresia, é meu ensejo.
Enquanto me cabe, te cortejo,
mas por respeito a ti, amigo,
não faço questão de beijo;
apenas se me permites, prossigo.
Se não me cabe, respeito.
Não é preciso contato físico,
vestido permanece meu peito.
Mas, confessa-te,
e se agradar-me como me queres,
Fico.
E transo
No riso
E no silêncio.
Sobre a relva, no sereno.
À vista, pro mundo inteiro
Ver
Como te vejo:
À distância,
Em segredo.
Teu olhar no meu, faceiro.
Transo na carícia,
Acariciando teu cabelo.
Espero. Me entrego. Transo na espera.
Transo. Peco. Peço. Beijo.
Canto. Marulho. Fervo. Festejo. Frevo. Vejo
Todo um concerto no teu silêncio,
E o teu silêncio.
No pecado, sacrilégio, não nego.
Por subterfúgio ou privilégio
Me deifico e nas sagradas páginas
De meu livro aberto há escrito
Que nosso sexo, meu bem,
nosso sexo
é sortilégio.
AMOR DE MÃE
Qual foi a mudança,
caríssima mãe minha,
que me deixaste de herança?
Que supere as entrelinhas,
que corra em minha seiva,
que molde-me a espinha.
Não na aparência,
frívola, como uma marca
na tenra folha de uma planta.
Pudera eu anestesiar-me das lembranças:
só a bipolaridade insana
que te consumia
dia após dia,
te fazia de fantoche,
te jogava na cama,
te engomava com lençol de seda e te seduzia,
sussurrando com uma voz lânguida que nada valias.
Só pra depois de meses de penumbra
escancarar as cortinas,
te inebriar de voracidade intensa
e inesgotável energia.
Durante os dias tagarelava
torrentes de frases desconexas.
Exaurida, dormias na fala
e nem percebias.
Às noites, sumias sem mandar notícias.
Eu nunca achei a linha
entre você e essa capa,
essa máscara doentia
que tanto me agredia.
Poucas vezes com tapas,
minha pele ainda é macia;
por vezes demais com as travas
que punhas em minha cabeça.
Te permeava uma pandemia,
a escancarada caixa de pandora
cuja maldição me pertencia
e eu permanecia presa
do lado de fora.
Tuas palavras me encurralavam todo dia ao lado
das coisas jogadas na casa sempre bagunçada
a minha vida sempre bagunçada sempre uma
mentira as gritarias na sacada as gritarias na
cozinha a ansiedade doía na minha essência não
sabia respirar porque me arranhava a garganta
e era sempre um berro que saía eu tanto te
queria eu tanto me queria era sempre gritaria!
Então, me diga,
qual foi a herança
que tu deixaste
em minha vida?
Eu aflita com cada novo problema?
As aranhas que,
com suas patas delgadas e compridas,
me sobem a garganta
como subiam as paredes de casa?
Você sempre se despedia
e as varria pro jardim
porque tua superstição dizia
que chegaria a sorte enfim.
Estas emoções vulcânicas?
As alegrias extasiantes,
as dores tirânicas
e os vulcões
que me ajudou a fazer
pra aula de ciência.
A gente colocou terra e grama
ao redor de uma garrafa
pra fazer uma montanha,
e bicarbonato de sódio
pra fazer espuma.
Deixou-me as noites vazias,
nas quais adentro
e caminho a esmo
procurando fantasias
pra saciar a imaginação hiperativa.
Nas noites vazias
me levava pra ouvir
o coachar dos sapos e das rãs.
Pegava uma na tua mão adulta
e botava na minha, pequena.
Juntas, acariciávamos sua pele
gosmenta e fria.
Deixou-me as roupas
que só usava porque era forçada.
Joguei tudo fora e escolhi novas,
orgulhosa como tu
e tuas calças psicodélicas,
bolsas de perua,
pedras e jóias
com as quais te adornava inteira.
Deixou-me a personalidade que contesta:
feminismo escrito na testa
no meio da engenharia.
Os cabelos curtos como os teus cachos
vermelhos, aos quarenta uma professora infantil
e motoqueira assim mesmo, cabeça erguida, peito
arfado, sem desculpa.
E me deixou este coração em chamas,
a voz que grita,
o olhar mirando a lua
e a amizade com as aranhas.
Eu fiz de tudo pra fugir,
tentei ser uma nova ilha;
nada mudou meu porvir,
é inútil fugir de profecia:
tal mãe, tal filha.
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Giulia Ciprandi foi parida em Lages-SC, em 1996, e desde então segue nascendo.
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Giulia Ciprandi foi parida em Lages-SC, em 1996, e desde então segue nascendo.