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O estábulo, Solidão, Poema fora dele mesmo, Manhattan e Tycho Brahe, cinco poemas de Jorge Lucio de Campos

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What a day-What a day: a lost world. The preparation of bone glue (1921-1925), Max Ernst.



O estábulo

O boi lambeu-me o rosto com uma língua incestuosa. Seus olhos rolavam como duas bilhas cansadas. No canto da boca havia um risinho platônico, luminoso de empatia.

Uma menina de cabelos cheios pôs o rosto na janela e repetiu turbulenta:

 Você não deve fazê-lo. Ao menos não deveria. Um animal como este precisa ser lido.

 É o que pretendo – retruquei – tão logo me ajeite na parede, com as pernas afastadas.

 Você acha que pode? – perguntou, não me dando tempo para responder. – Logo o capataz irá chicoteá-lo.

 Farei isso antes que venha – lhe disse. – Sou um asceta e mastigo gardênias matinais.

 Não sei ao certo se assim será.  Respondeu-me.

Pondo-me de pé, observei por uma fresta o regato que passava em frente ao celeiro e acrescentei

 Tentarei assim mesmo.

 Tudo bem – ela insistiu – com uma palidez fria na alma.

Um cheiro de cozinha impregnou o ambiente. Senti a boca ressecar e pus-me à espera do capataz. Quando a porta, enfim, se abriu, meu coração disparou. O boi, assustado, eriçou-se e saltou por cima de tudo. Olhou em torno e, com um ar infeliz, disparou rumo aos rochedos, deixando um rastro de lágrimas e diamantes.



In: Desimagens (Clube de Autores, 2019).







Solidão

Se enriqueço
se achegam

Se adoeço
se afastam

Num dia frio
(tristeza)

Se prospero
me abraçam

Se não posso
me negam

Num dia frio
(desterro)

Se floresço
me afagam

Se fracasso
me assolam

Num dia frio

(solidão)




In: Véspera do rosto (Clube de Autores, 2019).







Poema fora dele mesmo

a Michel Foucault

A língua me
passa sentidos

que eu nunca
quis ter

(ao escrever
só faço

irritá-la)

Não posso
Não quero −

não tenho
como



In: Véspera do rosto (Clube de Autores, 2019).






Manhattan

a Jenny Holzer

Todos os homens são bons
Maus são os livros e os bichos
A melhor coisa é a vulgaridade
Deus morreu, mas o diabo não
É o ódio que abençoa a vida
Destruir vale mais que criar
Das cinzas virá o novo fim
A intolerância nos coroará
Tudo acabará em breve
Sorria




In: Véspera do rosto (Clube de Autores, 2019).







Tycho Brahe

1

Quem sabe
um dia, num

painel de pedras
não pintadas

a água lavre
desenhos

de três cores

2

Quem sabe
um dia, quando

o mês vier
rochoso

eu perca
invernos




In: Véspera do rosto (Clube de Autores, 2019).







____________________
Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual (1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio (2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2014), Sob a lâmpada de quartzo (2014), Paisagem bárbara (2014), Através (2017), Véspera do rosto (2017), O triunfo dos dias (2018), A grande noite perdida (2018) e Desimagens (2018).



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