
What a day-What a day: a lost world. The preparation of bone glue (1921-1925), Max Ernst.
O estábulo
O boi lambeu-me o rosto com uma língua incestuosa. Seus olhos rolavam como duas bilhas cansadas. No canto da boca havia um risinho platônico, luminoso de empatia.
Uma menina de cabelos cheios pôs o rosto na janela e repetiu turbulenta:
− Você não deve fazê-lo. Ao menos não deveria. Um animal como este precisa ser lido.
− É o que pretendo – retruquei – tão logo me ajeite na parede, com as pernas afastadas.
− Você acha que pode? – perguntou, não me dando tempo para responder. – Logo o capataz irá chicoteá-lo.
− Farei isso antes que venha – lhe disse. – Sou um asceta e mastigo gardênias matinais.
− Não sei ao certo se assim será. − Respondeu-me.
Pondo-me de pé, observei por uma fresta o regato que passava em frente ao celeiro e acrescentei
− Tentarei assim mesmo.
− Tudo bem – ela insistiu – com uma palidez fria na alma.
Um cheiro de cozinha impregnou o ambiente. Senti a boca ressecar e pus-me à espera do capataz. Quando a porta, enfim, se abriu, meu coração disparou. O boi, assustado, eriçou-se e saltou por cima de tudo. Olhou em torno e, com um ar infeliz, disparou rumo aos rochedos, deixando um rastro de lágrimas e diamantes.
In: Desimagens (Clube de Autores, 2019).
Solidão
Se enriqueço
se achegam
Se adoeço
se afastam
Num dia frio
(tristeza)
Se prospero
me abraçam
Se não posso
me negam
Num dia frio
(desterro)
Se floresço
me afagam
Se fracasso
me assolam
Num dia frio
(solidão)
In: Véspera do rosto (Clube de Autores, 2019).
Poema fora dele mesmo
In: Véspera do rosto (Clube de Autores, 2019).
Manhattan
In: Véspera do rosto (Clube de Autores, 2019).
Tycho Brahe
In: Véspera do rosto (Clube de Autores, 2019).
Poema fora dele mesmo
a Michel Foucault
A língua me
passa sentidos
que eu nunca
quis ter
(ao escrever
só faço
irritá-la)
Não posso
Não quero −
não tenho
como
como
In: Véspera do rosto (Clube de Autores, 2019).
Manhattan
a Jenny Holzer
Todos os homens são bons
Maus são os livros e os bichos
A melhor coisa é a vulgaridade
A melhor coisa é a vulgaridade
Deus morreu, mas o diabo não
É o ódio que abençoa a vida
Destruir vale mais que criar
Das cinzas virá o novo fim
A intolerância nos coroará
Tudo acabará em breve
Sorria
In: Véspera do rosto (Clube de Autores, 2019).
Tycho Brahe
1
Quem sabe
um dia, num
painel de pedras
não pintadas
a água lavre
desenhos
de três cores
2
Quem sabe
um dia, quando
o mês vier
rochoso
eu perca
invernos
In: Véspera do rosto (Clube de Autores, 2019).
In: Véspera do rosto (Clube de Autores, 2019).
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Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual (1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio (2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2014), Sob a lâmpada de quartzo (2014), Paisagem bárbara (2014), Através (2017), Véspera do rosto (2017), O triunfo dos dias (2018), A grande noite perdida (2018) e Desimagens (2018).