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Observação minuciosa, Da altura de um sapatinho formando um único corpo com ela, Rezar sem interrupção, O sacrifício e Contemplação, cinco poemas de Jorge Lucio de Campos

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Self-portrait (1981), James Valerio.



Observação minuciosa

a James Valerio

1

No embotamento da noite, nada a fazer senão sentar-me e esperar. Mas tais atos farão com que me sinta outra pessoa. A solidão é dura nessas horas. A cabeça gira e as ideias, num atletismo indescritível, disparam a fazer conexões entre as coisas.

Nada, até então, que impressione ou compense registrar: uma régua, o telefone, o despertador, os papéis de sempre, um submarino de brinquedo, ali deixado por engano, só para atrair uma atenção imerecida.

Cena simples na coincidência dos fatos. Sob tal ótica, tudo acabaria bem se não me visse compelido a pensar e, dentro em pouco, encharcado de suor – vexado por expor meus limites – não abandonasse a sala, num movimento brusco, sem nada escrever.

2

Penso quando quero e não preciso. Neste caso, quando meu pensamento quer que eu o faça ou decide pensar sem mim, num absurdo ato de egoísmo e solidão. Aí me torno um joguete dele e é duro admitir isso.

Penso quando me deito à sombra de uma árvore ou me misturo com o silêncio da casa e imagino na escuridão geometrias multicores, amorfias que se espalham mais do que deviam no buraco solto do imaginário.

Há muitas máquinas dentro de um homem. Umas que geram e desvelam. Outras que matam e ocultam. Umas que farejam e devoram. Outras que sentem e induzem ao que é preciso.

É o que ocorre quando penso o que penso ou o que pensa em mim. Ora elaboro conceitos que preenchem minhas fendas. Ora transtorno tudo ao redor e o amasso como um livro caduco.

Todo este maquinário sou eu mesmo, para o que me faz bem e mal. Continuo a pensar e insisto. Como se tal ato me fizesse valer a pena.

3

De repente, me viro e, insone, observo os objetos jogados na escrivaninha. Não são tantos e os identifico, sem dificuldade. Sua desordem é uma espécie de “nova ordem”, pois, de algum modo, me satisfaz. Poderia me levantar e ir direto ao baú de ninharias e de lá tirar algo insólito. Algo que não conseguisse, por mais que tentasse – por maior que fosse meu empenho ou boa vontade – identificar, descrever, nomear. Uma vez escolhido, o manuseio e exponho sob a luz do abajur. Aprecio sua configuração. Capturo, com paciência, suas formas.

A questão parece inevitável. A interrogação vem à boca e desarranja a fala. Ei-la que surge: “afinal, o que é isso?” O que é este artefato em minha mão que tanto custo a entender? Engraçado como não dizemos: “como é isso?” Tratamos tal pergunta como se fosse: “como isso me aparece”? Ou ainda: “que aparência isso tem?” Sei que não significam a mesma coisa. No fundo, basta pensar um níquel a mais para se perceber o quanto aquela pergunta é impenetrável e perversa. Trate-se de um ente simples em seu dar-se (um cinzeiro, cigarrilha ou lapiseira) ou de um outro mais complexo: um de nós, um ser humano.

Tento de novo: “o que é isso que se chama homem”. Inúmeras são ou foram as definições propostas. Pinço uma ao léu de um bloco de notas. Apelo a Cioran que alega: “é um gorila que perdeu os pelos e os substituiu por ideais, um gorila com luvas, forjador de deuses, agravando suas caretas e adorando o céu”. Ou a Carrossa que afirma: “é a única criatura da terra que tem vontade de olhar para o interior da outra”. Ou – e simplificando bastante – a um dicionário que diz: “é qualquer indivíduo pertencente à espécie animal, que apresenta o maior grau de complexidade na escala evolutiva”.

De qualquer jeito, sinto que não saberei o que é a coisa-homem, enquanto perguntar o que ela é. No máximo, direi sua trama: carne, ossos e tendões cujo cheiro e toque podem não ser agradáveis, cujo gosto posso não apreciar e, o que é pior, recusar para o resto da vida. Por outro lado, os objetos jogados na escrivaninha, em sua enorme dificuldade de definição, não chegam a ser trabalhosos. Ao menos, me soa indiferente defini-los, pois já disse: não são muitos e os identificar de nada serviria, a esta altura.


Decerto não vale a pena perder o sono por tão pouco. Às quatro da matina, o melhor a fazer é virar para o lado: tentar dormir, de uma vez por todas.



In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).







Da altura de um sapatinho formando um único corpo com ela

a Man Ray

1

(Tudo depende do momento que não temos). De algo que não somos. Simplesmente se inicia uma fuga: nos olhos, uma forma de viver.

2

As línguas travam uma batalha. Quem sabe, devêssemos calar, ouvir o que se pensa, deslizar entre as linhas do coração.

3

A vida se esfrega na escuridão das testas.

4

A porta se abre sozinha e trememos de medo: cavalos tímidos, formigas que se vão.




In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).







Rezar sem interrupção

a Bill Viola

Deceparam a cabeça, mas o corpo, que não sabe, continua a se agitar. As mãos apalpam o vazio. Os nervos disparam raios. As pernas galopam, esbaforidas.
               
Tudo não passa de umesforço sem sentido e o que era uma usina de vida vira uma peça de açougue exposta ao vento, aos insetos, à deterioração.


Feliz só mesmo ela que, embrulhada num plástico – um mais que adequado espaço térmico – não pensará como antes, não sofrerá como antes, não esquentará a cabeça.



In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).







O sacrifício

a Andrei Tarkovski

Roubaram os discos voadores. Desesperado, abri as cortinas e me deparei com o mundo todo de uma vez. O absoluto corria entre os carros num tom coloquial. Estapeei a fronte: “o que estou fazendo aqui?” Pouco importam as trocas de favores e as poses de estátua. Muito ainda há por vir. Meus ouvidos deslizam no corrimão do imponderável. Devo me deixar atropelar, dar respostas inflamadas ao que não ouço. Gostaria que me furtassem a carne.


Algo se deu sem que eu quisesse. Talvez não seja a ocasião, mas se encaixa. Alguém me chama lá fora. O eterno da vida me enreda. Alguns dizem o que não devem e o lugar se entrega. Eis o nosso quesito, o nosso folguedo, a nossa causa. Não há como ignorar a malha da noite. Um desafio avança em segredo. O próximo passo é o pior. Não o do corpo que diz: “sei voar”. Ninguém me avisou de nada. Desconheço o porquê da estória.



In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).







Contemplação

a Franz Kafka


Temente ao homem, Deus entrou numa toca e pôs-se a sussurrar.



In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).







____________________
Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta, revisor e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual (1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio (2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2019), Sob a lâmpada de quartzo (2019), Paisagem bárbara (2019), Através (2019), Véspera do rosto (2019), O triunfo dos dias (2019), A grande noite perdida (2019) e Desimagens (2019).

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