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Imagem: screenshot "Suspiria" |
endurecer para não morrer
em minha defesa eu me transformarei
numa pedra
dura bruta casca dura
o corpo rasgado do viado agora cai
sobre mim a anatomia de sua dor
posso sentir meus ossos esmigalharem
com os seus ponteiros tentando passar
depressa o tempo para o momento onde
a dor não dói mais e a dor é transmutada
em vermelho sangue manchando a pupila
a vida indo e vindo ondas do mar
mal consigo ver iemanjá e as ondas
vindo e indo: a vida ainda não decidiu
se vai ficar – nesse soco atingindo o maxilar
rígido sobre a face dessa noite – ou partir
esse corpo em cinco chagas
a moral dilacera a minha carne e a multidão
quer a minha roupa e reparte o meu silêncio
para que eu não tenha mais boca
nem falar nem comer nesse calvário
eu já fui vinte e seis vezes não se cansam
matar o estranho o pecado o presente
não é natal nem dia santo mas tanto se fez
e tanto fazem uma prece para que morram
os viados sobrevivem e sobrevoam
nesse silêncio de domingo Júlia se esqueceu
que até a alma endurece e
se esquece que é alma
para um dia voltar
a sentir
numa pedra
dura bruta casca dura
o corpo rasgado do viado agora cai
sobre mim a anatomia de sua dor
posso sentir meus ossos esmigalharem
com os seus ponteiros tentando passar
depressa o tempo para o momento onde
a dor não dói mais e a dor é transmutada
em vermelho sangue manchando a pupila
a vida indo e vindo ondas do mar
mal consigo ver iemanjá e as ondas
vindo e indo: a vida ainda não decidiu
se vai ficar – nesse soco atingindo o maxilar
rígido sobre a face dessa noite – ou partir
esse corpo em cinco chagas
a moral dilacera a minha carne e a multidão
quer a minha roupa e reparte o meu silêncio
para que eu não tenha mais boca
nem falar nem comer nesse calvário
eu já fui vinte e seis vezes não se cansam
matar o estranho o pecado o presente
não é natal nem dia santo mas tanto se fez
e tanto fazem uma prece para que morram
os viados sobrevivem e sobrevoam
nesse silêncio de domingo Júlia se esqueceu
que até a alma endurece e
se esquece que é alma
para um dia voltar
a sentir
***
aquário
[ou: poema para maíra]
eu nunca acreditei em astrologia
e lá vem ela, maíra, com toda sua força quebrando
cada um dos meus copos vazios
"você precisa derramar o vazio no mundo", ela me diz
como se a sua boca estivesse emoldurada
proferindo um oráculo com um q de ironia
seus lábios retraídos embaixo de um tom vermelho
você sempre passa esse batom?
meu corpo treme convulsivamente
e ambos sabemos no nosso silêncio
às vezes é melhor a queda ser fatal
e não restar nenhum osso inteiro
do que ficar agonizando e padecendo
em cima da cama nós já nascemos
e morremos mais de vinte vezes nos braços
de um poema rasurado entre as coxas
não há papel que nos salve da 'primeira morte' em diante
nós não temos mais dedos
para contar
estou – ou estamos? – encapsulados
dentro do aquário
dois peixes sem asas tentando
voar
e lá vem ela, maíra, com toda sua força quebrando
cada um dos meus copos vazios
"você precisa derramar o vazio no mundo", ela me diz
como se a sua boca estivesse emoldurada
proferindo um oráculo com um q de ironia
seus lábios retraídos embaixo de um tom vermelho
você sempre passa esse batom?
meu corpo treme convulsivamente
e ambos sabemos no nosso silêncio
às vezes é melhor a queda ser fatal
e não restar nenhum osso inteiro
do que ficar agonizando e padecendo
em cima da cama nós já nascemos
e morremos mais de vinte vezes nos braços
de um poema rasurado entre as coxas
não há papel que nos salve da 'primeira morte' em diante
nós não temos mais dedos
para contar
estou – ou estamos? – encapsulados
dentro do aquário
dois peixes sem asas tentando
voar
***
a cama sobre teu corpo
o copo entre as tuas mãos
e o chão sustentando
nossa última queda
rasgue o céu da minha boca
com a tua língua sorve o cinza
tinge de azul sem nuvens
sem paraquedas lançamos
copos baratos taças finas
e garrafas com vinho secando
a minha boca esperando
o pequeno desastre
: cacos de vidros espalhados
por todos os lados giramos
em círculos e tontos nos perdemos
mãos ávidas pelo porto
sangue e vinho se misturando
e tu bebendo tudo
o copo entre as tuas mãos
e o chão sustentando
nossa última queda
rasgue o céu da minha boca
com a tua língua sorve o cinza
tinge de azul sem nuvens
sem paraquedas lançamos
copos baratos taças finas
e garrafas com vinho secando
a minha boca esperando
o pequeno desastre
: cacos de vidros espalhados
por todos os lados giramos
em círculos e tontos nos perdemos
mãos ávidas pelo porto
sangue e vinho se misturando
e tu bebendo tudo
"é pra não desperdiçar(,) (o) amor."
tu dizias.
tu dizias.
***
búfalo
ele me olha com olhos
de superfície que teme
a minha ânsia profunda
de querê-lo até a última gota
ele tem medo de que eu
na minha imensa delicadeza
de um búfalo engula
sua alma e nunca mais
a devolva ao seu corpo
marcado por mãos que
só conhecem o raso
de superfície que teme
a minha ânsia profunda
de querê-lo até a última gota
ele tem medo de que eu
na minha imensa delicadeza
de um búfalo engula
sua alma e nunca mais
a devolva ao seu corpo
marcado por mãos que
só conhecem o raso
a mesma intensidade
que me teme
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Rafael João, 27 anos, baiano que foi criado na terra da garoa, psicólogo, finge que sabe escrever pra suportar a dor de existir em excesso, nasceu com uma bomba-relógio no lugar do coração e tem medo que alguém descubra. Escreve como se estivesse num ritual de exorcismo sem cruz, sem velas ou água benta. Autor do livro “Pelicano”, publicado pela Editora Fractal (2018).