The long awaited (2018), Patricia Piccinini.
A impossibilidade física da morte na mente de alguém vivo
Nos pés um quasar, sem que eu sinta pena de ofuscá-lo.
In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).
Quem eu sou, afinal? Embora doa na resiliência de meu ego, sou apenas um, como todo mundo, nem melhor nem pior que ninguém. Tal constatação, contudo − construída ao longo de anos de ilusão, decepção e amadurecimento − nunca me impediu de tentar fazer a diferença. Para tanto, me foi dada a chance de uma vida inteira que, de forma alguma, ousarei desperdiçar. Buscarei, até o fim de meus dias, realizar um pequeno milagre: acrescentar algo ao mundo que, desde o início, me acolheu.
In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).
Só agora vejo na janela − o olhar perdido no horizonte − o quanto a poesia cabe numa noite sem estrelas.
In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).
Gostaria de não ter, mas tenho – e isso não me agrada nem um pouco – uma visão desencantada de minha espécie. Mesmo me esforçando por respeitá-las, o modo de ser de certas pessoas, se não me causa horror, me constrange e desanima. Na verdade, ao longo dos anos, não conheci muitas que tivessem valido a pena. Conto-as nos dedos e é por tê-las admirado que as guardo no coração.
Suportei a perda de algumas. Não sei se suportarei a perda de outras, principalmente das que ainda amo. Por egoísmo, ser-me-á mais fácil morrer antes. Assim me pouparei de uma dor que nem consigo projetar. De um modo ou de outro, lamento não chegar ao outono de minha vida otimista e confiante em relação à humanidade. Peço desculpas por importuná-los com esta confissão.
In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).
O tão aguardado
a Patricia Piccinini
Para quem tem a sorte de tê-la, parabéns: você é um privilegiado. Não deixe de beijar seu rosto, de acariciar seus cabelos, de sentir o calor de seu corpo. Aproveite, até o último minuto, sua presença mágica, pois o amor que uma mãe devota ao filho é uma espécie de caminho a que se dá valor bem tarde. E aí, não se podendo mais percorrê-lo (já não estando ela por aqui), você se sentirá só − terrível, irremediável e dolorosamente só − na dureza natural do mundo.
In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).
Acordo e espero que meu corpo o faça. Depois o que, então? Observar, por exemplo, um de meus polegares – o que fica no braço esquerdo e está agora do outro lado da cama.
Ele me olha atentamente, como se tivesse um rosto próprio, à maneira de um desses desenhos simplórios que fazemos ao ficarmos, caneta à mão, tempo demais diante de um papel.
3
Recosto-me nos travesseiros e, na penumbra do quarto, ouço bem mais do que vejo. O despertador pulveriza o que irrompe lá fora. Mas para que serve o tempo a não ser para que o gastemos e nos gastemos com ele?
O escuro se multiplica e me pisoteia, enquanto aguardo que alguém abra a porta, traga café, chinelos macios e me diga o que fazer, bem no meio de um dia que eu já nem conheço.
Não há o que compense o esforço de viver de novo, embora me sinta jovem para correr atrás do céu e beber as nuvens.
Se, ao menos, eu pudesse entender o tempo. Se, ao menos, eu chegasse a atravessar a cama.
In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).
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Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual(1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio (2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2014), Sob a lâmpada de quartzo (2014), Paisagem bárbara (2014), Através (2017), Véspera do rosto (2017), O triunfo dos dias (2018), A grande noite perdida (2018) e Desimagens (Bookess, 2018).