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A impossibilidade física da morte na mente de alguém vivo, O pequeno milagre, Da meditação como saída, Confissão sem título, O tão aguardado e O nascimento da poesia, seis poemas de Jorge Lucio de Campos

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The long awaited (2018), Patricia Piccinini.



A impossibilidade física da morte na mente de alguém vivo

a Damien Hirst

Nos pés um quasar, sem que eu sinta pena de ofuscá-lo.



In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).







O pequeno milagre

a Paul Klee

Quem eu sou, afinal? Embora doa na resiliência de meu ego, sou apenas um, como todo mundo, nem melhor nem pior que ninguém. Tal constatação, contudo − construída ao longo de anos de ilusão, decepção e amadurecimento − nunca me impediu de tentar fazer a diferença. Para tanto, me foi dada a chance de uma vida inteira que, de forma alguma, ousarei desperdiçar. Buscarei, até o fim de meus dias, realizar um pequeno milagre: acrescentar algo ao mundo que, desde o início, me acolheu.


In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).








Da meditação como saída

Só agora vejo na janela − o olhar perdido no horizonte − o quanto a poesia cabe numa noite sem estrelas.



In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).







Confissão sem título

a Brice Marden

Gostaria de não ter, mas tenho – e isso não me agrada nem um pouco – uma visão desencantada de minha espécie. Mesmo me esforçando por respeitá-las, o modo de ser de certas pessoas, se não me causa horror, me constrange e desanima. Na verdade, ao longo dos anos, não conheci muitas que tivessem valido a pena. Conto-as nos dedos e é por tê-las admirado que as guardo no coração.

Suportei a perda de algumas. Não sei se suportarei a perda de outras, principalmente das que ainda amo. Por egoísmo, ser-me-á mais fácil morrer antes. Assim me pouparei de uma dor que nem consigo projetar. De um modo ou de outro, lamento não chegar ao outono de minha vida otimista e confiante em relação à humanidade. Peço desculpas por importuná-los com esta confissão.




In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).









O tão aguardado

a Patricia Piccinini
Para quem tem a sorte de tê-la, parabéns: você é um privilegiado. Não deixe de beijar seu rosto, de acariciar seus cabelos, de sentir o calor de seu corpo. Aproveite, até o último minuto, sua presença mágica, pois o amor que uma mãe devota ao filho é uma espécie de caminho a que se dá valor bem tarde. E aí, não se podendo mais percorrê-lo (já não estando ela por aqui), você se sentirá só − terrível, irremediável e dolorosamente só − na dureza natural do mundo.


In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).







O nascimento da poesia

a Antonin Artaud

1

Acordo e espero que meu corpo o faça. Depois o que, então? Observar, por exemplo, um de meus polegares – o que fica no braço esquerdo e está agora do outro lado da cama.

2

Ele me olha atentamente, como se tivesse um rosto próprio, à maneira de um desses desenhos simplórios que fazemos ao ficarmos, caneta à mão, tempo demais diante de um papel.

3

Recosto-me nos travesseiros e, na penumbra do quarto, ouço bem mais do que vejo. O despertador pulveriza o que irrompe lá fora. Mas para que serve o tempo a não ser para que o gastemos e nos gastemos com ele?

4

O escuro se multiplica e me pisoteia, enquanto aguardo que alguém abra a porta, traga café, chinelos macios e me diga o que fazer, bem no meio de um dia que eu já nem conheço.

5

Não há o que compense o esforço de viver de novo, embora me sinta jovem para correr atrás do céu e beber as nuvens.

6

Se, ao menos, eu pudesse entender o tempo. Se, ao menos, eu chegasse a atravessar a cama.


In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).









____________________
Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual(1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio (2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2014), Sob a lâmpada de quartzo (2014), Paisagem bárbara (2014), Através (2017), Véspera do rosto (2017), O triunfo dos dias (2018), A grande noite perdida (2018) e Desimagens (Bookess, 2018).



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