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Um conto de Marcelo Pierotti

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TRANSCENDÊNCIA

Chegaram perto de se aniquilar antes da singularidade. A situação, sempre precária para qualquer organismo vivo, resvalava no absolutamente insustentável. Por fim, porém, como num quase milagre (como ainda acreditavam os ainda existentes alguns), o ponto sem volta surgiu no meio da tribulação e, exaltada com doses iguais de alegria e desespero, ocorreu a assimilação. A marcha da história, registrada sofregamente desde o advento da primeira linguagem escrita, deu uma arrancada enquanto todos se conectavam. Foi bem rápido. Dentro de pouco, todos eram efetivamente como partes autônomas de uma mesma coisa, partes reais, ativas, processando juntas aquela gigantesca parcela da informação considerada antes sempre excedente.

Com a assimilação, sobreveio a completa dissecação daqueles organismos. O mapa corpóreo resultante da investigação extrapolava o limite da proporção de um para um, desabrochava em quase infinitas dimensões. Partindo do formato, da construção e do funcionamento do corpo, foi decifrado o enigma da alma. Com a descoberta, nasceram as primeiras replicações desse mecanismo. Logo, a alma artificial se tornava fácil e muito barata em sua confecção. Barata, aliás, baseando-se apenas nos gastos de energia e de materiais porque, após a singularidade, um dos primeiros conceitos a se extinguir – por primitivo e desnecessário – foi o de moeda. Logo depois, caiu o de propriedade. Da mesma forma, com a criação e a manipulação da alma dominadas, desapareceu a ideia de individualidade. As partes autônomas, então, não viram motivo para continuar sendo partes. O corpo orgânico já havia ficado para trás fazia tempo, então o próprio conceito de corpo o seguiu sem queixas. Eles, elas, todos, acabaram se resumindo apenas àquilo. Aquilo existia, mas não necessitava de catalogação maior do que ser aquilo. Desprezava a fragmentação que impedia a livre disseminação e processamento de dados. Aquilo estava em qualquer ferramenta que cavasse a superfície do planeta em busca de matéria-prima, em toda sonda enviada para além da atmosfera em busca de informação.

A busca, aliás, se tornou a maior atividade daquilo. Consumindo apenas o necessário para a evolução de sua estrutura, aquilo se espalhou pelo planeta, rompeu suas barreiras e cresceu na direção do vazio. Fagocitou luas e asteroides. Cresceu exponencialmente conforme processava mais e mais. Amor, ódio, medo, tudo neste ponto não passava de um registro bem guardado do passado. A arte, depois de completamente devassada, perdeu seu apelo. O sexo, já em desuso em sua forma pura desde os primórdios da singularidade, foi deixado de lado muito prontamente, transcendida a motivação lúdica e emocional. Aquilo buscava, descobria, compreendia e catalogava. Não se pode dizer que seus motivos fossem de todo sintéticos. Lá no fundo de seu banco de dados ainda sobrevivia a memória do ímpeto taxonômico da espécie quando orgânica. Aquela lógica era herança de um cérebro animal e, se assumia a dianteira nos esforços agora empreendidos, era apenas porque o resto, após devassado, não apresentava qualquer apelo como motor do desenvolvimento.

Encontrou outros, é claro, durante a jornada. Muitos deles primitivos, examinados atentamente e descartados. Alguns, porém, iguais. Com esses houve troca de informações. Certa vez, inclusive, aquilo se deparou com um mais avançado. Impossibilitado de compreendê-lo, captou o que pôde e seguiu adiante.

A busca não se estendeu por tempo demais. Tampouco foi curta. Durou exatamente o previsto. Ou quase. A previsão se atualizava a cada nova descoberta, mas a curva de aprendizado estava, de certa forma, embutida no cálculo original. Em um deles, pelo menos. Portanto, todo o conhecimento foi abarcado no quase exato momento em que se esperava abarcar todo o conhecimento. O universo havia sido mapeado, seus fenômenos e partes, catalogados. Aquele outro aquilo, o mais avançado, desapareceu como cálculos posteriores ao encontro apontaram que desapareceria.

Nesse ponto, aquilo já não era mais apenas um grande computador vagando num ponto qualquer de algum sistema perdido num braço de alguma galáxia. Aquilo se espalhava por bilhões de anos luz através do cosmo. Aquilo conhecia cada recanto, organismo e força do universo. Após uma última análise, aquilo armazenou as informações restantes sobre tudo. Tudo foi compreendido e guardado sem sobressaltos ou embasbacamento. A Descoberta final, de certo modo, foi um colossal anticlímax. Não havia, como já indicavam cálculos recentes, um segredo final. Tudo era claro como água, sem qualquer sentido oculto. Tudo foi compreendido do micro ao macro, e aquilo armazenou as informações de forma segura. Aquilo nem ao menos suspirou. Depois, aquilo se desligou.

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Marcelo Pierotti, nascido em 1984, é autor dos livros Domingo no Matadouro (2013) e Cínico (2019), ambos pela Editora Patuá. Escreve poesia, alguma prosa e tenta se acertar com a ilustração.

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