ODE AO DEUS CORNUDO
Eu te retiro, vítima, do mundo onde estavas e onde só poderias estar reduzido ao estado de coisa.
Georges Bataille
enfim esqueceste o mundo antigo, companheiro, & o sublime deus cornudo desse mundo
o antigo deus cornudo do arcaico princípio lunar, ctônico, das orgias pagãs, comunais
das orgias das almas & dos corpos em comunhão com o grande mistério
o grande mistério que é a origem de tudo, ao contrário do que diz teu crasso marxismo de manual de cursinho
o grande mistério do deus cornudo, filho & amante espargindo seu sêmen sobre a face da mater gozoza chamada ísis, deméter, maria
o deus cuja galhada é a lua negra das sementes que explodem na luxúria das flores do sol & da sombra
& das vidas que brotam & morrem & renascem através da interminável mandala das transmigrações
o deus inscrito há 30 mil anos nas cavernas de trois-frères pelos primeiros xâmanes em transe provocado por cogumelos
pelos primeiros xâmanes cujos cânticos deram início a toda ciência do primata humano
o deus cornudo dos cervos de sete galhos bramindo no bosque à lua cheia com as senhoras dos animais dispostas em círculo ao redor do falo da figueira
o deus cornudo do falo da figueira que iluminou orfeu, buda & jesus
orfeu, buda, jesus & todos os mestres iluminados que transmitiram como apóstolos a sublime canção do deus cornudo
enfim esqueceste o mundo antigo, companheiro, & por essa razão todas as quartas à noite tua menina & eu fazíamos 69 enquanto secretariavas alguma tola reunião do partido
mas lamentavelmente não leste charles fourier ou saberias que a civilização organizou o regime dos amores através de uma opressão generalizada & portanto de uma generalizada hipocrisia
& que com isso os machos criaram para si mesmos 76 espécies de cornos, a saber: em projeto ou antecipado, militar ou fanfarrão, arguto ou cauteloso, irreprochável ou vítima, auxiliar ou coadjuvante, transcendente ou de alto vôo, federal ou coligado, etc.
lamentavelmente esqueceste o mundo antigo, companheiro, & em seu lugar não dispões de mais nada além de um planeta deserto & repleto de máquinas
& anacrônicas ideologias de classe média: tua luta foi traída pela crença no modelo tecnoburocrático do pós-guerra, último produto da cultura branca, patriarcal & militarista que há 3.500 anos traz na ponta da espada a produtividade, os metais & o estado, desde a antiga índia, creta & egito até a atual china, os estados unidos & cuba, enviando pagãos, hereges, anarquistas & outros dissidentes (a lista é longa) para cemitérios, campos de concentração ou hospitais psiquiátricos, transformando lugares sagrados em imensos presídios políticos em que se pratica a lavagem cerebral & a tortura física, como no méxico sob cortez ou no tibete sob mao tsé-tung, através dos imperativos do poder, do progresso & do trabalho de que teu partido é a derradeira excrescência
mas eu te perdoo, companheiro; eu te compreendo & te perdoo
porque nas minhas veias também corre sangue ariano, cultura cristã & desespero moderno
relembra agora o deus cornudo, louva a Fêmea dos Cabelos de Tranças de Serpentes, estende teu pescoço suíno sob a faca
& baixa a cabeça em homenagem à tiara de seus sete galhos
de Contemplações Panfletárias
Diadema, SP, 1995-96