Grandezas do ínfimo – em “Migalhas”, de André Luiz Pinto.
Por Krishnamurti Góes dos Anjos (*)
O escritor André Luiz Pinto, após 20 anos de estrada literária, brinda o público com mais uma obra, onde parece se concretizar uma poética de cunho minimalista. Minimalista por um lado, no sentido da economia verbal. Por outro, no sentido de dizer muito em poucas palavras. Decorre disso que a poesia apresentada nesse “Migalhas”, não respeita o legado cartesiano de nossa época. É na sabedoria das coisas e circunstâncias não-pensadas, na intimidade das coisas que o nosso viver acelerado não empresta importância, no encantamento poético-funcional que as palavras, imagens e construções frasais adquirem, que a poesia de André Pinto se realiza. É uma aposta, repetimos, na ‘importância das coisas’ e no encantamento que elas proporcionam no seu viés de simplicidade. Não se trata da linguagem corriqueira, prática e comunicativa das situações cotidianas do mundo, mas um exercício muito produtivo da função poética da língua. Dentro da minúcia dos fragmentos, dos restos, dos ciscos, que se vai formando um universo em pedaços que ganha unidade à medida que as imagens poéticas são criadas. Poema a poema, construindo uma central de sensações e afetos:
“Migalha”
“Fiz como você pediu / cortei o poeta / em versos / e os espalhei / em um prédio abandonado / numa caixa d’água vazia / pra ninguém saber”.
Em entrevista ao site “Como escreve”, o autor declarou: “Assim são os meus livros, não são temáticos, mas ambientes abertos, um modo de me sintonizar no mundo, emocionalmente. Foi sempre desse jeito. Os títulos surgiram na medida em que eu ia sentindo o lugar onde os poemas me traziam. Mas meus livros tratam da mesma coisa: alguém que se sente à margem, certa mistura de orgulho, de injustiça e insatisfação. Daí os títulos: Flor à margem, Ao léu, Mas valia, Nós, os dinossauros, e agora este, Migalha.” A Ironia, inclusive é um tempero a mais:
“Ironia? Sem dúvida, mas sem cicuta. / Cada um sonha com a revolução que merece / Revolução sem sair da poltrona. / Amor em não sair do lugar. / Um post em repúdio à ação da polícia. / Sonho (apenas sonho) com muitas formas de rebeldia.”
Com versos minimalistas, alguns compostos de poucas palavras, os poemas são de uma criação original. Lemos ainda textos claros, objetivos (o autor faz uso, muitas vezes, de uma narratividade), que também nos direcionam a reflexões filosóficas, a partir das coisas simples que se relacionam com a vida e a existência humana. Ainda que sejam linhas simplistas, o estilo autoral aponta para o uso de figuras de linguagem diversificadas. Nos raros textos configurados em poesia tradicional, os versos são curtos, livres e soltos, com a ausência de rimas, as quais surgem às vezes ao acaso. Também não há preocupação com a métrica, fato este que, confirma aquele pensamento de Antônio Cândido quando salienta que ao enfrentarmos um poema escrito segundo a versificação tradicional, devidamente metrificado e rimado, nossa análise tende a se apoiar nas características aparentes, que definem a fisionomia poética, podendo nos induzir a não ir mais além. Os poemas livres proporcionam encontrar significados sem nos prendermos em demasia à estrutura. Embora com temáticas que revelam um sentido muitas vezes desencadeador da mais pura reflexão existencial, os versos de André Luiz nos encaminham à uma leitura a partir dos significados dos vocábulos, relacionando-os com os dramas da existência:
“Pensa que está livre, sossegado / no entanto só depois descobre / a casa foi construída na areia / Os fantasmas serão encarados, sozinho / em meio à maré cheia / Despedidas não te livram do fracasso / emoções não marcam hora. / A razão talvez seja: entender que acabou / e que a saudade pode ser saudável / e que separar pode ser necessário / para curar a vida”.
“Quanto / mais amo / a cidade esnoba / o muro segue / como um pergaminho / vai do anúncio / de compra / de carro batido / à propaganda da cartomante / O trem passa / de bairro em bairro / Há circulação de milhares / gente batendo na trave / Há também muitos mendigos / pernas cheias / de pinos, consertadas / numa espelunca”.
“Os latidos / dos cães pela rua / a neblina que cobre a cidade / De que adianta abrir persianas / se a paisagem se esquadrinha por grades? / Com a cidade cercada por nuvens / talvez seja mais simples / é o frio que continua queimando / o mofo que chega no quarto / nódoas de vazio”
É de se frisar também, que, entretanto, o autor não dispensa o tratamento apurado do estilo, o qual se afirma a partir do emprego sistemático de uma linguagem seca, objetiva e visceralmente prosaica, voltada para a narração de pequenos episódios do dia-a-dia, situações vivenciadas, a brutalidade do cotidiano, a pouca importância que damos ao sofrimento do próximo, ou a pura indiferença quanto às nossas relações afetivas, num mundo tomado pelo interesse pessoal imediato e desumano. Senão vejamos:
“Quando saio com meu filho costumo passar por uma rua detrás. Na entrada de um dos prédios, uma árvore em que Tales adora tocar as folhas, sentindo os contornos. Um dos moradores interrompeu num dia desses nosso passeio: vejo que o garoto adora tocar na planta, deixa eu arrancar algumas folhas a mais para ele... Por favor, não faça... mesmo assim fez. Quando as pessoas irão entender que experimentar é justamente o contrário de ter?”
“Jogue logo essa terra e vamos embora. / Para de chorar por quem nunca prestou. / Tinha que comer mesmo capim pela raiz... e olha / que a mãe sou eu. / Que esperava, deu só desgosto, ficasse no orfanato. / E agora a gente aqui, tendo / que fingir que gosta”.
O poeta Augusto de Campos escreveu um belíssimo estudo sobre Rimbaud no qual identifica que o poeta francês conseguiu “corroer os limites entre a prosa e o verso”. Sabia Rimbaud que o sentido da palavra não importa para a poesia, o que importa é uma certa música, um certo modo de dizer as coisas, como defendia Borges:
“Que vontade é essa / em que eu não consigo levantar / e acabo deitando mais cedo / quando consigo / Em que sinto / que o melhor é curtir os pesadelos / em vez de acordar / Estou no mar / O céu é de um turquesa inesquecível / Sem brisa / Sem chance alguma.”
André Luiz Pinto também dilui limites com seus flashes dos resíduos de vivências, com as partículas do nosso individualismo, com anotações sarcásticas das poeiras de conformismos que nos sufocam.
“Sugestão”
“Depois de levar o filho ao zoológico, não esqueça de o levar também a uma prisão. / Assim o garoto terá uma visão completa das espécies esquecidas.”
Com efeito, constrói sua obra, a nos lembrar que certas verdades, inclusive as que estão mais particularmente ligadas às nossas origens, parecem muito mais transparentes na simplicidade de uma migalha do que em arranjos rebuscados.
“Prazer, esse sou eu / filho de doméstica / numa época em que / patrões cismavam / em chamar de filhas / as mucamas. Eu / criado numa mansão / da Barra, obrigado a amar / patrões como avós / sem direito de herança. / Uma coisa aprendi: / a ler livros e a me irritar / com facilidade – lá, onde / o sinal está vermelho / e sempre acabo errando / a baliza – onde ninguém / divide nada, quando / até quem te chamou de sobrinho / diz um dia: a casa é nossa / deves partir. Tá bom, disse. / Só me dá duas semanas”.
Mira certeira a desse poeta.
Livro: “Migalhas”, Poesias de André Luiz Pinto. Editora 7Letras, Rio de Janeiro – RJ, 2018, 72p. - ISBN 978-85-421-0730-2 - Link para compra e pronto envio:
(*) Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, Pesquisador, e Crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo– Romance Histórico, Gato de Telhado– Contos, Um Novo Século– Contos, Embriagado Intelecto e outros contos e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 27 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações, dentre os quais: Literatura BR, Homo Literatus, Mallarmargens, Diversos Afins, Jornal RelevO ,Revista Subversa, Germina Revista de Literatura e Arte, Suplemento Correio das Artes, São Paulo Review, Revista InComunidade de Portugal, Revista Laranja Origina e Revista Fórum. ///
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André Luiz Pinto da Rochanasceu em 1975, Vila Isabel, Rio. Doutor em Filosofia pela Uerj, leciona na Faetec e Seeduc. Casado com Cristina Melo, pai de Tales Melo da Rocha. É autor de: Flor à margem (1999), Um brinco de cetim/Um pediente de satén (Maneco, 2003), Primeiro de Abril (Hedra, 2004), isto (Espectro Editorial, 2005), Ao léu (Bem-te-vi, 2007), Terno Novo (7Letras, 2012), Mas valia (Megamíni, 2016), Nós, os dinossauros (Patuá, 2016).