Pauly Mullach não despontou no cenário europeu nem no fim da década de vinte nem no início da de trinta. Contudo, isso lhe foi inteiramente irrelevante. Alegando não pertencer à pintura, compôs poucas telas. Mesmo assim, essas circularam numa dúzia ou mais de mãos estratégicas (como as de Berthold Archer e Hans Weiss, notórios colecionadores da época) que fizeram com que se tornassem respeitadas e admiradas em Amsterdã. Cada uma tinha o formato e as dimensões diferentes das demais, tendo sido realizada segundo técnicas variadas. Seus temas variaram entre o escorço simples e a paisagem livre, passando pelas naturezas-mortas. Não era afeita à abstração que considerava estéril e gratuita. Não vendeu uma única obra e se orgulhava disso, pois achava que a arte e a ambição não combinavam, assim como o arroubo estético e a vaidade pessoal. Realizou uma rápida viagem a Paris durante a qual desenhou num bloquinho todo o Quartier Latin.
O único trabalho de Mullach que não se perdeu foi o óleo "Poltrona ao lado de uma cadeira"− ao que parece, realizado entre 1931 e 1933 − no qual, sobre um fundo avermelhado, se destacam uma mesa e um espelho coberto por um lençol verde. A poltrona é composta com fios ligeiros e garbosos e a cadeira, meio que emaranhada em pernas finas e curvas. O curioso é que ambas passam praticamente despercebidas ao olhar. A atmosfera sugere nostalgia e solidão, à maneira dos poemas visuais de Mabilleau e das marinhas matinais de Van Breeteren. A sala ao redor parece gorda e inofensiva, e seus adereços de segunda mão. Aliás, todo o conjunto visual se assemelha a um grande ferro velho. Há ainda um colchão de espuma − mostrado apenas em parte − que não evoca ou acrescenta nada à cena. Pauly morreu nos anos cinquenta, sem saber exatamente o que queria com suas telas. Decerto sem também imaginar que um texto pueril como este seria escrito a seu respeito.In: Desimagens (Bookess, 2018).
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Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual (1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio (2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2014), Sob a lâmpada de quartzo (2014), Paisagem bárbara (2014), Através (2017), Véspera do rosto (2017), O triunfo dos dias (2018), A grande noite perdida (2018) e Desimagens (2018).