DUELO DE POBRES DIABOS
Por Krishnamurti Góes dos Anjos
No livro o “O Segundo Sexo”(1949) de Simone de Beauvoir, que sem dúvida é um clássico da teoria feminista e cuja premissa básica é a de que a mulher não é o “segundo sexo” ou o “outro” por razões naturais e imutáveis, mas sim por uma série de processos sociais e históricos que criaram esta situação, encontramos a citação: “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”.
Hoje, em pleno ano de 2018, portanto quase 70 anos depois da publicação daquele livro, se nos ativermos à sentença, “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”, no cenário em que vivemos no mundo e, sobretudo no Brasil, obtemos a quase certeza de que já não sabemos mais quem é de fato o “opressor”, quem é “o oprimido”? Perdemos ou estamos em vias de perder aquilo que nos distingue enquanto seres vivos: a capacidade de discernir com o uso da razão. Em vias de escolher o tal do próximo Presidente da República ante as opções que o “sistema” (no mar de 35 partidos políticos), apresentou à população. E o que restou para o segundo turno, são duas opções. Ambas péssimas. Trata-se de escolher o ruim ou o ainda pior. A critério do puro “achismo” de cada um. Os índices de rejeição estão em alta. Estão aí, cada qual correndo e procurando aliciar incautos com suas estatísticas assustadoras para fazer convencer pelo negativo. Quem é o mais rejeitado?
Enquanto isso temos números que crescem a cada dia. 14 milhões de desempregados, uma economia em frangalhos e o recrudescimento da violência com um triste balanço de 63.000 homicídios anuais. Eis nosso belíssimo quadro social no qual figuramos na “rabeira” das estatísticas entre as nações do mundo. Desemprego, violência, criminalidade, educação, moradia, saúde, racismo, fome, etc e etc e etc são alguns dos grandes problemas sociais do Brasil, expressões do grau a que chegaram asdesigualdades sociais.Mas afinal quem são os “opressores”, quais “os oprimidos”? Desorientação e inquietação generalizada. Quem está certo? Quem está dizendo verdades? Quem está se aproveitando da situação? Quem está, descaradamente, mentindo? No que vai dar tudo isso? Perguntamos-nos perplexos.
Não há mágico, nem pai de santo, nem político pleno de retóricas ou “especialistas”, que enxerguem nessa nossa realidade prosaica de que há uma cruel dívida histórica que precisa ser resgatada? Para ver se andamos fora das curvas do tobogã que se tornou o país. Que não há como prosseguir com essa dita “democracia representativa” quenão é nada representativa, nem mesmo estatisticamente, tanto em nível municipal, estadual ou federal ela é uma aberração. Não podemos mais continuar esse capitalismo de cartório onde alguns só ganham e muito, (malas de dinheiro), que uma nação não pode progredir como tal, quando um punhado de pessoas ganha o mesmo que os 100 milhões mais pobres, que essa mentalidade neoliberal radical de suprimir gastos sociais também não pode continuar, que - aí grande questão -, boa parte da população só pensa em poder aproveitar de alguma coisa para si, se e somente se, tiver algum benefício próprio? Alguém pode responder se uma coisa assim tem alguma chance de dar certo? Precisa-se ser vidente para inferir?
Falamos há pouco em “cruel dívida histórica”. Sim; e vem se agravando desde a nossa colonização de exploração, caracterizada pela atuação predatória, que acabou criando uma elite local intermediária do saque e da pilhagem. Uma elite que se identificou com o país do saqueador, do imperialista, e não com seu próprio lugar. Então o que ocorreu de fato, por gerações e gerações, é que ninguém estava interessado em construir porra de sociedade decente nenhuma aqui. Nosso problema estrutural continua dando frutos podres. A começar pela colonização de exploração baseada no trabalho escravo. Marcas presentes o tempo todo na história brasileira que continuam se refletindo na desigualdade extrema, absurda e imoral do Brasil. Essa a tragédia de nascença sempre varrida para debaixo do tapete.
Muito bem; 5 parágrafos de puro desabafo ? Não, reflexos da leitura de “Duelos”, novo livro de contos da senhora Eltânia André. Com mão firme de escritora experiente, a autora joga luz em uma série de tipos sociais invisíveis. São representações reais, plenamente observáveis para quem não está somente interessado no próprio umbigo. Flagrantes da vida do povo brasileiro, com suas dores, suas misérias, suas ambições, suas constantes decepções e frustrações. Sempre sonhos caídos na lama...
A autora habilmente consegue nos aproximar de suas criaturas de maneira eficiente perscrutando seus anseios e as limitações que a sociedade infamemente desigual e individualista impõe. Há situações e criaturas de todos os naipes. Umas em afã de libertação, outras resignando-se na sombra de suas angústias, como acontece em: “Sono profundo” ou “Os fantasmas da rua Azevedo”. Destaque para este último conto onde, parece-nos, haver uma fina ironia quanto a proliferação do mal entre os homens. Sempre achamos infantilmente que o mal feito a alguém não recai sobre todos. São contos memoráveis e no entanto, de uma tristeza pungente, ainda que pura realidade ficcionalizada em alto grau de possibilidades de reflexão, fica-nos o gosto amargo das vidas de pobres-diabos.
Observamos através das personagens, que a escritora é uma artesã, artífice do texto – não no sentido estético – mas na forma como aproveita cada passagem para aproximar o leitor da história. Menos floreios e mais imersão. Ela mesmo, talvez em momento de êxtase quanto aos absurdos que é obrigada a relatar, não se aguenta e acaba por invadir pessoalmente suas histórias, como acontece em “Uma das mil e uma noites”:
“Enquanto escrevia este infame e exagerado conto, outra voz saltou: você pode salvá-lo, não deixe o narrador seqüestrar a sua força, não alimente a selvageria dos personagens, eles estão ávidos por existir nessa penumbra de ódio e insanidade, eles querem o alento do mercado para se venderem como literatura. Salve a Wanderléa, porra! Resignado, entendo que nunca pude salvar ninguém. Apenas indignar-me. Sinto náuseas. Não me reestabeleço. Os personagens assaltam-me, pedem para que a literatura seja vida e sopre neles o espírito que os moverá. Dia a dia está escancarado em neon:estamos em guerra. O absurdo parece imobilizar-nos. Não pude prosseguir com as palavras, o corte final não nos pouparia, entretanto... Em fuga, acossado, entre paredes, no fio da lâmina, no beco sem saída. Essa brutalidade apartou-me do meu país, eu, estrangeiro na própria terra, vítima do apartheid social. A violência aterroriza nossos dias, e o que a antecede também, há o medo generalizado, o pavor instalado no inconsciente coletivo que nessa situação, ou em outra, seremos vítimas do eterno descaso com a civilização. A política num retrocesso, o escárnio com o futuro, deslealdade e interesses individuais – o bem coletivo esquecido”.
Tornamo-nos pobres-diabos. O pobre-diabo hoje não é somente o mais reles pequeno-burguês à beira da morte em um hospital como lemos em “Enquanto lia Faulkener” ou a representante da classe média medrosa encurralada pelo sistema, tal e qual a comerciariazinha de “Sono profundo”, ou o trabalhador que próximo a sua aposentadoria é demitido sem justa causa, exposto em “O trabalho liberta”, ou ainda, porque a lista a cada dia se torna maior, a favelada vítima das enchentes que lhe roubam os poucos trapos que possui, de “Águas de dezembro”. Ele, o pobre-diabo, se encarna nessas figuras, mas é também o desamparado, o solitário de “Garibaldi”, ou ainda o desajeitado, o inadequado, o sem-lugar, o peso-morto, o malfadado, como lemos em “O retorno do fogo”. São muitos os pobres-diabos dos textos da senhora Eltânia André, textos preocupados com as consequências íntimas deste estado de abandono social, de desordem generalizada que assola o país, de que é exemplo contundente o conto “Matança de passarinhos”, que retrata a cruel realidade das crianças que sequer podem estudar em paz, simplesmente porque há tiroteios e balas perdidas pelas ruas desse espetáculo dantesco que vai se tornando comum no país. Pois é. Assim, com a profunda dor na consciência, a nossa “velha angústia a chafurdar a alma coletiva”,é que nos resta observar aqui, antes de um ponto final que evidencie a nossa imensa vergonha e dizer com todas as letras, que os párias em permanente duelo somos nós! Todos nós...
Em tempo. Uma frase retirada de Hamlet (Shakespeare) fecha o volume de contos da senhora Eltânia André, e nos faz pensar em dois aspectos de uma mesma questão. O primeiro é de que a nossa realidade social no Brasil de hoje ficou muito bem exposta. O segundo, e este grotesco, é o do nosso comportamento ante o real. Querem saber qual é? “The rest is silence”.
15/10/2018
Livro: “Duelos”– Contos de Eltânia André – Editora Patuá – São Paulo - SP. 2018, 122 p.
ISBN 978-85-5833-829-7
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Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, Pesquisador, e Crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo– Romance Histórico, Gato de Telhado– Contos, Um Novo Século– Contos, Embriagado Intelecto e outros contose Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações, dentre os quais: Literatura BR, Homo Literatus, Mallarmargens, Diversos Afins, Jornal RelevO,Revista Subversa, Germina Revista de Literatura e Arte, Suplemento Correio das Artes, São Paulo Review, Revista InComunidade de Portugal, e Revista Laranja Original.