ORDEM E CAOS
Não consigo parar de brincar com nossas certezas incontestáveis.
M. C. Escher
Quinhentos hectares de terra, a sua parte na herança do avô. Uma fazenda formada com trezentos mil pés de café, gado bom em boa quantidade, nada de que um engenheiro formado pela Escola Politécnica soubesse cuidar. Assim, manter os mesmos empregados, substituída a confiança do avô pela sua desconfiança. Que tudo andasse bem e, com o tempo, mudar o passo. Estudar linhagens para o gado até decidir-se por investimento mais alto: um reprodutor laureado. Mais: consultar agrônomos, outros livros – com minúcias –, e então experimentar alguns cafés exóticos, ainda que em poucas linhas. Reformar a sede, o essencial. Casar-se com a prima mais próxima. Um e dois herdeiros, logo nos primeiros anos. Amarrar tudo na linha reta da prosperidade. Não teria a quem justificar a compra do pluviômetro, modelo Ville de Paris, adquirido como curiosidade própria da sua formação. Mas costumava dizer que o instrumento auxiliava nos cuidados com as plantas, orientando a irrigação. Todos os dias, efetuar pessoalmente as anotações sobre a precipitação na fazenda. Nas raras ausências, um mesmo e treinado funcionário, soterrado por recomendações. Desde mil novecentos e trinta e oito, por setenta e cinco infalíveis anos, as anotações com letra firme, diariamente. Somente a morte interrompeu seus registros. Estranhas circunstâncias em torno do afogamento no lago da fazenda, quando ele tomara o cuidado de dobrar o inseparável paletó, ajeitando-o sobre os sapatos e as meias, na margem mais distante da sede. Um mal súbito, se praticar natação todo vestido fosse próprio dele. Sem sinais de desgosto que ameaçasse sua organizada existência com a violência do desespero. Meses passados até que o filho mais velho, pelo legado do pai, reunisse papéis com anotações, estudos, cartas, os mais de dez cadernos de capa preta com os registros diários do pluviômetro. A curiosidade herdada, mais que valorizar os dados reunidos, para construir gráficos com a memória das precipitações na fazenda durante o período registrado. E então, a descoberta de interesse: o dia nove de janeiro. A partir do sexagésimo ano de registro, a data aparecia em destaque, com tinta vermelha. Um rápido exame bastou para perceber que o dia nove de janeiro registrava a ocorrência de chuvas desde o início das medições, invariavelmente. Setenta e cinco anos e nenhum único nove de janeiro sem chuvas. Buscou outras datas com semelhante característica e depois, inversamente, um dia sem um único registro de chuva: sem sucesso. O pai o percebera. Daí, a data com a derradeira anotação do caderno: nove de janeiro de dois mil e treze. A memória não se enganava: a morte do pai no dia seguinte a esse último registro, em dez de janeiro de dois mil e treze, um dia ensolarado, de céu tão limpo quanto aquele que o antecedera. As linhas, as páginas vazias do caderno: sinais da decepção. Não pudera continuar aceitando os conselhos de uma realidade que se contradiz.
PREDESTINAÇÃO
Bexiga negra. Alastrada como fogo na macega. Chegou junto com a notícia de que vinha. Falou-se nela e já estava. Disseram que um arreeiro de Sorocaba, que os mercenários alemães do Corpo de Estrangeiros, que um que estivera com as putas em Rio Grande. Disseram tanto. E num mês, o mal levou cinquenta. Disseram que era praga, a purgar com procissão. Partiu o cortejo em prece da Matriz da Conceição Aparecida, em direção ao Ibirapuitã, pisando o chão da Capela Queimada, o andor do Coração de Jesus à frente, o de Nossa Senhora do Rosário depois, o povo atrás. Nunca se viu tão compacta, tão fervorosa. Mais um mês e a bexiga levou oitenta. Na casa do menino, chegou com a irmã pequena, dois anos. A mãe implorou, fez novena a São Roque: ficasse marcada, mas vivesse. Não foi ao enterro porque caiu também, as feridas rebentando até não restar pele seca. Para cuidar da terra, da casa, ficaram Quirino e o pai, cuja alma morreu na guerra. Todo cedo, o homem à porta do quarto com a cuia de mate: "São horas". Daí, acudir as duas vacas, os porcos, as aves, as plantas. Carregar o leite para os vizinhos. Depois, o que mais houvesse. Um dia acordou com o sol. Foi achar o pai torcido na cama, suando. Parentes, vizinhos, ninguém lhe valeu. Veio uma velha forra, Maria Mina. Apontou o doente e sentenciou: "Omolu tá zangado". Benzeu cinco vezes, com faca, reza. Preparou deburu para o inimigo. Falta de fé ou praga forte e o menino ficou só. Uns tios pegaram os porcos para cuidar. Sumiram as galinhas, uma vaca, depois a outra. O menino esperou Omolu, com faca e raiva. O outro levava dois, dez, e se escondia. Espalhou marca no rosto de gente tanta. Depois sumiu. Vieram os soldados e Quirino foi com eles. Queria aprender a matar para enfrentar Omolu. Os soldados riram. Um doutor disse que a bexiga das vacas dera resistência, salvara o menino. Ele ouviu.
Estourou revolução. O moço Quirino já lanceiro experimentado, montava como pouca gente. Vieram ordens de Porto Alegre, ordens da campanha. Optou pela fronteira e pelas charqueadas, porque era justo. Custou refrear a espera, guardando quartel, enquanto se falava à solta que os combates, que Bento Gonçalves, que a capital sitiada. Por fim, subiu com o general Netto e achou luta numa coxilha às margens do arroio Seival. Veio a carga dos imperiais, sustentada a lança. Quirino destacado, derribando inimigos, cavoucando as linhas. Não houve tiro, lança, espada ou punhal que o tocasse. Ganho o dia, nem sujara a farda com sangue que fosse seu. Na campina forrada pelos caídos, procurou insistente até que ficasse escuro. Cataram as armas, cuidaram os feridos dos seus, degolaram os contrários, livraram de peso os mortos. Mas não houve quem visse o que fosse carregando as almas. O padre que rezava missa à tropa recebeu impaciente as perguntas de Quirino. Isso, de viver, morrer, era assunto e mistério de Deus. Insistisse por entender era arvorar-se profeta, desagradar ao criador, pecado negro. Ele decidiu insistir.
AUTORRETRATO EM ESPELHO ESFÉRICO
No princípio, caminhava lento, seu passo imperceptível sugeria imobilidade. Chegava e seguia sem ser notado, paciente e mudo. Sua tarefa invisível notava-se em repentinas surpresas. Assim, a espera – se havia – era eternidades.
Mas a ansiedade é atirar-se nos braços da incerteza. Açoitado por descuido, foi pouco a pouco se fazendo mais presente. Era voltar-me e encontrar os sinais de sua passagem em detalhes mínimos. Era apertar a vista para capturá-lo num vislumbre, dobrando uma esquina, à frente.
E foi ganhando intimidades. Mudou-se para a casa ao lado, depois mais próximo ainda. Hoje, estende os braços a minha frente, caminha num andar vigoroso, não demonstra mais qualquer indecisão. Insaciável, devora tudo o que encontra. E o que encontra é tudo: sentimentos, objetos, lembranças, desejos, pessoas, lugares. Onisciente e onipresente, ignora todas as tentativas para tocá-lo ou detê-lo. É pura pressa e voracidade, castigando-me o entendimento, fustigando-me o corpo. Frequenta o fundo dos espelhos, de onde me olha e sorri.
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Nascido em São Paulo, Edmar Monteiro Filho é bacharel em História e doutor em Teoria e História Literária. Como contista, recebeu os prêmios Guimarães Rosa, da Rádio França Internacional, Cruz e Souza, da Fundação Catarinense de Cultura, Luiz Vilela, da Fundação Cultural de Ituiutaba, MG, e Cidade de Belo Horizonte. Publicou os livros de contos Aquários, Às Vésperas do Incêndio e Que Fim Levou Rick Jones?, a novela Azande e os livros de poesia A Lápis e Halma Húmida, entre outros. Seu primeiro romance, Fita azul, figurou entre os finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura, edição 2012. Seu último livro de contos, Atlas do Impossível, figura entre os semifinalistas do Prêmio Oceanos, edição 2018. Atualmente, reside em Amparo SP.