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Do ínfimo de Maria João Cantinho, uma breve resenha por Marcelo Ariel

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O lirismo é uma das linhas de força da poesia portuguesa e tem nas poetas suas maiores aliadas e tradutoras, de Fiama Brandão passando por Llansol, estas linhas nos trazem Maria João Cantinho que  neste seu DO ÍNFIMO que saiu no Brasil pela Penalux, chega a um denso e forte poema que pensa o mundo a partir de um eu lírico que se dissolve nele e ao mesmo tempo se converte em uma dobra do próprio ato de escrever o poema : "Escrever, página a página, /esta luz, a voz sem memória,/ decifrar o lento passo dos animais/ e escutar o coração das estrelas,/ caminhando numa única direcção/ o vazio do horizonte. " diz o verso do poema ' O lento passo da mónadas' que uso aqui como exemplo. Há uma aproximação desse eu lírico com a escola elegíaca de um Holderlin, mas não iremos nos aprofundar nisso nesta breve resenha, é algo que merece um ensaio de maior fôlego. Há um outro verso de um poema dedicado ao compositor Rachmaninov que também gostaria de destacar : "Essa força que reclama o alto/ e o nome de cada ser,/ essa luz irrepetível/ abrindo os caminhos da manhã/inteira/ no som do que já é passado/e ainda não aberto/ ao que virá. O que é."  .Aqui há uma evocação  DO ABERTO, da dimensão ontológica tão frequente nos poemas de Rilke e do próprio Holderlin, conforme luminosos ensaios que a eles dedicaram Dora Ferreira da Silva e Heidegger. Álias, existe um profundo  diálogo entre Maria Cantinho e Dora Ferreira, a ser mapeado por críticos mais capazes.  A seção final do livro possui a novela-poema em prosa CALIGRAFIA DA SOLIDÃO que a  autora dedica ao genial Vicente Franz  Cecim e que conversa em espelho com seu livro O SERDESPANTO de um modo que considero singular como um texto que se conecta sultimente e afetivamente com outro e a meu ver , o decifra , com comprova esse pequeno excerto : "Os olhos do Homem-Terra abriram-se e o Espanto escrevia neles, nesse lume subitamente aceso que tudo devorava. O mundo demorava-se no seu olhar como o Tempo que se estivesse suspendido: o movimento das nuvens correndo o céu, a Terra, a que ele permanecia abraçado como um recém-nascido, à floresta a sua volta, a noite que voava, alado poldro negro.  Olhos que desconheciam o medo, navegando no limiar do mundo, na carne do silêncio puro. Vento, fala, animais , rio, tudo se tornava novo porque era olhado na Inocência.". DO ÍNFIMO infelizmente foi lançado no Brasil sem a acolhida que merecia, talvez  consequência do abismo em que estamos, em meio a um golpe parlamentar e eleições acirradas com risco de cairmos em abismos neofascistas. Em todo caso, este livro de Maria João que é quase homônima da famosa pianista, com sua poderosa voz que escuta outras vozes é um antídoto. 

Marcelo Ariel

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