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Veja, é isto

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Imagem: Michal Macku




Eu estava insone. Ela circundava meu rosto afastando teatralmente alguns espectros dos meus olhos. Cutucava-me o ombro. No início eu volvia irritado a cabeça. Ela insistia. Sussurrava ao meu ouvido “o que você tem?”, “vamos, me diga”, “me mostre”. Depois debandei. Em estado inexorável, imóvel. Pouca consciência, quase nenhuma sensibilidade. Mantive-me ausente. Oco. Ela balançava-me bastante. Chacoalhava-me desmedida. Desequilibrava-me. Um desejo de mim fazia seu corpo latejar semelhante aos delírios de um drogado no estágio de abstinência. Colocava o som no último volume e encostava minha cabeça contra as estridentes caixas de música. Eu já quase não respirava. Atirou-me ao chão. Arrastava-me alto pelas paredes. Ela tornou-se descomunal. Tentava reanimar-me de todas as maneiras. Fez-me uma contundente massagem pulmonar, imprimindo força ao ponto de afundar-me duas ou três costelas. Recordo-me de uns leves espasmos nesse momento. Minha boca tremia parcamente. Ela não suportava meus gemidos embotados. Eu não respondia. Mas, sobretudo, não me interessavam suas investidas. Depois, por um rápido instante, comecei a admirar a força daquela mulher. Seu amor. Seu ódio. Seu desespero estava trespassado por uma incontida generosidade. De onde provinha? Era um mistério para mim. Ela não parecia saber o que fazer, mas isto não a impedia de continuar. O desejo de ter algo de mim, alguma resposta, a transformou num ser de força incomensurável. Suas atitudes apontavam violentas, descontroladas. Irritada, chutou-me a face várias vezes (ela chorava e gritava muito). Começou a atirar-me mais longe. De um lado do quarto a outro, e cada vez mais rápido – por incrível que possa parecer, eu sabia que aquela agitação, desmedida violência, era o que me mantinha subtraído à morte, ainda real. Ela começou a furar-me. Em cada ponto do corpo, geometricamente, profundos furos. Ao chegar à altura do peito, e depois de respirar profundamente, enfiou forte as unhas e escalavrou voraz. Já demonstrando cansaço, desfez meu rosto como se fosse um pedaço maciço de carne a fatiar. Derramou álcool em todo meu corpo. Atirou fogo sobre mim. Eu estava queimando e mesmo assim não me protegia das chamas. Ela estava exausta. Vencida, deitou-se sobre mim. Derramou lágrimas sobre meu peito. Logo meu corpo incinerado estava úmido como um algodão mergulhado num copo d’água. Então, como se meus pulmões se enchessem de ar novamente e a consciência emergisse da escuridão, eu reagia. O desejo de ver até onde ela iria por mim reanimou-me um pouco, ao passo em que decidi fingir insuspeitável. Sabia necessário. Com a cabeça debruçada sobre meu peito, ela fuçava dentro da fresta aberta por suas unhas. Procurava algo. Descascava minha carne como descascava banana. Um a um, os feixes desfalecidos eram arrancados da pele. Até que enfim, ela parou. Por um longo tempo fitou o ponto aonde chegara. Em súbito alarde, eu disse: veja, é isto. Ela olhou-me suspensa e indisposta. Parecia inacreditavelmente desapontada. Mexeu-me mais uma vez como a retirar uns restos irrecuperáveis de mim. Depois o que sobrou (nem mesmo sei o que era aquilo) foi posto, calmamente, em cima de uma colcha de retalhos úmida e fétida, em conjunto com farelos podres indistintos. Não havia mais desespero. Mais ao escrutínio e à perscrutação tinham algum sentido seus toques. Quase etérea, tato frio, precipitou-me com nojo à colcha; dobrou-a e amassou-a as pontas impossibilitando, quem sabe, que o fedor exalasse, e com progressiva indiferença, aparentemente habitual, lançou-a, comigo dentro, numa quente e escura vala...

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Kleber Lima. Bibliotecário. Reside em Fortaleza.


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