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"a mar" e "Na loja de ervas", dois contos de Cristina Bresser

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Fotografia de Gray Malin

a mar - um conto de areia

 hoje entendi porque os franceses chamam o mar de la mère:  mar é feminino, mesmo. o que chamamos de ressaca, é tpm.
calmaria é resultado de noite de amor ardente com o sol - escondido, enquanto a lua brilha. manhã seguinte, gozando a paz, espalha na areia cacos de estrelas – sobras da farra sideral.
 mar é a mãe que acalenta com suas águas ondulantes. tem colo melhor, que colo de mãe? mãe natureza, onipotente. generosa quase sempre, rigorosa quando desrespeitada.
o tempo passa tão rápido que a vida quase não vê. na praia, desacelera e a deixa passar na areia, devagar, amornada pelo sol, refrescada pela brisa marinha.
caminhando com dificuldade na beira da mar vem genésio, vendedor de amendoim. anda na ponta do pé esquerdo para compensar os centímetros à mais da perna direita. leva uma cesta carregada de delícias doces e salgadas. há muito criou calo nos ombros, mas ano vindouro vai conseguir se aposentar. aí então, é sentar na areia e ao invés do fardo pesado, vai segurar uma - ou várias - geladas na mão.
jane, a vendedora de sorvetes, tem mais de setecentas músicas no playlist, quando passa por uma faixa de areia deserta, aumenta o volume, porque tem de tudo um pouco nessa seleção, inclusive rock and roll.
natália, a quituteira, braços cansados de carregar o cesto de salgadinhos por 30 anos na praia. hoje passa acompanhada da neta, mas é ela quem empurra o carrinho novo. a menina segura uma sombrinha na mão esquerda e digita no celular com a direita.
acima de todos, marcos, que foi proibido de voar por aqui. teimoso, finca sua biruta na areia e decola com o para-motor por um momento de paz. de cima observa cardumes nem sonhados pelos pescadores, um segredo entre o homem-pássaro e a mãe-mar.
enquanto isso, nós banhistas na areia, protegidos por cogumelos coloridos de lona (o meu, um cogumelo–corcunda, entortado pelo vento noutra temporada). passamos os dias observando maria-farinhas e dando sombra aos cães sem-teto que perambulam pela praia. esses, são os capitães da areia. assim que amanhece, se esbaldam nas águas do riozinho que desemboca na mar. correm, rolam na areia e latem, celebrando mais um dia de vida no verão.

Fonte: Bored Panda
Na loja de ervas


Sinto o chão frio da calçada de cimento sob o meu corpo. O vento está forte e ainda nem é outono. Logo se aproxima da porta um grupo de jovens lindas. Aproveito-me da confusão e entro junto com elas na loja de ervas. A dona pousa o olhar em algum ponto acima dos meus olhos amarelos. Com um meio sorriso fixado no rosto vincado, se dirige às moças. Mas seu pensamento divaga: “Esvoaçantes, meninas-borboletas sorridentes, barulhentas. Borboletas recém-saídas do casulo. Será que pensam um dia envelhecer? Criar rugas no rosto, hoje papel-arroz? Rugas pelo filho doente, amor não correspondido, escassez de proventos? Meninas-moças que vivem atrás de poções mágicas para conquistar namorados. Ah, meninas-borboletas, brilho tão reluzente quanto fugaz, usufruam a dádiva da ignorância de serem finitas: simplesmente, voem. ” Assim elas o fazem. Mal acabaram de entrar e já saem voando, com seus pacotinhos de ervas e poções mágicas dentro de suas bolsas de grife. Quando vão aprender que amor não se atrai com feitiços? Porque amor é feitiço. Mágica indissolúvel quando os dois corpos se fundem e se transportam para uma dimensão além do tempo e espaço. Além das palavras. Além de tudo que não seja sentimento e sensação. A velha das ervas conhece este amor. Me olha atravessado quando lê meu pensamento. Ela, que sabe misturar grãos e condimentos para curar a tristeza no coração das gentes. Como não conheceria o amor verdadeiro? Por que pensar em amar lhe deixa vulnerável e insegura? Me encara e dá um sorriso torto, porém doce. Dirige-se para os fundos da loja. Fico em dúvida se ela voltará com uma vassoura para me espantar ou se simplesmente vai me deixar lá naquele canto, abrigado do frio e da noite. Ela retorna carregando uma coberta macia e um pires. Sou recompensado por minha astúcia com leite morno. Leite temperado com canela. Ronrono de satisfação e me esfrego em suas pernas. A senhora se rende, por fim. Abaixa-se meio encurvada, afaga minha cabeça macia e me presenteia com um sorriso genuíno. Durmo bem.

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Cristina Bresser: Comunicação-UFPR, Proficiency in English-Cambridge University, Creative Writing University of Edinburgh. Autora conto Capitolina, livro Torre de Papel, 2015. 08/2016 primeiro prêmio conto Captolium, I Concurso Literário NIDIL, Fortaleza, CE. Primeiro romance, “Quase tudo é risível", Editora Benfazeja, 11/ 2016. Mostra “Literatura postal”, Correio do Porto - Portugal. Em 2017, menções honrosas contos na Academia Letras MG, Microcontos Araraquara, Revista Conexão Literatura e Paranavaí Literária. Participação antologias: Microcontos- Lucas Palhão e PVB Editorial. Publicações de contos e poemas em revistas e jornais literários do Brasil USA, UK, Grécia e Índia. 

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