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a poesia do desassossego - poemas de Marcelo Mourão

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"Still No Soul Appeared Upon Her Decks", de Justin Rowe

Náufrago

(para Ferreira Gullar)

Hoje o verso
não conta
nem canta
é talvez certo
que seja seta
ou espinha presa
aqui na garganta

Hoje a palavra
não corre
nem cansa
talvez algum garrote
pôs minha voz na tranca
impedindo-a de vir cá fora
silenciada até segunda ordem

Hoje o poema
não almoça
nem janta
sequer fala de amor fé
ou qualquer outra esperança
Hoje o poeta só bebe
a secura de suas lembranças

O poema paira perdido no vento
às vezes morno às vezes forte
às vezes porto às vezes morte
às vezes renascido deste corte
Só que hoje meu silêncio é bote
e estou isolado no mar
levado pela própria sorte.
"The Hand of God", de Roy Haddad

A força da foice

Muitas mãos e um deus cego de pele fria
mastigam a vida, sob a forma de noites e dias.
As coisas aparecem, perecem e logo findam.
A estratégia do caos é disfarçar-se de harmonia.

Muitos deuses invisíveis seguem suas sinas:
engolir carnes e ossos em estranha rotina.
Ensopado de destroços ao molho das carnificinas.

Muitas mãos movem a máquina e seus relógios.
Nada vaza. O tempo é traça roendo a celulose.
Nada escapa da fome do deus de nome morte.
Somos filhos do fino fio de linha que espera o corte.

"Candleopolis", de Ken Figurski

A chama da vela

(para Tanussi Cardoso)

Do pó ao barro
do barro ao vaso
que volta ao pó
como a cinza
que não torna
a ser cigarro.

A gota vira poça,
a poça vira riacho.
As águas correm
escorrem num átimo
seguindo a lógica
de um deus tácito.

Do pó ao jarro
do jarro ao caco
que retorna ao pó
como a fruta
que caída não volta
a pertencer ao galho.

O melhor da flecha é seu voo
e não a chegada ao alvo.


_____________
Marcelo Mourãoé professor graduado em Letras (Língua Portuguesa e Literatura), pós-graduado em Literaturas de língua portuguesa (Unesa) e Literatura brasileira (Uerj) e, desde 2018, mestrando em Literatura brasileira, pela Uerj. É também poeta, escritor, crítico literário e produtor cultural. É criador, produtor e apresentador do sarau POLEM, iniciado em 2008. Tem três livros solos publicados: O diário do camaleão(2009), Temas em literaturas de língua portuguesa: os diferentes olhares (2015) e Máquina mundi (2016). Contato: polem.rio@gmail.com



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