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Poemas de mais nada, de Jorge Lucio de Campos

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[a Edgar Allan Poe]


Morella

O que isso, o mar?
Um fio d’água, um
hemisfério, me
pergunto: uma
tinta resolvida
na alegria da
memória?

O que isso, o mar?
Um abraço crustáceo
que se quebra e
aturde na demora
que o vento austral
espalha?

O que é isso, o mar?
Uma frase sem fim
que soluça na treva −
um olhar retido
na face arpoada
que afunda?

O que isso, o mar?
Um nome que urra
uma frase que ama −
pluma que flutua
na luz embaralhada
das estrelas?

In: Através (Bookess, 2017).







O jogador de xadrez de Maelzel

1

No banco alguém
puxa a alavanca

Não me frustra
o gume da pétala

Um anão ileso
rasga o espaço

2

Quem assumirá
o movimento

: o pato, o mágico
o barão, a vela

acesa bem no
meio da figura?

3

“Turcos não jogam
com a mão esquerda”

A chave já não
gira a fechadura

O corpo vira um
capuz vermelho

4

Acionado, o
poema titubeia −

cambaleia a
rima pura

O anão sai
da máquina

e se esconde
no peito

5

A porta se
abre sozinha −

uma flor se
apruma no

horizonte

6

No fim do dia
a chuva cai

pintada de azul −
de costas para

o sol

In: Através (Bookess, 2017).







Uma descida no Maelström

O que pinga dos dias
vem do Maelström
do mar que rasteja
na glosa do nada

Ao pular na água
meus cabelos eram
flores e meus
braços traços de
albatroz

Ao voltar a mim
abaulado e tonto
perguntei-me: onde
o remoinho? O jarro
de barro com melros
e anjos voando?

Estão presos no mar –
disseram-me. Na
imensidão de sombra
do abismo em carne
viva do mar

O que pinga dos dias
vem do Maelström −
um arrepio constante
me fará lembrar
disso sempre

Fui eu que fiquei
quieto porque tive
que estar. Fui eu
abaixo de mim
mais rude que o
aço e a porcelana

Fui eu: um caco
de vidro rendido
ao nada leitoso
da escuridão

In: Através (Bookess, 2017).







Ligeia

1

Os cachos de seu
cabelo equivalem

à cor da terra, ao
último inverno −

sou capaz de lê-los
a noite inteira −

eles que meneiam
como luz macia

2

Um corvo pousa
em cada canto

de sua boca
e esvoaça na

fumaça livre de
um bater de asas −

sou capaz de sê-lo
a noite inteira −

ele que cintila
como luz macia

3

Suas costas
são campanhas

que conduzem
a parte alguma

Dentro de um
sono curvo −

sou capaz de tê-las
a noite inteira −

elas que escorrem
como luz macia

4

Mas é Rowena
na manhã confusa −

cravo lento que
ao morrer

lembra Ligeia −

sou capaz de vê-la
pela casa inteira −

ela que se esvai
como luz macia

In: Através (Bookess, 2017).







Obs. Estes poemas foram originalmente publicados na revista Zunái em 2013.







Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual (1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio(2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2014), Sob a lâmpada de quartzo (2014), Paisagem bárbara (2014), Através (2017), Véspera do rosto (2017) e O triunfo dos dias (2018).




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