[a Edgar Allan Poe]
Morella
O que isso, o mar?
Um fio d’água, um
hemisfério, me
pergunto: uma
tinta resolvida
na alegria da
memória?
O que isso, o mar?
Um abraço crustáceo
que se quebra e
aturde na demora
que o vento austral
espalha?
O que é isso, o mar?
Uma frase sem fim
que soluça na treva −
um olhar retido
na face arpoada
que afunda?
O que isso, o mar?
Um nome que urra
uma frase que ama −
pluma que flutua
na luz embaralhada
das estrelas?
In: Através (Bookess, 2017).
In: Através (Bookess, 2017).
O jogador de xadrez de Maelzel
1
No banco alguém
puxa a alavanca
Não me frustra
o gume da pétala
Um anão ileso
rasga o espaço
2
Quem assumirá
o movimento
: o pato, o mágico
o barão, a vela
acesa bem no
meio da figura?
3
“Turcos não jogam
com a mão esquerda”
A chave já não
gira a fechadura
O corpo vira um
capuz vermelho
4
Acionado, o
poema titubeia −
cambaleia a
rima pura
O anão sai
da máquina
e se esconde
no peito
5
A porta se
abre sozinha −
uma flor se
apruma no
horizonte
6
No fim do dia
a chuva cai
pintada de azul −
de costas para
o sol
In: Através (Bookess, 2017).
In: Através (Bookess, 2017).
Uma descida no Maelström
O que pinga dos dias
vem do Maelström
do mar que rasteja
na glosa do nada
Ao pular na água
meus cabelos eram
flores e meus
braços traços de
albatroz
Ao voltar a mim
abaulado e tonto
perguntei-me: onde
o remoinho? O jarro
de barro com melros
e anjos voando?
Estão presos no mar –
disseram-me. Na
imensidão de sombra
do abismo em carne
viva do mar
O que pinga dos dias
vem do Maelström −
um arrepio constante
me fará lembrar
disso sempre
Fui eu que fiquei
quieto porque tive
que estar. Fui eu
abaixo de mim
mais rude que o
aço e a porcelana
Fui eu: um caco
de vidro rendido
ao nada leitoso
da escuridão
In: Através (Bookess, 2017).
In: Através (Bookess, 2017).
Ligeia
1
Os cachos de seu
cabelo equivalem
à cor da terra, ao
último inverno −
sou capaz de lê-los
a noite inteira −
eles que meneiam
como luz macia
2
Um corvo pousa
em cada canto
de sua boca
e esvoaça na
fumaça livre de
um bater de asas −
sou capaz de sê-lo
a noite inteira −
ele que cintila
como luz macia
3
Suas costas
são campanhas
que conduzem
a parte alguma
Dentro de um
sono curvo −
sou capaz de tê-las
a noite inteira −
elas que escorrem
como luz macia
4
Mas é Rowena
na manhã confusa −
cravo lento que
ao morrer
lembra Ligeia −
sou capaz de vê-la
pela casa inteira −
ela que se esvai
como luz macia
In: Através (Bookess, 2017).
Obs. Estes poemas foram originalmente publicados na revista Zunái em 2013.
Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual (1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio(2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2014), Sob a lâmpada de quartzo (2014), Paisagem bárbara (2014), Através (2017), Véspera do rosto (2017) e O triunfo dos dias (2018).
In: Através (Bookess, 2017).
Obs. Estes poemas foram originalmente publicados na revista Zunái em 2013.
Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual (1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio(2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2014), Sob a lâmpada de quartzo (2014), Paisagem bárbara (2014), Através (2017), Véspera do rosto (2017) e O triunfo dos dias (2018).